Li no Wikipedia que o Lago de Sobradinho é um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 400 km de extensão e uns 4.200 km2 de superfície. Foi concluído em 1979 e inundou as cidades baianas de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé e o então povoado de Sobradinho. Outro website afirma que foram relocadas 70 mil pessoas.
E quantas teriam sido as pequenas comunidades alagadas?
Há pouco tempo eu conheci pessoas que nasceram naquelas quatro cidades que ficaram sob o lago e que hoje moram nas quatro construídas pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – CHESF. Cidades novas que pegaram a rebarba do urbanismo modernista e que herdaram o nome das suas antecessoras e o ressentimento dos antigos moradores. Todos com quem conversei falaram da inundação com denso sentimento de perda e melancolia. Quase todos falaram de pessoas que, por se recusarem a sair, tiveram que ser retiradas de barco, que tomaram veneno ou que perderam tudo e que ainda não foram indenizadas pela CHESF.
Fui a algumas vilas de pescadores daquelas quatro cidades e de Juazeiro. Os dias miseráveis, as pessoas “sujas de tão pobres”, a vida de bicho de alguns ribeirinhos naquele lugar belo de tanta água, naqueles ambientes tão idílicos, são um bug na minha cabeça.
Eu acredito que naquelas comunidades as pessoas são solidárias, mesmo. É evidente que nos lugares de maior carência há uma necessária generosidade que a classe média desconhece. Mas como é possível que pessoa com sólida habitação própria, vizinha de uma que está para desabar, pedir casa, uma casa inteira, para o neto de 13 anos ou para o jovem amante que, coitado, é tão tímido que não fala com estranhos. Tem uma música de Arnaldo Antunes que pergunta “será que é só pra manter o combinado que pra ter o chupador tem que nascer o já chupado?” Mas é só uma música que eu lembrei, não estou perguntando isso. E desde que tenho consciência de mim não me decido por amar o homem ou a humanidade.
As pessoas que nos acompanharam pelas vilas de pescadores faziam questão de nos mostrar as mulheres tecendo rede de pesca. E se mostravam satisfeitas quando nos viam fotografando aquelas cenas. A tessitura das redes me pareceu sintetizar relações entre atividade produtiva, estrutura física da casa, espaço público, questões de gênero e de vizinhança. Aos meus olhos adaptado ao fabricado, principalmente ao fabricado do outro lado do mundo, aquele trabalho é encantador. Mas é bom dizer que muitas mulheres estavam com LER por causa dele.
Na vila de Aldeia, em Sento Sé, nos apresentaram a João, um senhor que comanda a Festa do Marujo na comunidade. Quando estávamos conversamos com pessoas de lá, ele pediu para que os moradores tivessem cuidado onde construíssem as casas, que era “pra deixar um lugar para uma praça”. Em nenhum lugar que fomos uma pessoa tinha demonstrado preocupação com o espaço de sua comunidade com tanta espontaneidade. Isso me aqueceu o peito por agradáveis horas.
Não tem transporte regular de um lado para o outro do Lago de Sobradinho. A travessia de veículos pode ser considerada inexistente porque o único barco que a faz cobra R$ 300,00 só a ida e leva, no máximo, dois carros por vez. E, pela largura do barco, metade da roda do carro fica do lado de fora. Por conta disso, tivemos que programar sete dias de viagem por cinco municípios a partir dos dois únicos dias que haveria barco para atravessar o lago de Remanso para Sento Sé.
Atravessamos, numa sexta-feira, para ir à última cidade do roteiro – Sento Sé. Estudei a água que tinha entre mim e o barco, esperando aparecer o que é que nos levaria até ele. Nada. Quase acredito que a pessoa que tinha levado minha mala também nos levaria no colo. Não, melhor tirar o tênis, levantar a barra da calça e ir para o barco. Foi pitoresco ir para o local de trabalho num barco carregado de madeira, telha, uns 30 bodes na entrada do banheiro, colchão, sacos de pipoca Guri, panelas etc.
Não estava ventando; atravessar o lago foi uma das recompensas da viagem. A água estava com uma textura de seda. Passamos pertinho dos dois reservatórios de água que marcam onde estava a Remanso velha. Tinha perguntado a Danduca, quem nos acompanhou em Remanso nova, como é que eles ainda não tinham desabado. Ela foi enfática: “não, não desaba não, aquilo é um símbolo. Um entortou, mas não desaba não. Às vezes vai um pescador lá, arma uma rede e dorme lembrando. Não desaba não”.
Não tem artista que conceba melhor monumento às cidades que desapareceram do que aqueles reservatórios. Nunca vi monumento mais carregado de melancolia e resignação do que eles.
Hora e pouca de travessia, já depois dos reservatórios, desligam o motor, ninguém diz nada. Vão encostando o barco numa ilha, num lugar sem sinal de vida humana. O dono do barco desceu na água para empurrá-lo e pensei por uns dez minutos que ali era o desembarque. Mas então o dono começou a descarregar os bodes. Espetáculo! Cada vez que vejo uma situação dessa, para mim nova em todos os sentidos, se abre um mundo do que ainda falta eu ver. Como é que pode, até hoje, eu nunca sequer ter vislumbrado que um caso daquele poderia acontecer e ser bem comum?
Teria muito mais para contar sobre esses lugares ao redor do Lago de Sobradinho. Das crianças que sempre iam atrás da gente e daquela que pegou forte e de surpresa nos meus dedos indicador e médio, dos lugares onde a eletricidade era transmitida por arame farpado, da sensação de andar por aquelas cidades, digamos, modernistas. Mas deixa pra lá. Esse texto já tem que ser abandonado.
Só uma última coisa. O Lago de Sobradinho, aquele alargamento do Rio São Francisco no mapa, antes de dividir a Bahia com Pernambuco, tem quatro dimensões.
sobre a autora
Sanane Santos Sampaio possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (2008) e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (2013). Trabalhou como arquiteta e urbanista na Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia – SEDUR, desenvolvendo e acompanhando ações em habitação de interesse social, momento em que este texto foi escrito. Foi professora substituta Faculdade de Arquitetura da UFBA e tem experiência na elaboração de planos e projetos urbanos e na análise de questões urbanas. Atualmente é doutoranda no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.