A proximidade do novo milênio provocou uma revisão dos princípios aplicados aos projetos urbanos, que terão amplo impacto na forma de se morar e de se visitar as cidades. Desde a década de 1990, têm-se privilegiado as propostas que contemplam um maior conforto e segurança para os pedestres, a opção por meios de transportes não poluentes, o incentivo à bicicleta, espaços acessíveis a todos etc.
O incentivo a novos “paraísos para pedestres”, entretanto, começou na década de 1970, segundo Rolf Monheim, com a contínua estruturação de zonas para pedestres, que passaram a valorizar o espaço público, o comércio de rua, as áreas de passeio, reduzindo-se as distâncias e obstáculos para o fluxo dos pedestres, através de projetos que priorizaram o conforto e a segurança destes usuários.
A cidade para os pedestres é, segundo Paulhans Peters, a reação frente à cidade ordenada, e também a resposta à cidade que prioriza o uso do automóvel. Seu princípio de ordenação se orienta pelo cotidiano do homem contemporâneo, suas necessidades e prioridades habituais, numa tentativa de conciliação e coexistência entre pedestres e motoristas, pedestres e ciclistas.
Regida pelas dimensões dos caminhos e percursos de seus usuários, essa cidade proporciona caminhos regulares, com acessibilidade universal, proteção do sol, iluminação noturna, ciclovias etc. O dimensionamento dos espaços livres e sua redução à escala do pedestre ocorrem em função do uso dos espaços e necessidades cotidianas, no bem estar da população residente, e no caso de cidades turísticas, em atrativos para os visitantes.
A circulação de pedestres pela cidade remete às necessidades básicas de comer, beber, olhar, andar e descansar. A rua e suas extensões devem reforçar este caráter de lugar de relações, que garantem não só a vitalidade do lugar, como sua sustentabilidade e manutenção. A diversidade e a vitalidade do espaço são – segundo Eike Schmidt e Gerrit Stahr – o estímulo da alma, da fantasia e da criatividade de ações sobre o espaço, possibilitando a convivência entre o usuário e o espaço público.
Se, por um lado, investe-se em projetos de reurbanização, com melhoria da pavimentação, travessias acessíveis, ciclovias, instalação de mobiliário urbano, iluminação pública e arborização, por outro, há também investimento nas redes de transportes públicos de massa, com alta capacidade, na tentativa de reduzir o número de veículos individuais na cidade.
A pedestrianização e a cidade do futuro
A rede de caminhos para pedestres e também ciclistas deve ser vista como um aspecto importante das cidades do futuro, principalmente em função das qualidades superficiais e experiências especiais que este tipo de projeto oferece. Não se deve pensar nestes percursos como espaços delimitados e específicos para certas zonas especiais, históricas e de lazer, e sim como caminhos que conectam a cidade, permitindo-se o cruzamento de fronteiras, a ligação entre margens, o usufruto da cidade de uma forma geral, não apenas para seus moradores, mas também para seus visitantes.
A pedestrianização da cidade deve-se à revalorização do viver na cidade em contraponto ao colapso dos grandes centros urbanos, que têm sofrido com o excesso de veículos, principalmente automóveis e ônibus. Com isso, o viver urbano redescobre a importância das ruas, das travessias, das pontes e passarelas de ligação, dos espaços públicos, dos passeios, da função social dos espaços urbanos.
A redução da extensão dos caminhos, a acessibilidade a eles, o conforto do percurso etc motivam os novos projetos que, sempre que possível, agregam pedestres e ciclistas, de forma a possibilitar uma convivência segura e harmoniosa entre as modalidades. Os projetos de mobilidade urbana sustentável, voltados para os pedestres, ciclistas e pessoas portadoras de necessidades especiais, valorizam a escala de pedestres, o acesso universal aos equipamentos e bens da cidade, bem como proporcionam a redução dos conflitos entre pedestres, veículos automotores e ciclistas.
Apesar da Declaração dos direitos das pessoas portadoras de deficiência ter sido elaborada em 1975, até hoje ainda há muita resistência e desconhecimento em relação à acessibilidade universal, apesar da ONU insistir junto aos seus países membros na eliminação de obstáculos e barreiras arquitetônicas e sensoriais, tanto nos bens construídos quanto no meio urbano.
A mobilidade urbana sustentável e universal se coloca no panorama contemporâneo como uma das principais alternativas para se pensar o futuro das grandes cidades nesse sentido. No Brasil, o Ministério das Cidades criou a Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana – SEMOB com a finalidade de formular e implementar a política de mobilidade urbana sustentável, formada pela reunião das políticas de transporte e de circulação, e integrada com a política de desenvolvimento urbano. O programa elaborado pela Secretaria tem como objetivo proporcionar o acesso amplo e democrático ao espaço urbano, priorizando os modos de transporte coletivo e os não-motorizados, de forma segura, socialmente inclusiva e sustentável.
Dentre os desafios da Política de Mobilidade Urbana, destacam-se a garantia da acessibilidade universal, a luta pela inclusão social, a adequação de ambientes e a implantação de equipamentos e sistemas de transporte acessíveis. A mais importante estratégia deste programa refere-se à integração das políticas da mobilidade com as demais políticas de desenvolvimento urbano e de proteção ao meio ambiente.
Possibilita-se, assim, que as questões de transporte e circulação sejam vistas como parte de todo um contexto de reestruturação urbana, ligado às políticas de revitalização e urbanização a serem implementadas nas cidades, priorizando-se os investimentos federais nos modos coletivos, nos equipamentos e nos meios não motorizados de transporte, como a bicicleta. O incentivo ao uso da bicicleta e à caminhada pela cidade ganha força nesses projetos, que vêm sendo implantados segundo a acessibilidade universal e dentro de uma escala que privilegia o fluxo de indivíduos não motorizados, promovendo uma melhor distribuição das atividades no território e a melhoria da qualidade ambiental urbana, sobretudo nas áreas residenciais e de proteção ao patrimônio histórico, arquitetônico e cultural, valorizando os espaços e permitindo uma maior circulação de pessoas por estas áreas da cidade.
Conhecer o Rio de Janeiro e Paris de bicicleta
A reurbanização de áreas, marcação de ciclofaixas, criação de ciclovias e faixas compartilhadas entre pedestres e ciclistas talvez sejam os primeiros passos para o incentivo ao uso cotidiano da bicicleta.
A integração deste meio com outras modalidades de transporte como metrô, trem e barcas é um segundo passo. A criação de estações de aluguel de bicicleta, vestiários, bicicletários etc tornam o meio ainda mais acessível, não apenas aos moradores da cidade, mas também aos seus visitantes.
A valorização da escala do pedestre e o incentivo ao uso da bicicleta extrapolam a função inicial de conexão e mobilidade. No caso de cidades como Rio de Janeiro e Paris, esta política permite um maior usufruto dos bens culturais da cidade, das paisagens naturais e construídas, de passeios à beira-mar e da lagoa no Rio de Janeiro, do rio, no caso de Paris.
A possibilidade de levar a bicicleta num transporte de massa ou alugar um veículo numa estação e deixar em outra facilitam o deslocamento de turistas, que podem fazer roteiros mais longos e prazerosos, e observar a cidade de um ângulo diverso do pedestre. Os moradores da cidade também têm com isto uma maior flexibilidade e a vantagem de conciliar a ida ao trabalho e o exercício matinal.
Por um lado, o sistema Velo de Paris, reproduzido em menor escala no Rio, por outro a democratização das bicicletas leves e portáteis a preços acessíveis, como incentivo ao uso do meio. Nas áreas reurbanizadas, acessibilidade universal com rampas de acesso, pavimentação regular, alargamento de calçadas, sinalização das ciclovias etc.
Mas, nem tudo é perfeito e um longo caminho ainda precisa ser percorrido. Quando tive a oportunidade de projetar as ciclovias no Rio de Janeiro, eu e meus sócios fizemos uma proposta de integração da malha cicloviária da cidade com as estações de trem.
A Supervia se mostrou interessada a princípio, mas o projeto não foi adiante. Pensamos em criar espaços para ciclistas junto às estações, não apenas com bicicletários, mas também com vestiários, armários do tipo lockers, quiosques com serviços do ramo etc, de forma a possibilitar que os trabalhadores de áreas mais carentes e moradores de zonas mais longínquas pudessem utilizar a bicicleta como uma das modalidades do seu cotidiano, com segurança e maior conforto.
Imaginamos também a possibilidade de alguns vagões de trem e metrô com capacidade para transporte de bicicletas. Para tanto, seria fundamental, antes, a acessibilidade universal, instalação de rampas ou elevadores nas estações das ruas até as plataformas dos trens. No Rio, talvez fosse possível em boa parte das estações, mas em Paris, certamente bem mais difícil.
A implantação das ciclovias, faixas compartilhadas etc no Rio de Janeiro e em Paris tende a ampliar sua importância neste momento em que muito se valorizam as alternativas “verdes” e universais, já utilizadas em outras cidades européias, asiáticas e norte-americanas, ainda que em menor escala. Em cidades onde o uso da bicicleta já faz parte do cotidiano há décadas, já não existem mais faixas específicas, pois o sistema cicloviário está completamente integrado ao resto da rede.
Este pensamento, entretanto, ainda encontra muita resistência por aqui. De qualquer forma, já se pode notar um movimento de ampliação da malha cicloviária e na implantação da mobilidade urbana sustentável, onde a acessibilidade universal e o incentivo ao uso da bicicleta têm extrema importância para a cidade de hoje e de amanhã.
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