"Se eu fosse cineasta me dedicaria a caçar crepúsculos. (...) as pessoas vão ao cinema para se esquecer de si mesmas, e um crepúsculo tende precisamente ao contrário, é a hora em que talvez nos vemos um pouco mais despidos, a mim em todo caso isso acontece, e é penoso e inútil"Julio Cortazar, Um tal Lucas
Há certo sentimento que poderíamos nomear de “imagem do pessimismo” e que acompanha, muitas vezes, as viagens e os seus a(u)tores. E isto não parece ter deixado o filósofo francês Jean-Paul Sartre indiferente, posto que no livro publicado postumamente e intitulado A rainha Albermale ou o último turista ele chegou mesmo a resumir o seu mal-estar com esta fórmula: “O turismo é uma flor do mal”. A este respeito, citaremos uma das mais conhecidas e belas das flores do mal, aquelas escritas por Baudelaire: “É preciso partir? Ficar? Se tu podes ficar, fiques; / Partas, se for necessário. Um corre o outro se esconde / Para enganar o inimigo vigilante e funesto”. E quem seria o “inimigo” aludido nestes versos de caráter tão pessimista? O leitor já terá adivinhado ao pensar na tradição literária francesa...
O tempo, "vigilante e funesto”, a quem é necessário, por vezes, matar, para encontrar algum prazer e alguma diversão. E, muitas vezes estas fuga e morte parecem ser as viagens – ou a permanência, o que dá no mesmo.
Georges Perec parece concordar com Baudelaire, posto que, ao escrever todo um ensaio sobre o espaço, intitulado Espécies de espaços, não guardou nada de muito elogioso ao se referir às viagens: “Espanto e decepção das viagens. Ilusão de ter vencido a distância, de ter apagado o tempo. Estar longe”. E finaliza: “Ver verdadeiramente alguma coisa que foi, durante muito tempo, uma imagem em um velho dicionário: um gêiser, uma queda d’água, a baía de Nápoles, o lugar onde estava Gavrilo Princip quando atirou no arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria e na duquesa Sofia de Hohenberg, no ângulo da rua Francisco José e da plataforma Appel, em Sarajevo, em frente à loja de bebidas dos Irmãos Simic, em 28 de junho de 1914, às onze horas e quinze.”
As irônicas frases de Perec nos lançam, diretamente, no coração do sistema: a sua alusão é, certamente, à ilusão, mas, igualmente, ao irrecuperável; afinal, por que partir, isto é, viajar, se aquele tênue nada, e que teve tantas conseqüências – o horror das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, por exemplo –, já não é mais?...
Podemos, neste sentido, nos referir a um pessimismo de caráter ontológico: o que ver, mas, sobretudo, o que é possível ver verdadeiramente, e, ainda, o que é possível reter como memória. É isto, justamente, o que o escritor francês se pergunta: anônimos aeroportos internacionais (fato curioso: todo não-lugar tem um endereço fixo...), luzes incertas e cambiantes de trens noturnos, obras de pedra e obras de arte, e “três crianças correndo por uma estrada branca”. Parece que o viajante não controla o que ele se recordará, assim como aquilo que, inelutavelmente, será coberto pelo esquecimento. E, neste sentido, é irônico que uma obra de arte a quem o viajante aguardava conhecer com tanta ansiedade tenha, em retrospectiva, o mesmo estatuto de um acontecimento fortuito e aparentemente banal.
Mais de um turista já teve a ilusão de ver uma pintura célebre em um museu apinhado, dividindo uns poucos centímetros quadrados com outros turistas, enquanto um diligente funcionário exclama no flash, no flash! Não se pode, nestas condições, ter uma memorável experiência de fruição estética. Parafraseando Wittgeinstein diríamos que aquilo que não pode ser visto deve ser esquecido. E o custo emocional de toda viagem, que, na realidade e profundamente, é uma mudança? E o risco constante do dépaysement? Mais uma vez, citaremos Perec: “É necessário acontecimentos extremamente graves para que se consinta em mudar [de lugar ou de caráter?]: guerras, fome endêmica, epidemias.” A conclusão destas frases é que se partir tem tanto valor quanto ficar, por que, então, se dar o trabalho do deslocamento? O autor francês faz referência a certo sentimento que poderia muito bem ser definido como pertencimento: pertence-se a um país, a uma cidade, a um bairro, a uma rua, e, finalmente, a um prédio, e, neste prédio, a um apartamento (e, neste último, talvez a apenas alguns poucos cômodos). Bachelard, no seu livro A poética do espaço, parece concordar com estas frases ao criticar a chamada “metafísica do ser que é lançado ao mundo”, porque esta desconsideraria que, entre o tal “mundo” e o homem, há a mediação do espaço da casa, o que não é fato de pouca importância.
Ora, o que diz um viajante quando desejar retornar ao seu país, ou a sua região, senão, precisamente, “voltar à casa”? Esta expressão metonímica resume à perfeição o sentimento evocado por Perec: os exilados de sempre pela fome, pelas doenças e pelas guerras, estão lançados no “mundo” e longe, irremediavelmente longe, das suas casas.
E pensando nas questões elencadas acima não estaríamos longe – irremediavelmente longe – da verdade, se afirmássemos que as memórias – tanto no sentido mental quanto no sentido da escritura – das viagens são produzidas em um ambiente em que o espanto e a surpresa dão lugar, inevitavelmente, à decepção e ao pessimismo: é, ao menos, o que escreveram tanto Baudelaire no século XIX quanto Perec e Sartre no século passado. E, para concluir – e matizar a questão –, alguns versos de Apollinaire: “Passemos, passemos, porque tudo passa/ Eu voltarei frequentemente.” Ora, neste caso, seria a volta um retorno à casa ou uma volta como tour-turismo?
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Autor do livro =Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo