Uma outra cidade é o nome de um conjunto de imagens da periferia de várias metrópoles latino-americanas. Como sabemos, estas cidades têm muitas camadas desenvolvidas ao longo dos séculos desde suas fundações. Camadas de lutas cotidianas, camadas dos movimentos sociais, camadas de silêncios das noites, camadas de intrigas políticas, enfim, inumeráveis camadas de memórias que formam incríveis histórias. Por exemplo, o espaço da cidade de São Paulo é um palimpsesto indecifrável, porque nele explodiram e explodem todas as contradições possíveis, como se fosse um caldeirão num eterno fogo ardente. Mas São Paulo, como Belém, Lima, Caracas, La Paz, é apenas uma repetição de uma matriz geradora dessas contradições.
Iatã Cannabrava, fotógrafo e agitador cultural, conhece bem essas cidades e por isso mesmo, neste ensaio desenvolvido ao longo de mais de oito anos, voltou sua câmera para as mesmas periferias, das diferentes cidades, e realizou um projeto documental, com uma força expressiva diferenciada, até então inédito na fotografia brasileira.
Utilizou conscientemente a fotografia colorida para acentuar as diferentes camadas que compõem o grande espectro social nos limites de sua exclusão. Seu ensaio registra um microcosmo social reconhecível, de incrível semelhança, que concentra outras camadas dissonantes que reverberam sincronicamente com as outras camadas existentes no espaço urbano central.
Centro e periferia, opostos que não se misturam, mas que geram uma curiosidade quase ancestral quando pensamos em produção imagética e literária. A periferia de algum modo nutre o artista ao mesmo tempo que o contamina com sua diferença. No caso específico da fotografia brasileira, basta olhar retrospectivamente para encontrar imagens produzidas com essa perspectiva, em diferentes momentos, por Augusto Malta, no Rio de Janeiro; Pierre Verger, em Salvador; B. J. Duarte, em São Paulo; e tantos outros que foram movidos ou pela curiosidade ou pela disposição política de denunciar uma situação social de pobreza e insustentável precariedade.
Haveria alguma lógica nessa desordem estabelecida? Na cidade de São Paulo, uma das mais ricas do mundo, em que, como em qualquer grande cidade da América Latina, temos uma situação peculiar entre acumulação e pobreza. A cidade, ao longo de sua história, se expandiu de forma caótica e, nas últimas décadas, espaços periféricos, invisíveis ao poder público, foram criados aleatoriamente.
É exatamente nessas periferias que Iatã Cannabrava fixou seu olhar e desenvolveu um ensaio contundente sobre as diferenças. As fotografias assustam pelas visualidades, muitas vezes hostis, e pelas estratégias de construção utilizadas para registrar e documentar esse mundo nem sempre visível aos olhos de todos. O conjunto das imagens torna-se um intrigante ensaio centrado na antropologia visual, surpreendentemente revelador, que nos faz pensar sobre as precárias condições habitacionais das grandes cidades, as subjetividades inerentes e a questão da ocupação do território público.
Ao mesmo tempo, Iatã mostra-se um observador atento e curioso. Registra o acúmulo dos diferentes materiais e das diferentes formas que se organizam de maneira imprevisível nesse espaço de tensão contínua, para explicitar os modos populares de esconder e mostrar as evidências. Seja nos planos gerais e panorâmicos, nos quais é possível perceber uma vibrante e irascível visualidade, seja nos interiores domésticos e até mesmo nos retratos, o que vemos é o resultado de um olhar que busca, nesse tecido social, construir uma pluralidade de fragmentos que denotam mais do que uma explosão de cores e formas. Assim como a história da cidade, a fotografia de Iatã Cannabrava é uma espécie de palimpsesto contemporâneo. Em cada fotografia podemos verificar a presença das diferentes camadas que cobrem o espaço registrado. Por exemplo, nos interiores vemos as várias camadas de tintas sobre as paredes e as diferentes camadas de panos que cobrem as mesas, os sofás e as poltronas, bem como as cortinas que dividem e escondem os ambientes. Em alguns dos retratos também são perceptíveis as camadas eleitas pelo olho sensível que procura contextualizar o cidadão naquele ambiente.
Daí é possível entender os cartazes que ilustram parcialmente os espaços, os grafites desenhados nos muros e as muitas placas que anunciam qualquer coisa. O resultado é uma fotografia que incomoda também pela assumida frontalidade e pela ousadia de incorporar esses índices e resignificá-los.
Grades, gaiolas, grávidas. O dentro e o fora. O detalhe e o panorâmico. Uma fotografia inventiva, criada nas fendas do possível, que estabelece um universo sígnico plural, diversificado, através de um enquadramento tenso, pois, quando quadrado, parece assimétrico e, quando retangular ou panorâmico, predomina uma composição ruidosa. As diferentes luzes e a imprecisão focal, presentes em parte das fotografias, também são elementos que pontuam sua sintaxe. Enfim, um trabalho corajoso, que evidencia as fragilidades do nosso sistema socioeconômico por meio de imagens silenciosas que formam um conjunto altamente explosivo e com densidade política e estética.
[as fotos e texto se referem à Exposição “Uma outra cidade”, Museu da Casa Brasileira, São Paulo, de 21 de julho a 23 de agosto de 2009]
sobre o autor
Iatã Cannabrava, fotógrafo, curador e agitador cultural, participou de mais de 40 exposições. Ganhou os prêmios P/B da Quadrienal de Fotografia de São Paulo, em 1985, o concurso Marc Ferrez da Funarte, em 1987, e dois prêmios da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 1996 e 2006