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MOREIRA, Pedro. Habitação social e pré-fabricação. A herança socialista em perspectiva. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 014.03, Vitruvius, jul. 2001 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.014/866>.

A problemática habitacional é uma ferida antiga, evidenciada no auge da revolução industrial pelas condições subumanas de vida do proletariado emergente. Assim, não há surpresa na constatação de que, desde seu prelúdio, o Modernismo tenha abordado o tema de maneira programática como bandeira dos movimentos de vanguarda. A partir desse momento a discussão foi ativada nos mais diferentes contextos e, sob perspectiva política, a evolução dos fatos tem sido paralela, seja nas sociedades ditas democráticas, seja nos regimes autoritários ou populistas como o nazismo alemão ou o Estalinismo. No Brasil, o período Vargas possibilitou "grandes" realizações do Modernismo nesse campo, e mesmo o Regime pós-64 não ignorou o potencial propagandista dos programas habitacionais.

O "desafio do século 20" permanece o desafio do próximo milênio. Não apenas o novo, mas o futuro do já construído, em particular das realizações do pós-guerra, fazem parte do atual escopo de trabalho. As gigantescas realizações do passado foram apenas um gesto inicial frente a uma problemática global que agrava-se a cada dia. Essa massa construída sofre decadência inevitável, e precisa ser tratada com a mesma ambição com que foi criada. A Alemanha unificada, por sua privilegiada situação econômica, é o primeiro país a efetivar extensos programas de revitalização destes complexos habitacionais. As experiências já colecionadas oferecem embasamento crítico para programas similares que se iniciam na Europa Oriental, ainda que o atual panorama político-econômico da maioria destes países mal possibilite projetos de semelhante natureza.

Breve Histórico

O desolado cenário da Europa dividida veio a possibilitar a concretização de idéias equacionadas em caráter embrionário pelo Modernismo, referentes à produção industrial da habitação enquanto produto de massa. O conceito da pré-fabricação foi aplicado com entusiasmo no Leste e no Oeste, freqüentemente ecoando o desenrolar da Guerra Fria, e teve como principal referencial lá e cá as diretrizes dos CIAM e seus diversos desmembramentos.

A vigência do "socialismo real" ou "de fato", no entanto, viabilizou um esforço até então sem precedentes, e acarretou uma drástica redução do déficit de moradias nos países do antigo Bloco Socialista. A mais fácil apreensão da relevância destas realizações dá-se através de números: hoje vivem 170 milhões de pessoas em 70 milhões de unidades pré-fabricadas espalhadas pela Europa Oriental. Somente a região metropolitana de Moscou conta com mais de 2,2 milhões de habitações deste gênero, que podem ser também encontradas na China, na Coréia do Norte ou em Cuba.

O caráter de emergência da Reconstrução determinou na Alemanha dividida dos anos 50 e 60 a retomada de programas habitacionais nos centros urbanos, tradição iniciada no período da República de Weimar. Genericamente, buscou-se a ocupação dos grandes vazios urbanos ocasionados pelos bombardeios, embora seja hoje senso comum o fato de que nesses anos destruiu-se tanto dos tecidos urbanos quanto durante a própria guerra. O urbanismo desse período ignorou o contexto existente e não criou "urbanidade" no sentido da cidade européia tradicional. Os edifícios são em geral de pobre qualidade construtiva e de execução, dados o ainda embrionário estágio de pré-fabricação e a carência de recursos disponíveis naquele momento.

No final dos anos 60 a estabilização econômica das duas Alemanhas ocasionou a expansão da escala dos programas habitacionais, e esta etapa caracteriza-se pela realização de grandes conjuntos habitacionais ou Großsiedlungen nas periferias urbanas. Entre 1971 e 1989 foram construídas na extinta RDA 675.000 unidades habitacionais somente com os chamados Plattenbauten do tipo WBS 70. Semelhante fenômeno verificou-se também na Europa Ocidental, em particular na França, na Inglaterra, na Holanda e na Alemanha. Somente em Berlim Ocidental foram realisadas195.000 unidades a partir dos anos 60.

A herança socialista em perspectiva

Com a unificação alemã iniciou-se a partir de 1990/91 a revisão das estruturas administrativas do patrimônio habitacional do Leste, tendo como base as experiências ocidentais. A condicionante básica para a rápida reformulação foi a estrutura de propriedade dominante na antiga RDA, onde mais de 90% das unidades permaneciam sob gerência estatal. Foram constituídas autarquias, chamadas Wohnungsbaugesellschaften, responsáveis pela administração, manutenção e desenvolvimento de conjuntos habitacionais existentes, operando com meios próprios provenientes da locação e venda de imóveis, com subsídios governamentais e da Comunidade Européia e financiamentos externos. Paralelamente, o Estado iniciou o processo de privatização gradual do patrimônio, liberando 15% das unidades para venda até 1999. Habitações podem ser adquiridas individualmente por moradores, ou edifícios e quarteirões inteiros por investidores privados ou fonds que comprometem-se a agir dentro de parâmetros controlados por lei: respeito ao piso dos aluguéis, obrigatoriedade de investimentos a prazo determinado, etc. Para tanto, o investidor conta com significativos incentivos fiscais que reduzem o risco da operação.

Sendo habitação ao mesmo tempo uma questão social e de mercado, a situação de concorrência entre as autarquias e mais recentemente entre estas e investidores na luta pela manutenção e ganho de inquilinos têm-se mostrado saudável. Estima-se que entre 1991 e 1998 quase 50% das unidades habitacionais da antiga RDA tenham recebido melhorias. Os distritos-dormitório têm assim a chance de transformar-se em parte integral do contexto urbano.

Estratégias de reformulação e desenvolvimento

O controle do Estado sobre as autarquias dá-se através de diretrizes nacionais e supervisão estadual ou municipal. Cada autarquia opera com estratégia e estrutura operacional próprias, formuladas de acordo com suas condições específicas: estrutura social dos habitantes, localização urbana, características urbanísticas e tecno-construtivas, estado de preservação dos edifícios, situação de mercado. Podem ser constatadas quatro tendências básicas na reformulação e desenvolvimento da massa construída existente:

1. Diferenciação e adensamento em áreas predominantemente urbanas: edifícios localizados em contexto urbano misto e fragmentado, cuja renovação pretende "corrigir" os erros urbanísticos do pós-guerra. Cada edifício é tratado exteriormente com linguagem diferenciada, espaços "vazios" entre edifícios são parcialmente ocupados por edifícios complementares contendo infra-estrutura, serviços e novas habitações, paisagismo e mobiliário urbano são reformulados no sentido de acentuar o caráter citadino de vizinhança.

2. Tombamento e renovação: edifícios ou conjuntos com caráter específico de certos períodos da era socialista nas diferentes cidades vêm sendo tombados e renovados. Entre eles, conjuntos em "estilo estalinista" dos anos 50, edifícios-protótipo de sistemas construtivos, grupos de edifícios marcantes do pensamento urbanístico da época, ou edifícios com caráter de referencial urbano relevante.

3. Melhorias do meio-ambiente nos grandes conjuntos habitacionais: a infra-estrutura existente na maioria dos grandes conjuntos ou distritos-dormitório consistia até 1991 em razoável saneamento básico e transporte coletivo e numa bem proporcionada quantidade de equipamentos como escolas, hospitais e creches, sendo porém quase inexistentes a infra-estrutura comercial, as áreas verdes e de laser. Algumas das autarquias tomaram como prioridade a melhoria da qualidade de vida do conjunto como um todo (exemplo: Berlin-Hellersdorf, com 100.000 habitantes), investindo igualmente em todos os quarteirões durante os primeiros anos. Planos diretores definem a localização de nova infra-estrutura e de novos edifícios habitacionais, centros e sub-centros comerciais e de serviços, parques, bolsões de estacionamento, etc. Iniciou-se o plantio ordenado de árvores, a reformulação de praças, parques infantis e centros de convivência, nova iluminação pública e o tratamento das entradas dos edifícios, tidos como elemento essencial para a quebra da anonimidade dos blocos de habitação. Após essa etapa, com duração aproximada de 5 anos, iniciou-se a reforma completa de blocos ou quarteirões, cada um deles replanejado com identidade própria no sentido de diferenciação da paisagem e identificação do morador com seu quarteirão.

4. Modernização setorizada de edifícios: estratégia adotada em áreas onde a processo de decadência é mais premente. Siedlungen como Berlin-Marzahn, com quase 150.000 habitantes, foram divididos em setores de intervenção prioritária, nos quais o volume de investimentos se concentra em cada etapa. Esta estratégia vem sendo corrigida, dado o protesto de moradores que precisam esperar anos por benefícios efetivos em sua habitação ou quarteirão.

A fim de manter estável a estrutura social mista dos conjuntos habitacionais, a maioria das medidas é executada sem que acarretem um aumento substancial no preço dos aluguéis, regulamentados por lei e fixados por metro quadrado de acordo com localização do imóvel e qualidade da moradia. Os serviços de melhoria são em geral divididos entre "medidas básicas" financiadas pela companhia administradora e "medidas opcionais" realizadas por esta e pagas pelo morador diretamente ou através de aumento extraordinário do preço do metro quadrado alugado. Na escala do edifício, as medidas básicas concentram-se nos seguintes pontos:

1. impermeabilização de lajes de cobertura ou telhados.

2. renovação da infra-estrutura hidráulica e elétrica.

3. renovação dos porões, que contém depósitos individuais de cada apartamento, além de áreas comunitárias.

4. renovação das fachadas, necessária por condicionantes de ordem tecnológica e com o intuito de romper com a brutal homogeneidade dos conjuntos urbanísticos. No caso dos sistemas construtivos mais antigos (realizados até fins dos anos 70) , as placas pré-fabricadas não têm qualidade térmica aceitável para os padrões atuais, e são por isso revestidas com camada isolante e acabamento final que as encobre. Em edifícios construídos nos últimos 20 anos é possível na maioria dos casos reparar as juntas das placas e com isso manter a legibilidade do princípio construtivo.

5. troca de portas e janelas, de acordo com as normas de preservação de energia nos edifícios. As janelas originais, embora de vidro duplo, ocasionam enormes perdas térmicas que se expressam no uso desnecessário de calefação.

6. renovação de balcões e varandas, cuja estrutura encontra-se com freqüência comprometida. Tendo um caráter plástico de exceção por serem justapostos às longas fachadas, os balcões reformados oferecem uma ótima oportunidade na reestruturação visual dos edifícios.

7. Renovação das entradas e escadarias, eventuais elevadores e transpasses entre rua e pátio interno. Estas áreas, constantemente sujeitas a vandalismo e violência urbana, são tomadas como prioritárias para o conforto dos moradores.

Dentre as "medidas opcionais" podem ser aventadas a reforma de banheiro e cozinha (construídas em muitos casos como células pré-fabricadas) e jardins de inverno. Para o atendimento de famílias em expansão, apartamentos podem ser unificados, no entanto quase não há flexibilidade nas plantas, devido ao sistema construtivo tipo "castelo de cartas". Em caso de impossibilidade, a estrutura administrativa da sociedade de desenvolvimento incumbe-se da relocação de famílias. Moradores de apartamentos de piso térreo têm a possibilidade de alugar pequenas parcelas de jardim, cuja manutenção fica a seu cargo, fato que reforça o sentido de posse e co-responsabilidade pelas áreas externas do edifício.

Na maioria dos casos, a estandardização dos tipos de habitação, planejada pelos grandes escritórios estatais do socialismo, respeitou os mais básicos princípios funcionais e de conforto ambiental. Além disso a área de uso da habitação está em geral acima daquela prevista nos atuais programas de habitação mínima.

Conclusão

A situação hoje verificada nos complexos habitacionais da Europa Central e Oriental significa para especialistas e a sociedade como um todo com um desafio de ordem até há pouco ignorada. O confronto com os disparates urbanísticos e arquitetônicos dos anos 50 e 60 já havia se iniciado há 30 anos no Ocidente, através dos comentários críticos de Jane Jacobs , Herbert Gans, Oscar Newman ou Robert Venturi, e tomaram plasticidade panfletária com a declaração da "Morte da arquitetura moderna" lançada por Charles Jencks em 1977, onde esse autor toma como enlace o episódio da demolição do conjunto habitacional Pruitt-Igoe em St. Louis/Missouri em 15 de julho de 1972. Além da crítica funcional ao planejamento do período, esses autores argumentavam que a linguagem "purista" da Arquitetura Moderna estaria em irremediável contradição aos códigos de vida de seus usuários. Fato é que boa parte das tendências originadas desta crítica, comumente posicionadas sob o rótulo "Pós-Modernismo", demonstraram-se ineficazes na resolução do problema. Sua importância revela-se hoje na reintrodução da discussão da cidade enquanto fenômeno orgânico, pluralista, capaz de permanente reação aos sinais dos tempos.

O fenômeno da decadência dos grandes conjuntos habitacionais deve-se também a fatores exteriores a questões diretamente relativas à Arquitetura, e que nem sempre encontram nesta um campo de reflexão. Política urbana, política habitacional ou questões administrativo-financeiras são igualmente determinantes do sucesso de qualquer empreitada. Somente a permanente vigilância nesses campos pode alterar o curso dos processos de decadência construtiva dos complexos habitacionais e da formação de guetos cuja dissolução é quase impossível.

A falência do "socialismo real", lida por muitos como o "triunfo da civilização ocidental", trouxe consigo uma série de impasses mantidos sob controle no antigo sistema, sendo o mais óbvio deles a possibilidade de ascensão social e a pressão por esta causada. Esse novo horizonte vem a gerar em curtíssimo prazo conflitos sociais que se expressam na eminente "invasão" da Europa Ocidental por essas populações em busca de trabalho e novas condições de vida.

Assim, não é difícil entender o empenho da Comunidade Européia na formulação de programas de auxílio técnico e financeiro aos países da Europa Oriental. Parcerias entre cidades vêm sendo efetivadas, institutos têm sido fundados nos diversos países, e o Senado de Berlim criou um departamento próprio para intercâmbio de experiências. A European Academy of the Urban Environment formulou em outubro de1997 a "Sofia declaration on the future of the large prefabricated housing estates in central and eastern Europe", na qual explicita a urgência de intervenções.

Se por um lado os extensos programas da era socialista ocasionaram uma radical transformação da paisagem urbana nesses países, que inclui a perda irreparável de um patrimônio urbano, por outro não se pode negar que a estas populações foram proporcionadas condições mínimas de vida das quais o terceiro mundo carece. Além disso, observa-se que ao longo das décadas surgiram hábitos culturais próprios desta nova forma de vida, que não podem ser ignorados. A massa construída apresenta sem dúvida problemas, alguns dos quais mencionados nesse artigo, mas possui também qualidades intrínsecas a serem salientadas. O custo social de soluções radicais como a demolição em St. Louis é absurdamente inviável, e vale aqui notar que os custos de recuperação e desenvolvimento desses complexos não ultrapassa um terço do valor de construção nova equivalente.

A pré-fabricação enquanto princípio, formulada de forma quase utópica pelo Modernismo, continua sendo o grande instrumento no equacionamento da problemática habitacional. O futuro das realizações socialistas na Europa Central e Oriental pode parecer à primeira vista um tema localizado e distante para nós brasileiros. No entanto, a proporção das realizações e a variedade de enfoques adotados no passado e na atualidade instigam investigações mais profundas sobre estas experiências, que podem servir de insumo na formulação de novas políticas habitacionais no Brasil e na América Latina.

bibliografia

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sobre o autor

Pedro Moreira, arquiteto e artista plástico, graduou-se pela FAU-USP em 1987. Com exposições individuais e coletivas no Brasil, Inglaterra, Alemanha e Japão, atuou em São Paulo, Londres e, desde 91, em Berlim. Sócio em NGM Architekten (Nedelykov Granz Moreira), ganhou o Prêmio de Urbanismo e Desenvolvimento Urbano da 3ª Bienal de São Paulo. É o arquiteto responsável pela execução do Bairro Amarelo em Berlim-Hellersdorf, projeto de autoria do escritório brasileiro Brasil Arquitetura. Em 1998 recebeu a encomenda da renovação do Estádio Olímpico de Berlim.

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