A busca de um sentido para a tecnologia na arquitetura
"Estamos experimentando uma extrema liquidificação do mundo, da nossa linguagem, do gênero, do corpo: Uma situação onde tudo se torna mediado, onde toda a matéria de espaço é fundida com a sua representação na mídia, onde toda a forma é fundida com a informação. Estamos trocando a matéria pela substância, o sólido pelo grão e resolução. O líquido na arquitetura foi previamente associado com o fácil retorno da arquitetura às necessidades humanas, a satisfação em tempo real. Mas esta leve e inteligente tecnologia de desejo pode somente terminar com o corpo como um resíduo, onde os primeiros passos no ciberespaço serão provavelmente os últimos passos todos juntos" (1).
Vários arquitetos e sociólogos têm se interessado em evidenciar as conseqüências do desenvolvimento tecnológico na sociedade e na arquitetura. Marcos Novak e Lars Spuybroek, por exemplo, estão preocupados em desenvolver uma arquitetura que possa fazer a conexão do espaço imaterial digital ao espaço físico. A extensão do espaço físico dado pelo espaço tecnológico se desdobrou em conceitos como "liquid architecture" e "transarchitecture". São conceitos que não estão inertes no pensamento arquitetônico e muito menos neste texto.
O arquiteto William Mitchell, de uma forma pragmática, mostra em seu livro "City of Bits" como a tecnologia está transformando a nossa cidade, a nossa arquitetura e o modo de viver das pessoas. Em seu livro ele mostra que agencias bancárias, livrarias, bibliotecas, lojas, escolas e outros espaços poderão ser substituídos por um terminal de computador. Seis anos após a primeira edição de seu livro, podemos confirmar esta sucinta transformação espacial ao verificar os números de vendas da www.amazon.com e da www.submarino.com.br, ao perceber a fragmentação das grandes agência bancárias em quiosques e micro agencias espalhadas por toda a cidade, ao ter disponibilizado cursos a distância via internet/teleconferência em universidades, e ao renovar a carteira de motorista pela internet. Estes entre muitos exemplos confirmam a substituição do espaço/tempo apontado por Paul Virilio (2). Uma substituição cada vez mais eficiente, demandando cada vez menos espaço e pessoas.
Mas isso é terrível. Qual o limite desta fragmentação e desmaterialização do espaço? Será que estamos caminhando para um mundo similar ao filme Matrix (3) onde todos viveremos em bolhas de sobrevivência? Qual o limite das nossas relações impessoais com as máquinas?
John Naisbitt (4), em seu livro recentemente lançado avalia o impacto da tecnologia na sociedade e expõe as características psicológicas de uma geração que cresce se relacionando na maior parte do tempo com máquinas ao invés de pessoas.
Quantas vezes ao fazer compras em um supermercado não ficamos impacientes com as filas dos caixas? Quantas vezes nós perguntamos o nome da pessoa que está no caixa e procuramos saber como foi o seu dia? Quantas vezes nós paramos para pensar que o caixa é uma pessoa e não uma máquina de processar valores?
A sublimação de atividades e acontecimentos do cotidiano do homem seja pela digitalização dos acontecimentos ou até mesmo pela perda do sentido ou da necessidade de determinados espaços nos mostram uma arquitetura que caminha para uma extinção e uma sociedade com relacionamentos cada vez mais impessoais.
Será o fim da arquitetura como meio de promover as relações entre indivíduos?
"Compreende-se melhor desta forma que a materialidade da arquitetura a que Walter Benjamin se referia esteja menos ligada às paredes, aos tetos, à opacidade das superfícies, do que à primazia do "protocolo de acesso" da porta, da ponte, mas igualmente dos portos e de outros meios de transporte, que prolongava em muitos a natureza do limiar, a função prática da entrada. (...) É tudo isso que tende a desaparecer atualmente com as tecnologias avançadas, a teledistribuição à domicílio. Se a janela catódica e a tela matricial substituem a um só tempo as portas e os meios de comunicação física, é porque a própria representação cinemática tende a substituir a realidade da presença efetiva, a presença real das pessoas e das coisas e porque o "acidente" das máquinas de transferência instantânea substitui a "substância" do espaço/tempo..." (5).
É certo que o fim da arquitetura, às vezes anunciada pelos "cyber architects", nunca acontecerá. Enquanto o homem existir em um corpo físico o espaço sempre existirá. E havendo espaço e relação de objetos haverá uma arquitetura. De qualquer forma neste momento onde não se sabe até onde se faz necessário um edifício ou que sentido tem um espaço físico determinado nos restam dois instrumentos de concepção: a incerteza espacial e o corpo.
O corpo do homem, a primícia do espaço a partir do qual se faz a arquitetura.
A incerteza que já vem algum tempo sendo contemplada pela filosofia, está presente no nosso dia a dia e cada vez mais presente no design e na arquitetura. Conceitos como imaterialidade, instabilidade, flexibilidade, versatilidade, reciclagem, interatividade entre outros faz parecer que a única certeza é a própria incerteza e até mesmo este fazer parecer é incerto, instável e virtual. Hoje quando as indústrias nos apresentam materiais que trocam de cor ou textura por impulsos elétricos ou térmicos e superfícies que vão do opaco ao transparente passando pelo translúcido assimilamos materiais que deixam incertos a sua própria materialidade.
Qual é o espaço ideal para se montar a sede de uma grande multinacional? Em que lugar? Isto importa? Na verdade, a sede da empresa está fragmentada em vários países espalhados pelo globo e a questão é: existe uma sede? existe uma empresa?
O corpo por outro lado passa a ser a maior de todas as certezas. E este passa a ser o ponto central de concepção do espaço como síntese da transformação. Este espaço em torno do corpo se torna arquitetura, mas não mais como a arquitetura que conhecemos. Não mais como uma arquitetura funcionalista e determinista que gera o caminhar dos eventos do homem. Não podemos mais falar em uma arquitetura dada, predeterminada por suas funções e rígida. Imagine se você morasse em uma casa como a "Casa Cor". Onde estaria a sua liberdade de estar em casa e viver se para cada atividade você precisasse de um ambiente? quarto de musica, sala de TV, escritório, sala de leitura, sala de computador, quarto de hóspedes, cozinha dos hóspedes, cozinha do gourmet... Quantas pessoas conseguem fazer as atividades isoladas, uma de cada vez? Quem consegue hoje, viver com tanto determinismo? Paradoxalmente, este consumo "Casa Cor" e a necessidade das pessoas de estarem reformando seus ambientes com freqüência dando funções e ordem espacial a eles é o resultado da própria incerteza gerada pelo ócio dos espaços inadequados e deterministas de suas moradias que não os atendem e provavelmente nunca o farão.
Hoje devemos conceber a arquitetura de uma forma diferente, apenas isso, não estamos falando de uma nova imagem. A concepção dos espaços muda a partir do momento em que o corpo e seus impulsos vitais passam a ser o elemento transformador. Não serão interferências formais e plásticas como elementos decorativos ou ainda o pós-estruturalismo na arquitetura que vão dar continuidade à arquitetura moderna proposta por Corbusier, Loos e Gropious. A transformação clamada pela nova tecnologia é sucinta, simples e prática. Metaforicamente seria como mudar o ponto de vista do observador ou observar com uma outra lente. Ou seja; não é mais a arquitetura que gera o espaço no qual o homem deve se adaptar. O corpo gera a arquitetura onde a mesma está completamente subjugada aos atos do indivíduo. Assim como a tecnologia e os equipamentos que trabalham em função do indivíduo e do corpo e que fascinam pela sua interatividade e indeterminação. Uma arquitetura incerta que não existe mais como uma forma rígida, determinada ou funcional no espaço mas como movimento do corpo do indivíduo no tempo.
Logo o corpo como gerador do espaço torna-se o objeto de concepção para uma arquitetura adequada à uma sociedade moldada pela tecnologia.
Se a tecnologia tem moldado a nossa sociedade, segundo Daniel Bell (6) e alterado a nossa referência tradicional de espaço e tempo, segundo Paul Virilio, com certeza a arquitetura não está inerte neste meio. O deconstrutivismo prova que objetos materiais e objetos da semiótica tradicionais já não fazem mais sentido, e talvez a melhor contribuição deste movimento foi provar que boa parte deles são praticamente dispensáveis. A arquitetura chega ao auge da falta de sentido e significado com o pluralismo moderno, a profusão de imagens de arquitetura pelo mundo em revistas e medias e repetição destes em qualquer lugar. Também, proliferam-se edifícios "casulos" que funcionam como máquinas de sobrevivência tecnológicas (os shopping centers e os edifícios de apartamentos – apesar de não ser a sua porta principal, todos na maioria das vezes acessados pela garagem – mas o que é a porta principal? Isso faz algum sentido?), intercalados por "disneylândias" (centros culturais, Pelourinho, Opera de Arame...).
Qual o sentido da arquitetura hoje frente à nova tecnologia?
Podemos começar a encontrar este sentido pela relação corpo + espaço + tecnologia. Mas talvez isso será apenas um começo.
notas
1
SPUYBROEK, Lars. Transarchitectures in Architectural Design Magazine, vol. 68, 1998, p. 62.
2
VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. São Paulo, Editora 34, 1993.
4
NAISBITT, John. High Tech High Touch (Alta tecnologia – Alto contato humano). São Paulo, Cultrix, 1999.
5
VIRILIO, Paul. op. cit., p. 78-79.
6
BELL, Daniel. The Coming of Post-Industrial Society: a venture in social forecasting. Nova Iorque, Basic Books, 1976.
sobre o autor
Marcelo Maia é arquiteto e especialista em Arquitetura Contemporânea. Desenvolve projetos buscando a interatividade do cliente no processo de projetar usando recursos multimídia. Atualmente atua como arquiteto em escritório próprio em Belo Horizonte e Recife