Em meados de 1976, em Bolonha, Itália, se realiza um seminário sobre as ditaduras na América Latina. Éramos quatro os representantes do Brasil: Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Ivan Ribeiro e eu, então conhecida como Marzia Cioni.
No primeiro dia, em um intervalo das intervenções, somos procurados pelo Dr. Arnoaldo Berti, advogado italiano herdeiro da propriedade situada em Monte Castelo, que hospedou os pracinhas brasileiros durante a Segunda Guerra Mundial. Foi em sua casa naquela montanha dos Apeninos que se montou a base para as batalhas e ataques aos alemães. Praticamente era a frente de batalha dos brasileiros.
Após esse preâmbulo, o Dr. Berti simplesmente nos oferece o terreno pertencente a sua família para se erguer um monumento aos pracinhas que tinham ido para ali defender a Itália dos nazistas. Perguntamos por que não fazia a proposta à embaixada brasileira e ele nos responde que sua oferta já tinha sido refutada; e complementa: “procurei vocês não somente por serem de esquerda, mas porque eles não aceitaram; então pensei que se as instituições não a aceitam, eu a ofereço ao povo”.
Ainda sem crer no que estamos vivenciando e orgulhosos do presente, ouvimos suas condições: quer que o monumento seja desenhado por Oscar Niemeyer e tenha inscrita a frase “per i brasiliani morti difendendo l’Italia dal fascismo e ai brasiliani che oggi muoiono sotto una dittatura fascista”. Ou seja: “para os brasileiros mortos defendendo a Itália do fascismo e aos brasileiros que hoje morrem sob uma ditadura fascista”. E isso nos deixou mais emocionados ainda. E foi essa frase a causa da recusa da embaixada brasileira.
Aceitamos. Eu fico responsável pelas tratativas com Niemeyer, via Luís Carlos Prestes, secretário do Partido Comunista Brasileiro, então exilado em Moscou. Primeiro ato: a tradução da carta de Arnoaldo Berti a Prestes, onde, além de oferecer o terreno, conta histórias dos pracinhas (1).
Não demora muito e Prestes me avisa que já tinha contatado Niemeyer e que em breve um enviado do arquiteto entraria em contato conosco. Mais alguns dias se passam e recebo a visita de Marcos Jaimovitch, companheiro arquiteto responsável pelas obras de Niemeyer na Argélia; a seguir, acompanhados de Bertti, partimos para Porreta Terme, na província de Bolonha, onde paramos para tomar um café. Berti aproveita para nos mostrar onde, uma vez por mês, os soldados brasileiros desciam para tomar banho... Visitamos o local rapidamente e nos juntamos a quem nos acompanharia até Monte Castello.
Subimos mais um pouco a montanha e chegamos ao local da casa “dos pracinhas” – Guanella, é assim que se chama. Em área muito acidentada, uma pequena casa típica da montanha apeninica desafia o vale lá embaixo. O arquiteto precisa verificar as características do terreno e mandar as informações necessárias a Niemeyer, para que ele pudesse realizar o projeto. E assim é feito.
Algum tempo depois chega a notícia que Niemeyer viria à Europa para inaugurar a sede do Partido Comunista Francês em Paris e a sede da Mondadori na Itália. Aproveitaria a ocasião e viria até Bolonha para visitar Monte Castelo.
A euforia que Berti e eu sentimos é indescritível. O PCI começa a preparar a recepção para a chegada do arquiteto e pesquisa como era a bandeira do Partido Comunista Brasileiro para confeccionar algumas unidades que as crianças usariam para saudá-lo... Um carro iria me conduzir até ao aeroporto... Eu já estou pronta quando chega a notícia que o avião francês tinha partido sem ele, pois se lembrou, já no aeroporto, que não gostava de andar de avião... Não podem imaginar nossa decepção e tristeza.
Outro ano se passa e começamos a ver o resultado das nossas lutas contra o regime militar. Já no fim de 1979 Prestes volta ao Brasil. Com a derrubada da ditadura, eu também posso retornar ao Brasil após dez anos de ausência. Aproveito e vou visitar Prestes. Entre os argumentos de conversa não pode faltar o “monumento aos pracinhas na Itália” e ele me confirma o interesse e disponibilidade de Niemeyer a respeito.
Dois anos depois, novamente de férias no Rio, acompanhada de Givaldo Siqueira vou a um seminário no centro do Rio, onde encontramos Niemeyer e eu volto ao tema. O arquiteto explica que para desenhar o monumento precisa conhecer melhor o terreno, pois as informações dadas pelo seu enviado eram insuficientes, assim como as fotografias feitas; também precisa de fotos aéreas, pois o terreno parece ser muito irregular... e é verdade.
Ficamos com a certeza que em breve receberíamos o projeto na Itália. Volto para Bolonha e conto tudo a Berti, que toma as providências necessárias e eu não me preocupo mais com o caso.
Além de uma de Le Corbusier, em Bolonha já existem obras de Alvar Aalto, finlandês, e de Kenzo Tange, japonês. No sonho de Arnoaldo Berti, o herdeiro da Guanella, Oscar Niemeyer completaria o trio dos melhores arquitetos dos anos 1970...
Muitos anos depois, já em fevereiro de1999, é colocada a pedra fundamental de um monumento aos Pracinhas em Monte Castello. O projeto, porém, era assinado por outro brasileiro, uma mulher, Mary Vieira. O medo de avião foi o principal motivo que impediu Niemeyer de projetá-lo.
nota
1
Ver: ARNOALDI BERTI, Francesco. Carta para Oscar Niemeyer. Sobre o monumento em Monte Castelo em homenagem aos pracinhas. Drops, São Paulo, ano 17, n. 110.02, Vitruvius, nov. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.110/6274>.
sobre a autora
Dulce Rosa de Bacelar Rocque (Belém, 1943–), a “Marzia Cioni” durante o período mais autoritário do regime militar, é economista formada pela UFPa (1967), com cursos de especialização em Economia Política em Moscou (1969 a 1971, quando conheceu e frequentou a casa de Luís Carlos Prestes) e mestrado em Direito Público, em Bolonha, além de uma especialização em Programação Econômica do Território em Urbino. Saiu do Brasil em 1969, para estudar em Moscou e viveu na Itália de 1971 até 2004, entre Piacenza e Bolonha. Voltou para Belém em 2005 e fundou uma associação para defender o patrimônio histórico do bairro mais antigo da cidade.