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architectourism ISSN 1982-9930

Fazenda Babilônia, Pirenópolis GO. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

english
The present text looks at three works of public sculpture in Berlin. The three examples explore the “negative form” as a way of conveying political content in sculpture, this being, according to S. Michalski, a tendency in contemporary public sculpture.


how to quote

SALGUEIRO, Valéria. A forma negativa. Visitando a escultura pública de Berlim. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 116.03, Vitruvius, nov. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.116/6267>.


Berlim, assim como Chicago, é uma cidade que se destaca pela impressionante quantidade de obras de escultura pública dispersas pela cidade, inclusive naqueles bairros menos turísticos e mais distantes do centro. Boa parte da intensa atividade de produzir escultura e posicionar obras pelo espaço urbano berlinense decorre do programa federal alemão de fomento à arte em espaços públicos, denominado Kunst am Bau (literalmente Arte na Obra). Esse programa, que se iniciou no período do regime nazista, na década de 1930, e já sofreu diversas reformulações e interrupções, especialmente durante a II Guerra e os anos difíceis do pós-guerra, destina-se a apoiar a produção de obras de arte em projetos públicos de arquitetura, urbanismo e paisagismo. Esse suporte se dá essencialmente com a destinação de um percentual em dinheiro do custo total do projeto para a aquisição de uma ou mais obras a serem integradas ao projeto em sua implantação.

Pesquisando o impacto dessa significativa política alemã de incentivo artístico-cultural, realizei uma visita a Berlim que possibilitou elaborar um extenso trabalho de fotografia de obras de escultura dispersas pela cidade, buscando daí colher material para pesquisas que venho fazendo sobre o tema há já alguns anos. O presente texto decorre desse trabalho de pesquisa in loco, fotografia e estudo de monumentos e arte pública na Alemanha durante um intercâmbio científico de três meses realizado em 2012-2013 em Berlim, com o apoio da Capes e do DAAD (Deutscher Akademischer Austauscher Dienst), junto ao Institut für Kunst- und Bildgeschichte na Humboldt-Universität zu Berlin. Com a ajuda de guias de arte pública na cidade, e com o apoio de textos do autor Sergiusz Michalski (1), foi possível descobrir e conhecer um fantástico manancial de obras reveladoras de tendências no campo da escultura pública contemporânea, entre as quais a tendência de resgatar o conteúdo político da escultura pública, algo que o movimento modernista e a abstração na arte por décadas negaram interrompendo uma tradição de séculos.

Em sua obra Public Monuments, Sergiusz Michalski tece considerações sobre a relação direta no século 20 entre a ascensão da escultura pública neutra do ponto de vista ideológico, que teve como auge os anos 1970s, e o enfraquecimento das funções do monumento público. O autor destaca algumas tendências na escultura pública contemporânea, sobretudo após a reunificação da Alemanha (1990), que todavia apontam para um ressurgir da preocupação com o debate político e a disposição em debater no âmbito público aspectos traumáticos da história alemã mais recente. Segundo o autor, tendências recentes são reveladoras de que essa arte, sob novas linguagens, está mais viva do que nunca. Que tendências da escultura pública contemporânea seriam essas? Como se manifestam? Michalsky destaca especialmente três delas, que denomina por espelhamento, invisibilidade e inversão, cujo traço comum, pode-se afirmar aqui, é o fato de que todas perseguem uma forma menos óbvia e direta de conduzir a discursividade da obra.

Inspirado nas ideias de Michalsky, o presente trabalho observa três obras públicas dispostas em locais abertos, em distintos locais de Berlim, que exploram a linguagem da “forma negativa”, em que é o vazio que elabora o assunto, por mais paradoxal que isso possa parecer sendo a escultura tradicionalmente caracterizada por “volume no espaço”, e não pelo vazio. Tratam-se de obras que restauram o conteúdo político dos monumentos, neutralizado pela ascensão da escultura abstrata, e colocam em evidência o quanto o vazio pode ser significativo e abrigar uma ideia, exemplificando linguagens em busca de debate e de espaço público de discussão numa época que não mais apresenta o otimismo e a euforia que impregnou a escultura pública do final do século 19 até a I Guerra, mas que, no entanto, não abre mão do papel que essa modalidade de arte sempre teve por séculos a fio – o de ser um veículo essencialmente singular, porque arte, de projeção de ideias e de geração de debate político. As três obras aqui abordadas são o monumento Plataforma 17, o monumento a Emal Kemal Altun e o monumento ao Desertor Desconhecido.

Monumento Plataforma 17

Concebido para lembrar os mais de 50.000 judeus berlinenses embarcados para a morte na estação de Grunewald  entre 1941 e 1945, a Plataforma 17 é um memorial localizado ao lado da estação de metrô de Grunewald, na periferia oeste de Berlim. O memorial de 1991 e inaugurado em 1998 foi concebido pela artista polonesa Karol Broniatowski. Sua composição compreende os trilhos e a plataforma da estação de trem de carga de onde partiam composições cheias de judeus alemães para distintos campos de concentração e de extermínio do regime nazista durante os sombrios anos da II Guerra. Inscrições em peças de ferro fundido no chão da plataforma, regularmente dispostas sobre o piso, informam a data, o número de judeus deportados e o destino de cada trem levando pessoas que nunca mais voltariam a Grunewald, pois seu fim eram os campos de Auschwitz e Theresienstadt.

Monumento Plataforma 17
Foto Valéria Salgueiro

Para subir à plataforma é necessário passar por um paredão de concreto, um muro alto com uma textura elaborada com sulcos diagonais, sugestiva de pedra toscamente cortada, sobre a qual identificamos vazios, ou formas negativas, alusivas ao corpo humano, algumas mais claramente sugeridas, outras em que apenas a cabeça e o tórax são identificáveis.  O paredão com as formas negativas tematiza as inúmeras marchas de judeus em direção à plataforma para embarque em trens de carga rumo aos campos de concentração. Uma placa de bronze apresenta o seguinte texto:

“À memória dos mais de 50.000 judeus de Berlim que, entre outubro de 1941 e fevereiro de 1945, saíram predominantemente da estação de carga de Grunewald para serem deportados para seus locais de desaparecimento e assassinados pelo Estado nacional-socialista. Para nos advertir de resistir com coragem e sem hesitação a cada negligência para com a vida e a dignidade humanas” (2).

Monumento Plataforma 17
Foto Valéria Salgueiro

As figuras sobre o muro de concreto são identificadas pela falta, e não pela presença, segundo a linguagem da forma negativa, como observada por Michalsky, um recurso técnico escultórico cujo impacto expressivo revela-se dramático, certamente bem maior do que o seria se figuras estivessem presentes em volume cheio da forma, da figura a pleno volume, como é tradição na escultura pública desde os antigos, sempre que se busca prestar homenagem e imortalizar. A eficiência da linguagem é imediata, pois o vazio, ao invés do relevo, conduz as pessoas a projetarem suas próprias imagens, gerando uma atmosfera de consternação e tristeza no local. É difícil imaginarmos alguma forma positiva mais eficiente na capacidade de conduzir com tanto impacto e veemência o sentido pretendido para o monumento, de evocação do vazio que a lembrança desse trágico episódio deixou não só para os judeus e suas famílias, mas para todas as pessoas, mesmo de gerações mais recentes. Sem dúvida, a forma negativa das figuras no paredão do memorial, enquanto linguagem, alcança, assim, um nível retórico plenamente compatível com os números e o sofrimento da tragédia ali lembrada.

Monumento a Emal Kemal Altun

Um outro caso de forma negativa foi concebido também na década de 1990 para lembrar o drama da condição do refugiado de regimes autoritários e de guerras, uma catástrofe que vem se acentuando cada vez mais com o passar do tempo, como indicam, por exemplo, as catastróficas travessias do Mar Mediterrâneo que se tornaram notícia diária na mídia. A obra a que nos referimos foi erguida em Hardenbergstrasse, rua no bairro de Charlottenburg, em Berlim, inaugurada em 1996, da autoria do escultor turco Akbar Belkalem. Trata-se de uma obra em memória a Emal Kemal Altun, jovem turco engajado politicamente que em 30 de agosto de 1983 atirou-se da janela do sexto andar do prédio do Ministério da Justiça de Berlim, no local onde se encontra o memorial. A motivação do suicídio relaciona-se ao receio dele ser devolvido à ditadura militar turca diante da recusa alemã em lhe dar asilo político. Esse destino trágico foi, aliás, não apenas o de Emal Altun, mas o de outras dezenas de pessoas de origem turca que viviam na Alemanha em condição semelhante, perseguidas pelo ditadura turca, às quais fora recusado o asilo. Nesse sentido, o memorial, ainda que dedicado a Emal Altun, remete à precária situação dos opositores da ditadura turca e por ela perseguidos.

Monumento a Emal Kemal Altun
Foto Valéria Salgueiro

O monumento consiste em um bloco de granito de aproximadamente 40 centímetros de espessura, com cerca de um metro de largura e dois metros de altura. A forma negativa no bloco, o vazio de matéria, alude ao corpo do jovem turco desesperado em queda do prédio de onde se atirou. O vazio da cabeça estabelece uma referência imagética à queda do alto do prédio, associada aos braços e mãos, em suave relevo, voltados para baixo, assim conduzindo o sentido de um mergulho, literalmente, para a morte, uma trajetória que, como dito acima, foi a de outros refugiados da Turquia nos anos de 1980, de tal modo que o monumento a Emal Kemal Altun pode ser estendido à causa de todos os que se tornam vulneráveis à deportação e a não tem uma pátria onde viver. A representação dessa situação com o recurso da forma negativa potencia a percepção pelo espectador da angustiante condição da vítima, abrindo-lhe a possibilidade, como no caso anterior, de construir sua própria imagem do sofrimento do suicídio por motivos políticos.

Monumento ao desertor desconhecido

Monumento ao Desertor Desconhecido
Foto Valéria Salgueiro

O monumento ao Desertor Desconhecido data de 1991 e se encontra em um dos lados do Platz der Einheit (Praça da Unidade), em Potsdam, cidade situada a sudoeste de Berlim. Sua instalação deve-se ao Verein zur Förderung Antimilitaristischer Traditionen der Stadt Potsdam (Associação para o Desenvolvimento de Tradições Anti-militaristas na Cidade de Potsdam), e homenageia os soldados que corajosamente se recusaram a cumprir missões militares, desertando de frentes de ataque e campos de batalha, e recusando-se a agirem contra seus concidadãos opositores do regime autoritário, mesmo a risco de serem presos e mortos. Conforme placa em bronze sobre a grama, diante do memorial, citando um trecho da obra Die Tafel, do autor alemão Kurt Tucholsky (3):

Não temos uma placa,
nem essa.

Aqui viveu um homem
que se recusou
a atirar em sua gente.
Honrada seja sua lembrança.
Kurt Tucholsky, Die Tafel
(1925) (4)

Monumento ao Desertor Desconhecido
Foto Valéria Salgueiro

O monumento foi desenvolvido e formado, conforme indicação no local, pelo escultor turco Mehmet Aksoy, em um bloco de mármore branco, dentro do qual a forma negativa, alusiva a um corpo humano em movimento, em vários planos, sugere deslocamento no espaço, movimento. Mais uma vez aqui, a forma negativa sugestiva de um corpo em movimento, no caso desertando, imprime no bloco tosco de pedra a dramaticidade do acontecimento, e possibilita ao espectador, igualmente, projetar sobre ele as imagens que sua experiência e repertório permitem, sem cair na banalidade das repetidas fórmulas heroicas do passado, como, por exemplo, a do soldado fardado representado como herói. No caso em pauta, o soldado desertor não é herói nem é traidor, nem sequer é representado, pois a forma negativa pode, no máximo, sugerir, e, na complementação da placa que acompanha a escultura, a sugestão evoca, sobretudo, a humanidade da deserção, no que ela evidencia a recusa em participar de uma guerra sem sentido, como, aliás, sempre são as guerras.

Monumento ao Desertor Desconhecido
Foto Valéria Salgueiro

A escultura pública e a forma negativa

Os três exemplos de escultura pública abordados aqui exemplificam pesquisas na arte contemporânea que resgatam a dimensão política desse tipo de escultura em buscam uma linguagem compatível com as demandas estéticas de sua época. Todos os três exemplos estão fundados na sensibilidade modernista com fortes elementos conceituais e abstratos, mas ao mesmo tempo deixam alguns sinais da presença humana sem voltar ao realismo acadêmico que impregnou a escultura pré-moderna. O traço comum aos três exemplos é o fato de que ambos encontraram na forma negativa a linguagem mais apropriada para a expressão de tragédias que são, sabidamente, grandes tragédias da humanidade: extermínio de pessoas, diásporas, guerras. O aprimoramento das armas de guerra e sua eficiência em matar, e a difusão em tempo real das tragédias humanas em grandes números, nos atormentam e tornam inviável à arte qualquer fórmula heroica e otimista. Mas a arte prossegue buscando seus caminhos e desenvolvendo seus meios de expressão num mundo tão difícil. O vazio, que para a escultura tradicional era uma etapa da obra incompleta, o molde onde se derramava o bronze fundido, a fôrma da obra futura, parece se ajustar como solução estética para a escultura contemporânea porque permite sugerir sem expor, abordar sem descrever. Será que a arte está envergonhada de sua época?

notas

1
Sergiusz Michalski, Public Monuments – Art in Political Bondage 1870-1997. London: Reaktion Books, 1998.

2
Tradução da autora. Em alemão: “Zum Gedenken an die mehr als 50.000 Juden Berlins, die zwischen Oktober 1941 und Februar 1945 vorwiegend vom Güterbahnhof Grunewald aus durch den nationalsozialistischen Staat in seine Vernichtungslager deportiert und ermordet wurden. Zur Mahnung an uns, jeder Mißachtung des Lebens und der Würde des Menschen mutig und ohne Zögern entgegenzutreten”.

3
Kurt Tucholsky (1890-1935): judeu alemão escritor, jornalista, satirista e crítico social, poeta e autor de canções, foi um dos mais importantes jornalistas da República de Weimar, alertando contra tendências anti-democráticas e o Nacional-Socialismo. Suas obras foram queimadas pelo regime nazista e ele perdeu a cidadania alemã.

4
Tradução da autora. Em alemão:

Uns fehlen andere Tafeln
Uns fehlt diese eine

Hier lebt ein Mann
der sich geweigert hat
auf seine Mitmenschen zu schieβ
en
Ehre seinem Andenken!
Kurt Tucholsky, Die Tafel (1925)

sobre a autora

Valéria Salgueiro é professora titular da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, Doutora em História Social, pesquisadora em arte do CNPq, autora do livro “De Pedra e Bronze. Um estudo sobre monumentos, o monumento a Benjamim Constant” (Niterói: EdUFF, 2008).

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