Quando a irresponsabilidade profissional também vem à luz
A crise energética evoca inevitavelmente jogo de palavras e trocadilhos. Entre estes jogos, um dos mais recorrentes é aquele que se relaciona com o que a escuridão aclara. A resposta mais óbvia e ressurgente é de natureza ética, política e econômica: o apagão aclara a irresponsabilidade do governo e o nosso canhestro modo de querer ingressar num dito primeiro mundo, que não resiste à mínima crise. A nossa pós-modernidade com mão-de-obra extensiva, ainda torna mais barato ter serviçais para lavar pratos e roupas e agora, até contratar mucamas, para abanar os senhores, ao invés destes se servirem de ventiladores e ar condicionado.
O apagão aclara, ainda, as desigualdades no interior do nosso modelo primeiro-mundista. As tarifas de energia são diferenciadas em função da classe do consumidor – quem consome mais, paga mais, subsidiando o consumo para quem consome e ganha pouco. A fórmula é, aparentemente, justa e democrática. As regras do apagão, no entanto, colocaram todos no mesmo patamar – a meta é diminuir em 20% o consumo, independentemente da classe, igual para todo mundo. Recente edição de revista de circulação nacional (1) traz matéria sobre o "sofrimento" dos ricos e famosos, que em pleno racionamento, ficarão sem o champanhe e o prosecco na geladeira, manterão suas piscinas no escuro, bem como substituirão a esteira de corrida por longas caminhadas nos seus 5000 m² de jardim, para atingir suas metas, sempre acima de 3000 kwh/mês. Esta é uma meta que outros tantos, não tão ricos nem famosos, só poderão atingir em um ano ou mais de escuridão, pois não há nada mais a ser desligado para cumprir o seu dever de cidadão e colaborar com o esforço nacional.
As regras do governo, distribuindo o sacrifício igualmente, apenas conseguiram aumentar o apagão em que milhares de consumidores já viviam. Elas também revelaram outras questões não tão óbvias quanto a irresponsabilidade do governo, ou o sofrimento de ricos e famosos em tempos de racionamento.
Nos bastidores da crise, há ainda a irresponsabilidade de profissionais da sociedade civil que lidam com problemas associados ao consumo de energia, embora, na maioria das vezes, esta atitude tenha o aval e a cumplicidade, ou seja tomada sob a instância do irresponsável cliente. O apagão revela, pois, a atitude displicente com relação às decisões de projeto da edificação, decorrentes, em geral, da utilização de modelos arquitetônicos e urbanísticos alienígenas ou irresponsáveis. Em conseqüência, recorre-se crescentemente à iluminação artificial, mesmo durante o dia, como única possibilidade para o uso de determinados ambientes, bem como a eletrodomésticos para superar deficiências de projeto, tais como ventilação insuficiente ou impossibilidade de exaustão.
Arquitetura e urbanismo: precariedade e irresponsabilidade
Os pioneiros da arquitetura moderna acreditavam no progresso tecnológico como instrumento para a democratização e melhoria da qualidade do ambiente construído. De fato, os progressos da tecnologia da construção permitiram a produção de unidades com menores áreas e a adoção de soluções arquitetônicas que minimizaram os custos de produção, ao diminuir perímetro de fachada, áreas de circulação, dimensão de aberturas, diminuindo os custos de decisões arquitetônicas consideradas, no entender do setor produtivo, "sonhadoras". Esta construção mais "racional", no entanto, nunca considerou o consumo de energia. A consciência crescente, a partir dos anos cinqüenta do século passado, dos limites dos recursos energéticos, bem como a constatação da obsolescência precoce e das doenças das edificações, levou europeus e americanos a estabelecerem outros parâmetros de avaliação da qualidade dos projetos de edifício.
No Brasil, a modernidade contraditória expressou-se também no âmbito da arquitetura. Nossa construção não se industrializou, portanto não se modernizou, mas logo adotamos as maravilhosas formas modernistas e comparecemos na historiografia internacional, que louvou a criatividade nacional e, mais especificamente, o talento genial de Niemeyer e de Lúcio Costa. Até os anos sessenta, até a inauguração de Brasília. Desde então, a arquitetura brasileira foi para as sombras. Nosso arrojo formal não mais é exaltado, ao mesmo tempo em que o nosso padrão construtivo continua atrasado, baseado em mão-de-obra extensiva, além de ser irresponsável, sem nenhuma consideração com a questão do meio ambiente, nem do direito do usuário. De fato, não há, dentre os índices hoje utilizados pela construção civil para avaliar a "qualidade" dos projetos arquitetônicos, nenhum que se refira ao consumo de energia decorrente de decisões arquitetônicas ou urbanísticas. Do ponto de vista do construtor, parece razoável não considerar este indicador, uma vez que ele será integralmente assumido pelo consumidor. E a quem cabe considerá-lo?
É forçoso reconhecer que, em muitos casos, a adoção de recursos como o ar condicionado é uma decisão não de projeto, mas do usuário da edificação, numa estratégia meramente defensiva. Não se trata aqui da arquitetura defensiva no sentido estrito, tal como originalmente a expressão foi cunhada por Newman (2), pois não é só da violência urbana que nos obriga a fechar janelas que nos defendemos ao recorrer ao ar condicionado. Muitos nos ar condicionamos porque a lei do silêncio é amplamente transgredida, ela é praticamente inexistente e não apenas qualquer indivíduo pode impunemente ligar suas caixas de som e ouvir o que queira, em alto e mau som, como, mais ainda, a programação recente dos nossos edifícios condominiais prevê um espaço para difusão do barulho: o prestigioso salão de festa, para o qual não há exigências de nenhum isolamento acústico.
O mau uso da iluminação e as deficiências projetuais de uma maneira geral parecem vir de par com o gosto obsessivo pelo excesso. As edificações contemporâneas assumiram um ar competitivo entre elas e, por vezes, parecem nunca haverem retirado a iluminação natalina. Os ambientes interiores, com suas lâmpadas halógenas e dicróicas , assemelham-se às vitrines dos iluminados shopping centers. As coberturas transparentes, com elementos em policarbonato, trazem do zênite mais calor do que luz junto com os raios de um sol que, no nosso céu tropical, transita sempre a pino.
Do feérico ao feioso
Já vão longe os tempos em que Paris era a Cidade Luz. Naquele tempo, em um livro publicado pela primeira vez em 1923, dizia Le Corbusier aos seus discípulos: "A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz. Nossos olhos são feitos para ver formas sob a luz; as sombras e os claros revelam as formas (...)" (3).
Bons tempos aqueles, onde havia luz e sombra na concepção arquitetônica. Hoje em dia, a relação entre arquitetura e iluminação já foi mais além. Na verdade, na medida em que se critica a dita rigidez da cartilha modernista, mesmo sem conhecê-la, adota-se o lema de que a arquitetura é o jogo da luz sob a luz. O papel funcional da iluminação ou mesmo o seu papel decorativo, simbólico, foi ultrapassado. Na tendência pós-moderna de conceber a arquitetura como cenário, a arquitetura concorre ou se confunde com o outdoor. Claro, o arquiteto americano Robert Venturi, depois de achincalhar com o racionalismo dos arquitetos modernos, e fazer loas ao conteúdo simbólico dos objetos baratos da nossa vida cotidiana, brindou-nos, nos anos setenta do século 20, com um livro que nos mandava aprender a partir das lições de Las Vegas (4).
A apologia do feio e do banal em textos e manifestos escritos por profissionais especializados é hipócrita, porque se o feio e o banal fosse o padrão desejável em arquitetura, não se precisaria de arquitetos, nem de Venturi. Mas a boutade de Venturi lhe valeu um prêmio Pritzker em arquitetura (5), ainda que este, em grande parte, tenha sido "cavado" por Vincent Scully, crítico de arte e arquitetura, que legitimou as ousadias venturianas, dando-lhes ares de grande consistência e de seriedade intelectual. Um exemplo deste tipo de arquitetura, do galpão decorado à la Venturi está atualmente em canteiro de obra: o novo shopping, perdão, mall de Natal, que varre toda uma quadra, tendo suas fachadas totalmente recobertas por outdoors luminosos.
Assim, o populismo vem grassando e a moda Las Vegas, de uma arquitetura conceitual (6), do tipo cassino e afeiçoada a ambientes temáticos, temperada com o gosto Miami, proliferou como praga, num ambiente social amplamente favorável. E isto não só nos Estados Unidos da América, pois a globalização fez emergir, no nível mundial, uma nova classe jovem, mal-educada e ignorante, consumidora do mau gosto, de preferência, rebuscado, para quem, consumo de energia é mero detalhe. E quem paga esta conta?
Conclusão: no escuro, nem toda arquitetura é parda
Evidentemente, ninguém tem nada contra a arquitetura feita para o divertimento. Desde que o mundo é mundo, como nos ensinam os antropólogos, os locais se distinguiram, entre profanos e sagrados, entre públicos e privados e, cedo, a humanidade conheceu a produção de locais para entretenimento – teatros, ginásios, arenas e circo. No mundo moderno, assistimos a uma progressiva laicização dos ambientes construídos e no mundo contemporâneo estamos assistindo a um verdadeiro escancarar de tudo que era atividade a ser desenvolvida na esfera privada, como confirmam, entre outras coisas, as festas familiares particulares, que agora se fazem expostas ao público, nos salões dos edifícios.
Este processo de transformação da vida privada em espetáculo, não implica, no entanto, em pensar que todas as cidades devam ser concebidas como – ou transformadas em – um grande parque de diversão, aos moldes de Las Vegas. Nem tampouco que arquitetura e cenário sejam coisas da mesma ordem.
Esta é a grande lição do apagão: no escuro, revela-se quem é quem. Um recente espetáculo da orquestra sinfônica no Teatro Alberto Maranhão, em Natal, ficou até mais agradável com a redução imperiosa de alguma iluminação face à crise. Ao ouvir um som tão maravilhoso – um som acústico – chegava-se a sonhar com a volta do brilho da iluminação antiga, o grande lustre à luz de velas. A penumbra, no entanto, em nada atingia o brilho da magnífica arquitetura. Mas o apagar das luzes que atingiu o Shopping Natal, os Macdonalds, e outras tantas localidades da cidade, revela a essência desta concepção de cenários efêmeros, que parecem parte dos destroços de um filme do tipo da nova versão de Guerra nas Estrelas. Uma sucata de uma arquitetura baseada na técnica de cartaz.
Pois é, no escuro nem toda arquitetura é igual. No escuro, revela-se a tirania do espaço como protagonista essencial da obra arquitetônica, esta tirania contra a qual Venturi e seus seguidores se revoltaram, armados dos ornamentos e das luzes, que a crise energética apagou.
notas
1
IstoÉ Gente, Ano II, n. 97, 11 jun. 2001.
2
NEWMAN, Oscar. Defensible space: people and design in the violent city. London, Architectural Press, 1972.
3
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo, Editora Perspectiva, 1977, 2ª ed., p. 13.
4
VENTURI, R; BROWN, D. S; IZENOUR, S. Learning from Las Vegas. Cambridge/Massachusetts, The MIT Press, 1996 (fourteenth printing).
5
O prêmio Pritzker é uma espécie de Nobel para a arquitetura.
6
Como o mundo da arquitetura está cada vez mais próximo daquele da moda, perdão, do mundo fashion, usamos conceitual aos moldes do pessoal deste mundo, ou seja significando aquilo que absolutamente não é funcional, ou, melhor ainda, não se usa a não ser nas passarelas.
sobre os autores
Sonia Marques é arquiteta, doutora em Sociologia (EHESS/Paris) e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Claudia Loureiro é arquiteta, doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) e professora da Universidade Federal de Pernambuco.