Vinte anos atrás me apaixonei perdidamente por um banheiro.
Ele era composto por três paredes de pedra e uma de vidro que oferecia ao usuário 12 km de vista até o horizonte! Nada muito diferente da vista dos guardiões do Alcazár de Segóvia, nos anos 1200 d.C.
O meu objeto de paixão foi uma das razões secretas que me fizeram eleger Castela e Leon, como minha próxima meta turística.
De tudo que me lembrava da minha primeira viagem à região, 19 anos atrás, o banheiro do Alcazár de Segóvia, e o polvo cozido polvilhado de páprica, que comi em Salamanca, estavam sempre entre as mais queridas lembranças.
Evidentemente, quem conhece aquela região não pode sequer se dar ao luxo de passar batido por tanta cultura, história e arte, para reter na retina apenas uma vista desde a parede de vidro de um banheiro e na boca o gosto de um polvo cozido.
Em Salamanca, junto com o polvo, vem uma Plaza Major, das mais lindas da Espanha, sintetizando um conjunto arquitetônico extremamente equilibrado, cujo complemento mais interessante está na juventude festiva que ocupa a cidade.
E, como pode imaginar até o mais incauto leitor, Segóvia não é apenas um banheiro, que aliás não existe mais, tornou-se praça de armas de uma exposição permanente que ocupa o Alcazár atualmente, humilhando-o tanto ou mais em seu orgulho mouro do que quando foi transformado em castelinho de história de fadas e dragões, ainda no século XIII, depois da derrota que os islâmicos sofreram para os cristãos, que vieram do norte para ficar.
Em Segóvia, mas também em toda Castela e Leon, apesar dos seus reis cristãos, apesar de todo processo inquisitório secular, o ecumenismo está implantado às mesas e aos fornos de madeira, onde conchinillos e lechazos dividem irmamente as preferências de comensais de credos diferentes.
Não sabem ainda o que é melhor, o cochinillo – um leitãozinho há pouco desmamado – ou o lechazo, um cordeirinho de leite. Por não conseguirem se definir por um ou por outro, o esporte gastronômico da região é variar, dia sim, dia não, um hoje, o outro amanhã!
Ainda em Segóvia, a recuperação da antiga juderia se dá a passo de lebre, não apenas no lado físico de reconstituição de sinagoga e recuperação da região reservada para eles desde a mais antiga Idade Média.
Dá-se também do lado espiritual, ao discutir e recuperar a história dos novos cristãos, promovendo um debate constante, como o que se deu no IV Congresso Internacional sobre os Convertidos e os Mouriscos que acaba de se dar, neste junho de 2008.
Mas e quem não gosta destas carnes e não gosta destas coisas medievais e disputas históricas, não tem nada pra fazer por lá?
Em primeiro lugar, estando em Castela e Leon, é necessário se acostumar com a presença dos castelos e cidades muradas, não tem jeito de escapar. O viajante pode fechar os olhos entre um hotel e outro, pode fazer a meditação que quiser... Não adianta – na primeira distração vai se deparar com um castelo ou uma ruína, uma muralha como a de Ávila, não tem jeito. Afinal, é uma das maiores concentrações de castelos por km² de toda a Europa.
Mas há bons atenuantes naturais, a começar pela profusão de flores do campo, que colorem – aqui de vermelho e amarelo, lá de lilás e azul – rodovias e ferrovias, tornando irresistível uma paradinha para fotos.
Há também os Canions que vez ou outra aparecem no cenário, tão presentes, tão típicos que serviram de estúdio ao ar livre para os filmes do Sergio Leone que encantaram o mundo com seus Spaghetti Westerns, filmados lá, editados em CineCittà.
Alguém falou em outros atenuantes? Alguém falou em vinho, alguém falou em pão?
O Estado de Castela e Leon produz a mais refinada farinha de trigo, o que resulta em pães e tortas de excelente qualidade.
É tanta qualidade no trigo que o longevo e sanguinário ditador generalíssimo Franco teve uma idéia aparentemente fantástica, em seus momentos de pretensa genialidade – mandou, por decreto, arrancar vinhedos centenários, à margem do Douro, com a boa desculpa que vinho a Espanha produzia em profusão, pão para os pobres não!
Pois bem, como os pobres continuaram passando fome sob o seu governo terrível e insuportavelmente longo, apenas morreu e os vinhos das margens do Douro voltaram a ocupar seu lugar ancestral, superando o que já tinha sido, tornando-a uma das regiões produtoras mais importantes, não apenas da Península Ibérica, mas do mundo do vinho.
Há muito para se ver e fazer, nesta terra Castela, nesta terra Leon.
Tem Valladolid, uma cidade que poderia continuar sendo a capital do reino que foi e estaria de bom tamanho, tantas são suas qualidades e interesses.
Tem Burgos, uma surpresa de tão acolhedora e bonita, uma pontinha de semelhança com outras cidades que algum dia foram praças de mercado anual, por conta de seus rios navegantes.
Tem os pimentões vermelhos e doces como não há igual, quem não ama um pimentão recheado com bacalhau desfiado? Tem queijos e embutidos tão bons quantos os melhores. Tem a energia eólica, cada vez mais presente, com sua aparência imponente, que bem sugere um coletivo de moinhos assustadores, ao menos para qualquer Don Quixote desavisado que passe por lá.
E, em se falando de Ibéricos, elege-se uma gente tão antiga quanto seus vizinhos bascos, certamente muito anteriores aos celtas, fenícios e romanos. Parece ser uma gente movida ao que faz, algo que inunda o tom de voz do seu interlocutor, seja ele vinhateiro da quinta geração na região de Torremilanos, seja ele garçom do café da manhã do hotel Fuente de Aceña. Paixão, o sentimento que me levou para Castela e Leon, mesmo que dirigido ao objeto superado. Paixão o sentimento que me trouxe de volta com vontade de voltar de novo.
sobre o autor
Breno Raigorodsky, graduado em filosofia, é publicitário e gourmet. Escreve regularmente sobre vinhos e comida.