No momento em que escrevo este texto, uma organista provavelmente separa partituras, ou ensaia, para mais um concerto ao órgão Arp Schnitger, instrumento da Sé de Mariana. Tive a felicidade de ser plateia de vários desses concertos. Este, precisamente, o motivo primeiro que me leva a compartilhar aqui tão preciosa experiência. Ao fazê-lo, contemplo também a importância desse tipo de evento para a conservação de Mariana, cidade tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Lindamente emoldurada pela natureza, Mariana está situada na microrregião do Espinhaço Meridional(1). Sua história remonta à 1696, quando, em 16 de julho, a bandeira do coronel Salvador Fernandes Furtado de Mendonça descobriu um filão aurífero no Ribeirão do Carmo. Sua primeira missa, rezada pelo capelão da bandeira, no dia seguinte à descoberta, foi consagrada à nossa Senhora do Carmo (2).
Com o desenvolvimento da mineração ali instalada, o governador da então capitania de São Paulo e Minas, capitão-general Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho (3) veio a se estabelecer perto das lavras, por determinação da Coroa Portuguesa. Para instalar o seu governo (de 1710 a 1713), o capitão-general escolheu o Ribeirão do Carmo. Durante a sua gestão, no ano de 1711, foram elevados à condição de vila os povoados que originaram as atuais cidades de Mariana, Ouro Preto e Sabará. Surge, então, a Vila do Carmo, que posteriormente viria a ser a cidade de Mariana.
Sendo a capitania desmembrada em 1720, e dom Lourenço de Almeida nomeado o primeiro governador de Minas Gerais, a capital foi instalada na Vila Rica (atual Ouro Preto), então próspero centro minerador. Com a perda da sede do governo, a Vila do Carmo entrou em decadência. O último governador a governar a capitania na Vila do Carmo foi o conde de Assumar. Quando governador, o conde havia encaminhado pedido a dom João V pela criação de um bispado em Minas Gerais, cujo clero, até então, era subordinado ao Bispado do Rio de Janeiro.
A reinvidicação pela sede do bispado, entretanto, foi disputada com a Vila Rica, então governada pelo Conde de Bobadela, que alegava a decadência da Vila do Carmo como condição desfavorável para a implantação do bispado. Dom João V, ao contrário, entendeu que justamente por estar em decadência, a Vila do Carmo deveria sediar o bispado, com o que poderia progredir. Sendo o estatuto de cidade condição sine qua non para sediar um bispado, a Vila do Carmo foi elevada a cidade, em 1745, sendo então criada a Diocese de Mariana. Surgiu, desse modo, a primeira cidade do estado de Minas Gerais, que veio a receber o lindo nome de Mariana em homenagem a Dona Maria Ana D’Áustria, esposa de dom João V. No mesmo ano, o rei encarregou o Brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim, arquiteto português, da elaboração do plano urbanístico da cidade.
O primeiro bispo nomeado para a nova Diocese foi dom Frei Manuel da Cruz. Sua chegada a Mariana foi motivo de grande festividade, sendo o religioso recebido efusivamente em memorável evento, relatado no opúsculo Áureo Trono Episcopal, publicação tipicamente barroca, datada de 1749 (4). Desde então, a cidade passou a ser objeto de transformações pautadas pelo Bispado. Boa parte dessas iniciativas relacionava-se à melhoria da formação do clero mineiro e ao aprimoramento da vida cultural da cidade. Como se verá adiante, a vinda do órgão Arp Schnitger para Mariana relaciona-se ao primeiro bispado. Atalha-se, assim, o caminho para passar diretamente ao histórico da igreja que veio a abrigar esse instrumento na cidade: a Sé de Mariana.
Em uma breve remissão do percurso de acontecimentos que conduz à Sé de Mariana, é preciso iniciar lembrando a primeira missa local, rezada pelo capelão da bandeira no dia 17 de julho de 1696 e consagrada a nossa Senhora do Carmo. Oito anos depois dessa celebração, em 1704, estava já estabelecida a primeira paróquia. Todavia, até cerca de 1711, o único templo do arraial era a Capela da Beata Virgem Maria do Monte Carmelo. Com a elevação do povoado à vila, em 1711, essa igreja recebeu o título de matriz, sendo dedicada à Nossa Senhora da Conceição. Obra realizada no governo de Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho (1710–1713), a matriz teve a fachada e as torres executadas em 1734 (5). Em 1745, com a criação da Diocese de Mariana e a elevação da vila do Carmo a cidade, a matriz é elevada a catedral, sendo consagrada a Nossa Senhora de Assunção. A catedral é hoje mais conhecida simplesmente pelo nome de Sé de Mariana.
Quando de sua elevação a catedral, a matriz passou por algumas modificações. Silva Telles as explica como segue: “a ampliação da capela-mor, a criação, no cruzeiro, de capelas laterais maiores, e nos arcos destas capelas, bem como no arco-cruzeiro, foi executada uma decoração arquitetônica de caráter monumental” (6). O autor acrescenta que o retábulo do altar-mor ainda mantém a forma seiscentista.
Os retábulos do cruzeiro são obras de meados do século XVIII, sob reinado de Dom João V. Ao gosto desse reinado, os interiores das igrejas assumem caráter francamente barroco, dinâmico, dourado, como explica Silva Telles. Mesmo com tais modificações, Silva Telles destaca a Sé de Mariana, junto com a Matriz de Sabará, como as duas únicas igrejas mineiras que mantêm o partido inicial dos primeiros anos do século XVIII: ambas apresentam três naves separadas por arcadas (7).
No interior da igreja, merecem destaque especial, por parte de Silva Telles, as pinturas do cadeiral da capela-mor, por ele designado de “precioso” e distinguido como um dos raros cadeirais de cabido a conservar sua primitiva feição. Manifestando influência oriental, tais pinturas são denominadas chinesices. Segundo Silva Telles, essas chinesices foram certamente elaboradas no Brasil mesmo, por artistas ou artesãos advindos das feitorias portuguesas das Índias ou da China. Em sua temática, predominam pássaros ou figuras trajadas ao modo indiano ou chinês, sendo executadas, sobretudo, em tonalidades vermelhas e douradas.
O esplendor do espaço interno da Sé recebeu a contribuição de um consagrado nome das artes do período colonial em Minas Gerais – o marianense Manoel da Costa Ataíde (1762-1837)(8). A Ataíde, que inclusive foi batizado nessa igreja (9), é atribuído o painel que representa o batismo de Cristo, no fundo do batistério da catedral.
Dona de tão rico histórico e abrilhantada por trabalhos artísticos como os antes citados, a Sé de Mariana veio a ser ainda mais distinguida por um precioso presente da Coroa Portuguesa a Dom Frei Manuel da Cruz, o primeiro Bispo de Mariana. Esse presente consiste no próprio tema central deste artigo: o órgão Arp Schnitger. O instrumento leva o nome do organeiro que é admitido na literatura musical como o responsável por sua concepção e manufatura, ambas realizadas em Hamburgo. No entender da organista Elisa Freicho (10) a comprovada autoria do instrumento da Sé de Mariana torna-o uma referência entre os diversos órgãos encontrados no Brasil.
Considerado um dos mais talentosos construtores de órgãos da era barroca, Arp Schnitger nasceu em 9 de julho de 1648, em Schmalenfleth, Oldenburg, e morreu em 1719, Neuenfelde, Cidade Imperial Livre de Hamburgo. Schnitger era luterano e iniciou sua formação atuando como marceneiro na oficina de seu pai e como aprendiz de organeiro com seu primo Berendt Huess (11) em Glückstadt, Holstein. Após a morte de Huess, em 1676, Schnitger completou um órgão desse seu primo, em St. Wilhadi, na cidade de Stade, região da Baixa Saxônia.
Independente desde 1679, aos 31 anos, quando criou a sua própria oficina, Schnitger encarregou-se também da criação de uma escola de construção de órgãos. Entre 1682 e 1687, Schnitger construiu o seu maior órgão, na igreja de St. Nicolai, Hamburgo. Dois de seus filhos se tornaram organeiros, Johann Georg e Franz Caspar. Com eles e assistentes, Schnitger construiu cerca de 150 órgãos, de diversos portes, ao longo da Alemanha do Norte e Holanda (12). Igualmente, aumentou e reconstruiu órgãos já existentes. Além disso, o organeiro enviou instrumentos para países como a já citada Holanda, e também Rússia, Inglaterra, Espanha e Portugal. Entre esses instrumentos, o que foi tocado por Bach na Igreja de St. Jakobi é citado como um dos melhores órgãos de Arp Schnitger (13). Desse conjunto, algumas dezenas ainda existem, embora as fontes divirjam quanto à quantidade exata (14). A propósito, o site alemão Geistesblitze, por exemplo, afirma o que segue:
"Apesar de alterações indevidas ao longo do tempo e do desaparecimento de alguns exemplares, ainda existem hoje aproximadamente 35 órgãos Schnitger (entre estes, os das cidades de Ganderkesse e Dedesdorf). Segundo as informações mais apuradas, a maioria deles foi restaurada e recuperaram em ampla medida seu estado original" (15).
A impossibilidade de precisar o número exato de instrumentos construídos por Schnitger ainda existente sinaliza a necessidade de intensificar a pesquisa a respeito do organeiro e de sua obra internacionalmente, visto o seu interesse mundial. Sobre o órgão enfocado neste texto, em específico, vale dizer que é reconhecido como o único existente fora da Europa (16). Essa singularidade é um dos motivos de maior importância para a valorização nacional e internacional do órgão da Sé de Mariana. A outra justificativa para tal valorização é a própria trajetória histórica desse instrumento de grande porte.
Os registros históricos dão conta de que o instrumento em apreço foi concebido por Arp Schnitger, provavelmente em 1701, em Hamburgo. Dessa cidade alemã, o instrumento seguiu para Portugal, onde habitou igreja provavelmente Franciscana, como sugerem os anjos que o decoram. Posto à venda em 1747, foi comprado do organeiro João da Cunha, pelo Rei Dom João V. A intenção do Rei era enviá-lo à cidade de Mariana. Como o monarca veio a falecer antes de realizar o intento, seu filho, o Rei Dom José I, presenteou o instrumento a então recém-criada Diocese de Mariana. É digno de se ressaltar que já em 1748 a Sé de Mariana mantinha um organista, o Padre Manuel da Costa Dantas, e um mestre de capela, o Padre Gregório dos Reis Melo.
Embarcado em Lisboa em 1752, o instrumento desembarcou no Rio de Janeiro e foi transportado por terra até Mariana. Uma vez na cidade, foi instalado na Catedral da Sé em 1753, em balcão construído para tanto pelo arquiteto português José Francisco Lisboa, pai de Antonio Francisco Lisboa, o conhecido Aleijadinho. O balcão onde repousa o instrumento projeta-se na nave, do lado esquerdo da portada principal da igreja, em posição lateral ao coro, encostado à parede da tribuna superior. Embora os órgãos sejam concebidos para cada local de instalação, e este seja originário de outra igreja, o instrumento veio a adequar-se perfeitamente à Sé. É provável, portanto, que a igreja portuguesa que antes o abrigara tivesse um espaço interno de área equiparável à da catedral de Mariana.
Constituindo uma verdadeira preciosidade estética, não apenas por sua sonoridade mas também por suas características formais e plásticas, o órgão tem concepção e detalhes notáveis. Para referir sua construção, pode-se mesmo usar o conceito de arquitetura, o que é referendado pela própria nomenclatura adotada para o instrumento nas referências históricas e musicais. Vale exemplificar lembrando que esse instrumento tem uma fachada, composta da parte frontal da caixa do órgão e dos tubos aparentes. No caso do órgão de Mariana, tal fachada é dita hamburguesa, sendo assim caracterizada: torre central poligonal facetada com cinco lados, seguida de dois quadriláteros planos e superpostos de cada lado, flanqueados por duas torres salientes em ângulo reto.
Para o conhecedor de instrumentos musicais, a fachada descreve elementos fundamentais da composição sonora do órgão. Para os leigos, é um fator de deleite estético, ainda mais no caso do monumental instrumento da Sé de Mariana. Para tal efeito plástico, concorrem a composição tripartite da fachada no sentido da altura, revelando, em cada estágio, pontos focais de interesse diverso. No primeiro estágio, o olhar recai sobre os teclados, postos em dois níveis. No segundo, a visão é atraída para as portas do positivo de peito, pintadas nas cores vinho, verde e dourado, estampando chinesices. No terceiro estágio, chamam atenção os tubos maiores do instrumento, os dois anjos laterais, e os três que coroam esta etapa compositiva.
Os anjos do órgão da Sé de Mariana foram esculpidos na mesma madeira que constitui a caixa do instrumento. Todos eles apresentam bela pintura de encarnação e vestes ricamente drapeadas. O anjo central do coroamento porta uma trombeta e traz, na mão esquerda, o emblema da Terceira Ordem Franciscana (Figura 8). Esse símbolo aparece também sob a coluna central do instrumento, a dos tubos maiores. Nesse local, ele figura em uma prancha de madeira que fica exatamente acima da cabeça do organista, quando ele está tocando o teclado. O órgão se encontra em pleno funcionamento e em ótimo estado de conservação. Segundo informam as organistas, o instrumento pode demandar afinação a cada período de dez anos, porém, quanto mais tocado, menos manutenção requer. Nesse aspecto, o órgão repercute teorias patrimoniais que preconizam que o uso constante do bem colabora para a sua conservação.
Sendo um instrumento de tamanha importância histórica, é natural que o órgão Arp Schnitger suscite preocupações preservacionistas e conservacionistas. Estando, porém, em cidade de consagrada importância histórica, objeto de tombamento em nível nacional, tais preocupações encontram abrigo no campo maior da esfera urbana. A propósito, vale lembrar que a inscrição do sítio urbano de Mariana no Livro do Tombo se deu já em 1938, na época dos tombamentos históricos da chamada fase de ouro do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan (atual Iphan). Posteriormente, a cidade foi tombada como Monumento Nacional. Tais dados estão registrados no documento Bens Móveis e Imóveis Inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 1938 – 2009 (quinta versão, revista e atualizada). Para maior exatidão, vale reproduzir literalmente o registro do sítio histórico de Mariana no referido documento patrimonial:
Bem/Inscrição Conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade de Mariana
Nome atribuído Mariana, MG: conjunto arquitetônico e urbanístico
Outras denom. Centro histórico de Mariana; Sítio histórico de Mariana
Nº Processo 0069-T-38
Livro Belas Artes Nº inscr.: 062 ; Vol. 1 ; F. 012 ; Data: 14/05/1938
OBS.: “Monumento Nacional de acordo com o Decreto-lei nº 7713, de 06/07/1945” (17).
A catedral da Sé de Mariana, por sua vez, foi inscrita no Livro de Belas Artes em 1939, com os dados abaixo reproduzidos.
Bem/Inscrição Igreja da Sé
Outras denom. Igreja Catedral de Nossa Senhora da Assunção
Nº Processo 0075-T-38
Livro Belas Artes Nº inscr.: 263 ; Vol. 1 ; F. 045 ; Data: 08/09/1939
OBS.: “O tombamento inclui todo o seu acervo, de acordo com a Resolução do Conselho Consultivo da SPHAN, de 13/08/85, referente ao Proc. Administ. nº 13/85/SPHAN” (18).
Como se pode depreender da observação imediatamente acima, sendo um bem integrante da Sé de Mariana, o órgão Arp Schnitger é parte do acervo protegido pelo tombamento nacional. Assim sendo, as preocupações preservacionistas e conservacionistas relativas ao instrumento encontram amparo legal na legislação atinente. Não obstante, cumpre sempre enfatizar, por meio de projetos culturais e, sobretudo, de educação patrimonial, o conhecimento desse órgão e dos acervos da catedral e da cidade de Mariana.
Atendendo a semelhantes princípios culturais e educativos, tão caros à conservação patrimonial, a Sé de Mariana, detentora histórica desse notável instrumento, abriga semanalmente concertos ao órgão. Tais eventos são atualmente realizados às sextas-feiras às 11h30, e aos domingos, às 12h15. Duas organistas revezam-se nessa atividade, Elisa Freicho e Josinéia Godinho. Ambas são musicistas formadas no Brasil, com estudos complementares e especializações na Europa, em países como a França e a Alemanha (19).
Ao final de cada concerto, a organista do dia convida a plateia a subir ao coro e assistir a uma apresentação explicativa do instrumento. Muito didática, a explanação é inclusive aberta a perguntas, pronta e atentamente respondidas pela organista. Nessa oportunidade, o público pode visitar também a sala do fole, onde é detalhado o funcionamento, em tudo curioso, desse componente que consiste na parte produtora de ar do órgão.
Sendo todos os concertos introduzidos por uma fala da organista do dia a propósito do instrumento e do programa, quando a plateia tem estrangeiros, é comum que essa introdução seja igualmente feita em inglês e francês. Além disso, os concertos eventualmente recebem também a participação de músicos do Brasil e do exterior, incluindo apresentações de instrumentos tais como cravo e violino. Em 14 de novembro de 2010, por exemplo, a Sé recebeu a organista alemã Babette Mondry. Sendo inicialmente apresentada ao público por Josinéia Godinho, durante o concerto Babette Mondry teve todas as suas falas à plateia traduzidas pela organista brasileira. Por tudo isso, constata-se que esse evento de repercussão internacional está muito bem preparado para o público estrangeiro e à altura do prestígio de que desfruta.
Atrativo turístico incontestável da cidade, a Sé de Mariana é ressaltada em guias nacionais e internacionais, destaque para o qual o órgão Arp Schnitger e os concertos contribuem fortemente, sendo sempre salientados nessas publicações. O brasileiro Guia Brasil Quatro Rodas (20), por exemplo, cita-o logo na chamada de abordagem da cidade, conclamando o turista para que “não perca a apresentação” do órgão. O francês Le Guide du Routard (21) assinala que “o órgão barroco revive” com os concertos. O australiano Lonely Planet (22), um dos mais prestigiosos e populares guias do mundo, classifica o instrumento da Sé de Mariana de “fantástico”.
Com distinção nacional e internacional, um calendário ativo e constante de eventos, e promovendo o intercâmbio cultural de musicistas, os concertos da Sé de Mariana atendem a alguns princípios de conservação urbana contidos em cartas patrimoniais. A exemplo disso, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005) (23), insere, entre os seus objetivos, o de encorajar o diálogo entre culturas para garantir intercâmbios culturais mais amplos. Igualmente, ao manter um programa contínuo de concertos em uma cidade do interior de Minas Gerais, a Sé de Mariana contribui para a descentralização da vida cultural. Desse modo, atende a um princípio contido na Declaração do México (1985):
"É preciso descentralizar a vida cultural, no plano geográfico e no administrativo para assegurar que as instituições responsáveis conheçam melhor as preferências, opções e necessidades da sociedade em matéria de cultura" (24).
Concebido e construído em Hamburgo, o órgão da Sé residiu em igreja portuguesa e veio a se adaptar perfeitamente na catedral marianense, sendo um exemplar que dignifica, com rico percurso histórico, a organaria de Arp Schnitger. A esse instrumento se deve a longeva existência de concertos que já se tornaram um programa cultural da maior importância para a cidade. Exemplares dessa organaria encontráveis em cidades europeias igualmente proporcionam uma programação cultural aos espaços que os abrigam e aos municípios que os sediam, concedendo-lhes projeção internacional (25) Assim, seria interessante que todas essas cidades formassem uma espécie de aliança cultural, com fins patrimoniais, para a conservação dos órgãos, e também com fins turísticos. Ademais, o criador desses instrumentos, como já foi dito aqui, criou uma escola de manufatura de órgãos e é historicamente reconhecido por sua excelência. Por todos esses motivos, é desejável que os concertos da Sé sejam cada vez mais difundidos, chances inigualáveis que são para o conhecimento do órgão, da catedral e da cidade.
Considerando também a ampliação de público para a música clássica, para a qual os concertos da Sé contribuem, é igualmente desejável que maior ênfase seja dada na conquista do público jovem. Vistos o potencial de renovação e multiplicação de plateias vinculado a esse público, justifica-se plenamente a defesa dessa ênfase. Para tanto, há que se enfocar a música clássica também sob a ótica do entretenimento, tanto quanto se faz para a música pop. Essa visão já vem sendo defendida na literatura e na mídia especializada, esta última atualmente ainda mais capilarizada, com a popularização, em diversos canais da Web, de veículos de música clássica (26) A propósito, o resgate de uma reflexão constante em Pensando Clássicos vem corroborar a pertinência desse enfoque.
Ok, música clássica é arte - e das mais altas -, mas também é entretenimento - e dos mais instigantes.
É ousado e inteligente um promotor de concertos sinfônicos posicionar sua comunicação lado a lado de shows de rock e música pop, se seu objetivo é conquistar novas platéias jovens (27).
De minha parte, espero que este artigo possa contribuir para o maior conhecimento dos concertos da Sé de Mariana, aos quais desejo longuíssima vida. Trata-se de um voto que se justifica por todas as razões já detalhadas neste texto. Além disso, ele repercute um desejo pessoal: espero sinceramente que o único meu sobrinho, hoje com um ano e três e meses, possa, em sua futura juventude, desfrutar plenamente dos concertos da Sé de Mariana (28).
Notas
NA
Dedicado, com todo amor, ao meu sobrinho Gabriel Ferri Lordello, por quem eu desejo longa vida aos Concertos da Sé de Mariana.
1
Para conhecer mais sobre a bela Serra do Espinhaço, visite o blog da expedição Desafio do Espinhaço. Disponível em: <http://desafiodoespinhaco.blogspot.com/>. Acesso em: 5 mar. 2011.
2
BRANT, Chico. Mariana, a católica. In: CASA E JARDIM. Minas Colonial. São Paulo: Efecê Editora, [198-], p.89-99.
3
O governador é citado pelo nome de Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho no texto de BRANT, op. cit., nota 3. Em texto de Josinéia Godinho, sob orientação do Prof. José Arnaldo Coelho (2011) o nome que consta para o governador é Antônio Francisco de Albuquerque. Cf. GODINHO, Josinéia. Catedral da Sé de Mariana. Disponível em: <http://www.orgaodase.com.br/br/?page_id=15>. Acesso em: 9 mai. 2011.
4
Brant igualmente cita alguns outros registros históricos do evento. Cf. BRANT, op.cit., nota 3, p.89-99.
5
GODINHO, Josinéia. Catedral da Sé de Mariana. Disponível em: <http://www.orgaodase.com.br/br/?page_id=15>. Acesso em: 9 mai. 2011.
6
TELLES, Augusto Carlos da Silva. Atlas dos monumentos históricos e artísticos do Brasil. Rio de Janeiro: FENAME/DAC, 1975, p. 228.
7
É importante frisar que não é permitido fotografar o interior da Catedral da Sé, interdição esta plenamente justificável por motivos de conservação patrimonial. As fotos feitas para este artigo foram autorizadas por motivo de pesquisa, sendo todas elas realizadas sem flash e na presença de funcionários da Arquidiocese.
8
Para o nome do pintor, é adotada, neste artigo, a grafia Ataíde, mais usual na voz corrente, a qual é encontrada nas seguintes obras: UNESCO. Patrimônio mundial no Brasil. 3. ed. Brasília: UNESCO, 2004; BRANT, op. cit., nota 3, p.89-99; TELLES, op. cit., nota 7; BANDEIRA, Manuel. Crônicas da província do Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Cumpre registrar, no entanto, que a grafia encontrada no epitáfio do pintor, na Igreja de São Francisco de Assis, em Mariana, é Athayde.
9
BRANT, op. cit., nota 3, p.95.
10
Cf. FREIXO, Elisa. Órgão Arp Schnitger, Sé de Mariana – Minas Gerais: aspectos históricos e técnicos. Mariana: Arquidiocese de Mariana/ Studium Chorale, 2002.
11
É adotada aqui a grafia Huess, encontrada nas seguintes obras: RANDEL, Don Michael. The Harvard biographical dictionary of music. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 802; FREIXO, op. cit., nota 11. Vale registrar duas outras grafias encontradas para o sobrenome desse organeiro: Hus e Huss. A grafia Hus surge no site Arp Schnitger (Disponível em: <http://www.arpschnitger.nl/schnintro.html>. Acesso em 13 jun. 2011.) A grafia Huss aparece nos sites Órgão da Sé (Disponível em: <http://www.orgaodase.com.br/br/?page_id=334>. Acesso em 13 jun. 2011) e Pipe Organs (Disponível em: <http://mypipeorganhobby.blogspot.com/2009/11/bielfeldt-ahrend-1736-19871990-organ-in.html>. Acesso em 14 jun. 2011).
12
RANDEL, Don Michael. The Harvard biographical dictionary of music. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 802. A Encyclopædia Britannica também registra esse número (Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/527871/Arp-Schnitger>. Acesso em: 7 jul.2011.) Freicho, por sua vez, cita a cifra de 170 instrumentos atribuídos ao organeiro alemão (FREICHO, op.cit., nota 11, p. 8.).
13
ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA. Arp Schnitger. Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/527871/Arp-Schnitger>. Acesso em: 7 jul.2011.
14
Segundo Freicho (op. cit., nota 11, p.8), “dos mais de 170 instrumentos que [Schnitger] construiu, reformou ou ampliou, existem hoje cerca de 70 em diferentes estados de conservação”. No site Órgão da Sé (2011), a página Arp Schnitger informa: “De todas estas obras nos restaram ainda 30, inteiras ou parcialmente conservadas e em Mariana encontra-se a única delas a estar fora da Europa” (Disponível em: <http://www.orgaodase.com.br/br/?page_id=334>. Acesso em 20 mai. 2011). O site Geistesblitze registra um total de 35 instrumentos ainda existentes, em diferentes estados de conservação (Disponível em: <http://www.lb-oldenburg.de/oldenburger-geistesblitze/personen/schnitger2.htm>. Acesso em: 31 mai. 2011.)
15
Tradução de Frederico Dalton de Moraes. No original: Trotz zeitbedingter späterer Eingriffe und Bestandsverlusten bestehen heute noch etwa 35 Schnitger-Orgeln (darunter in Ganderkesee und in Dedesdorf). Die meisten wurden inzwischen nachdem bestmöglichen Kenntnisstand restauriert und spiegeln weitgehend denursprünglichen Zustand. (Disponível em: <http://www.lb-oldenburg.de/oldenburger-geistesblitze/personen/schnitger2.htm>. Acesso em: 29 mai. 2011.)
16
A informação da unicidade é repassada pelas organistas nos concertos da Sé e consta da página de apresentação do instrumento no site Órgão da Sé (Disponível em: <http://www.orgaodase.com.br/br/?page_id=45>. Acesso em: 14 jun. 2011).
17
LIMA, Francisca Helena Barbosa; MELHEM, Mônica Muniz; POPE, Zulmira Canário (Orgs). Bens móveis e imóveis inscritos nos livros do tombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 1938 – 2009. 5. ed. rev. e atualizada. [Versão Preliminar] – Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2009, p.43.
18
Ibid., p. 44, grifo nosso.
19
Os currículos das organistas podem ser acessados na página Pesquisa do site Órgão da Sé. Disponível em: <http://www.orgaodase.com.br/br/?page_id=381>. Acesso em 16 jun. 2011.
20
ERBETTA, Gabriela (Ed.). Guia Brasil 2011. São Paulo: Abril, 2011, p. 486- 488.
21
BAIETTA, Cristiana. Le Guide du Routard Brasile. Milano: Touring Editore, 2005, p. 227-228.
22
ST LOUIS, Regis. (Org.). Lonely Planet Brazil. Victoria: Lonely Planet Publications, 2005, p.243 -244.
23
UNESCO. Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. Disponível em: <http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=31038&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>. Acesso em 3 jun. 2007.
24
UNESCO. Declaração do México. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=6E75994544E8F3FD41C27179FA2A6916?id=255>. Acesso em 27 jun. 2011.
25
Cf. Organ Art Library. Disponível em: <http://www.organartmedia.com/hus-schnitger>. Acesso em: 6 jul. 2011; Pipe Organs. Disponível em: <http://mypipeorganhobby.blogspot.com/2009/11/bielfeldt-ahrend-1736-19871990-organ-in.html>. Acesso em 4 jul. 2011; Hauptwerk. Disponível em: <http://www.hauptwerk.com/news/news/2010/10/14/1675-88-hus-arp-schnitger-now-available/>. Acesso em 2 jul. 2011.
26
Cf. FISCHER, Heloisa. Revista VivaMúsica. Disponível em: <http://www.vivamusica.com.br/index.php/revista>. Acesso em: 6 jul. 2011; ____.VivaMúsica. Disponível em: <http://cbn.globoradio.globo.com/colunas/vivamusica/VIVAMUSICA.htm>. Acesso em: 4 jul. 2011; ____.VivaMúsica! e o Mundo dos Clássicos. Disponível em: <http://radiomec.com.br/vivamusica/index.php>. Acesso em: 2 jul. 2011.
27
Id. Mendelssohn ferve na Lapa. In: Pensando clássicos. Rio de Janeiro: Instituto VivaMúsica. Disponível em: <http://pensandoclassicos.blogspot.com/2009/03/mendelssohn-ferve-na-lapa.html>. Acesso em: 6 jul. 2011.
28
Eu agradeço à Assessora de Imprensa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES), Ana Luiza Freitas, por seu empenho na comunicação com a Arquidiocese de Mariana, imprescindível para que eu pudesse realizar as fotografias da pesquisa originária deste artigo. Agradeço a Frederico Dalton de Moraes, que gentilmente traduziu os textos em alemão pesquisados para este trabalho. Sou imensamente grata à minha amiga Rosa Zambraño Valenzuela, por todo apoio. A todos, muito obrigada!
Sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em arquitetura (UFRJ, 2003) na área de teoria e projeto, doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008), na área de Conservação Urbana. Pesquisa, sobretudo, os seguintes campos: Memória e Patrimônio Urbanos; Representações Sociais de Arquitetura e Cidade; Poéticas Visuais de Arquitetura e Cidade. Atualmente é analista de projetos e pesquisas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES).