A ruta 10 é composta de retas que se perdem no horizonte e parecem continuar indefinidamente, mergulhando no coração da América do Sul. É composta de choupanas de índios miseráveis, de casebres de madeira, de paraguaios pobres e imensas casas de alvenaria, de menonitas loiros, loiríssimos.
A ruta 10 é composta de “comedores” que servem “pollos” e “parrilladas”. De gente cruzando a estrada, de motos dos pobres e das SUVs dos abastados. É a artéria do país, a seiva das populações ribeirinhas que assistem a ruta passar.
As cidades se alongam ao longo da ruta que é o centro e a periferia dessas mesmas cidades do caminho. O único traço urbanístico. As transversais são ruas de terra de traçados incertos, sem meio-fio para se fiar no próprio traço. As casas são voltadas para a ruta, esperando do que viver, vivendo dela.
Na ruta, motos, motos, muitas, levando do tudo do que viver. Trafegam incertas pelo acostamento como pedindo desculpas aos veículos potentes que se assenhoram dela. Moto é pobre, moto é o que leva e traz do que viver. Conduz a vida, conduz à morte.
Ruta cravejada de estelas e capelinhas em memória dos mortos, lembrando que se morre buscando do que viver. Muitos agora jazem em cemitérios sem muros, com traçados incertos, na borda da ruta 10. Viveram nela, estão mortos nela.
Vilarejos se revezam com imensos espaços, às vezes, doloridos, desolados. Horizontes vazios da paisagem que se alonga pelo cerrado calcinado pelo fogo fácil para virar pasto, mas virou só desolação e com gado buscando do que viver à beira da ruta e beirando o perigo (para quem dirige e para o bicho que pasta).
A ruta 10 leva a outra, a ruta 9 que mergulha no Chaco. Leva a outra, ruta 5, que desce em direção a Assunção. Leva a outra, ruta 3, que leva ao cerrado do Brasil.
É da ruta que se avista as colônias dos menonitas com sua riqueza de labor cooperativo. São trechos sem motos, sem vilarejos alongados na ruta, sem casebres, sem choupanas ou sem ruas transversais incertas. Casas de alvenaria contrastando pela sua arquitetura e seus gramados impecáveis. Nas garagens SUVs e tratores novos. Loiros, loiríssimos vestidos com suas roupas de menonitas para o culto nas manhãs de domingo. Antes do culto, crianças loiras, loiríssimas assistem Pokemon na TV e pais loiros, loiríssimos, conversam num dialeto ininteligível e dividem o tereré paraguaio. Outro país na mesma ruta que passa, outros paraguaios: “Yerba Mate”, dialeto e Jesus.
Pela ruta, se alongam os locais de culto de outras religiões. Pobres “capillas” de madeira ou de alvenaria com seus gramados aparados e pintadas de cores singelas, cores da devoção. Os oratórios feitos de mãos mestiças dos fiéis. Nossa Senhora fala a língua dos homens e o guarani se mescla ao castelhano nos recados murais.
Sinais dos tempos: templos neopentecostais se alongam na ruta. Filiais de igrejas brasileiras e se misturam às “capillas”. Compartilham a mesma modéstia católica, compartilham a mesma pobreza. Ambas “miram” de longe as igrejas menonitas dos loiros loiríssimos.
Na ruta 10, o trabalho não cessa. Sábado à noite, domingo de manhã. O sétimo dia da semana é só mais um quando se busca do que viver. E na sua borda que acontecem as festas. A lei também é ali; a política; o médico; a “carnicería”; a tienda de moda; a “gomeira”; o “taller” de motos; o “taller de coches”; o batizado; o féretro.
A ruta passa pela vida e registra a morte. Passa diante dos alpendres dos casebres, “casitas” de madeira. Seus ocupantes “miram” os carros que passam, a ruta que passa. Olhares de imensa curiosidade, procurando o ronco grave de Harley, que passa pela ruta, que passa pela vida. Acenam como se um primo estivesse passando ao largo, roncando grosso o motor Harley.
A garota sai torcendo os longos cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar, ainda molhados do banho, para olhar o ronco que passa. Os meninos que correm pelas cercas incertas das casas para “mirar” o ronco que passa. Som estranho no cerrado calcinado das retas que se perdem no horizonte.
Outros garotos, em motos sem placa e sem idade para ter licença, esticam os braços, saudando um improvável companheiro de pilotagem, mais velho e legalizado com “su permiso” para ingresso no país da ruta 10. Senhoras olham humildemente o ronco que passa: curiosidade controlada pelo recato cristão.
É na ruta 10, que vemos os nomes que nos lembram velhos manuais de História da 2ª série do ginásio: “Lomas Valentinas”, “Riachuelo”, “Cerro Corá” (na ruta 3 há o Parque Nacional e memorial dedicado ao “Mariscal Francisco Solano Lopes”, herói nacional), nome da última batalha de uma guerra no meio do nada, que não trouxe nada e foi travada para nada. Aliás, heróis só existem nos textos vazios de batalhas reais dos historiadores. O Memorial é feito de bustos, desenhos, estelas, pinturas, textos e imagens daguerrotípicas para lembrar da guerra no fim do mundo, no meio do cerrado agora calcinado. Para lembrar que se morre por nada quando não se busca do que viver. Para lembrar que a glória só existe nos textos vazios de batalhas reais dos historiadores.
Enquanto isso, a ruta 10 passa pela vida dos ribeirinhos que acenam alegremente para o ronco de um motor estrangeiro.
sobre o autor
André Luiz Joanilho é professor associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.