Parece estar longe o tempo em que a arquitetura brasileira podia ser explicada pela velha equação ARENA/MDB. Deixando de lado o conteúdo ideológico e/ou fisiológico das esquecidas siglas dos anos 70 (não seria justo chamar nenhuma arquitetura brasileira de ARENA pelo seu passado, nem de MDB pelo seu futuro), o que eu quero dizer com esta equação é a existência, de um lado, de uma linguagem arquitetônica hegemônica e quase sempre apoiada pelas instituições e pelo estado, e de outro lado uma proposta arquitetônica minoritária mas energética, barulhenta e quase sempre questionando não só a linguagem “oficial” mas todo o sistema.
Com o perdão da inevitável simplificação que esta equação nos traz, foi assim nos anos 30 com os acadêmicos na hegemonia e o grupo dos modernos em torno de Lucio Costa trazendo a renovação. Foi assim nos anos 50 com os modernos cariocas agora hegemônicos e um pequeno grupo em torno de Artigas chamando atenção para alguns dos defeitos do casamento da arquitetura moderna com a euforia do governo JK. Foi assim de novo no final dos anos 70 e início dos 80, com o grupo paulista agora hegemônico e os mineiros bradando a chegada da pós-modernidade.
Esta equação já não funciona mais. Em um concurso de abrangência nacional como o 4º Prêmio Usiminas / Grupo Corpo, organizado pelo IAB-MG no segundo semestre do ano passado (cerca de 600 inscrições, 136 propostas entregues), não se consegue ler nenhuma tendência, linha ou corrente majoritária. O último concurso com esta abrangência e penetração nacional foi o concurso de Sevilha em 1991 (165 propostas entregues), que revelou também a última manifestação da equação acima mencionada, cujos termos na época eram os arquitetos vencedores – Ângelo Bucci e Álvaro Puntoni – de inspiração marcadamente paulista (Artigas e Paulo Mendes da Rocha) em contraposição à variedade das outras propostas premiadas. Esta mesma variedade, agora ainda mais acentuada pela falta de uma corrente dominante, foi a tônica do concurso Corpo/Usiminas. O edital do concurso pedia o equacionamento de um programa extenso (em torno de 7000 m2) e complexo (teatro, salas de ensaio, galeria de arte) em um terreno marcadamente linear (60 x 300m), obrigatoriamente usando a estrutura em perfis de aço Usiminas.
E como as 136 equipes participantes responderam às questões propostas no edital? A exposição montada nos corredores da escola de arquitetura da UFMG indica que responderam de 136 formas diferentes. Os trabalhos são dificilmente reconhecíveis tanto individualmente (traço característico de cada arquiteto) quanto em termos de filiação a escolas e tendências. Revelam influências mais ou menos legíveis e uma busca de coerência específica, relacionada ao lugar, ao programa e ao sistema estrutural pré-determinados. A subjetividade criadora se revela nas inúmeras formas de equacionar os três componentes acima: terreno, programa e estrutura.
O sítio proposto já de início apresentava dificuldades. Trata-se de uma área de ocupação recente, desligado da malha urbana, sem transporte público que facilite o acesso dos usuários do teatro e da galeria, com um entorno de casinhas de fim de semana esparsas, umas mais abastadas outras bem simples.
Mas se o terreno era desafiador, o extenso programa parece ter sugado a metade das energias dos participantes, sendo a outra metade gasta na materialização formal do edifício, que teria que ser naturalmente referência naquele contexto. Mesmo as soluções mais discretas não escapariam de lidar com o problema da monumentalidade que se impunha pelas simples dimensões dos espaços (teatro e galeria por exemplo) quando comparados com as casinhas simples do outro lado da rua. Dadas a complexidade do entorno e a extensão do programa, a estrutura obrigatoriamente metálica foi menos um fator de limitação e mais um determinante organizador dos espaços. As soluções se apresentaram geralmente em pórticos, seja enfileirados longitudinalmente (o que o próprio formato do terreno induzia), seja em forma de grelha. Usos mais sofisticados como tirantes, perfis calandrados permitindo curvas ou mesmo a exploração do aço como material acabado de revestimento foram exceções. Entre os 136 trabalhos vistos, alguns poucos parecem ter realmente partido do aço como definidor da forma.
Em geral. As propostas podem ser reduzidas a poucas estratégias distintas de ocupação. A partição em 3 blocos (galeria/espaço cultural, teatro e sede) era inerente ao programa organizado que foi desta maneira e quase todos os trabalhos revelam muito claramente esta divisão. O que varia é a forma de dispor estes 3 blocos. 1) Dispostos em série e marcadamente distintos; 2) ligeiramente deslocados formando uma praça; 3) ao longo de um eixo longitudinal que forma uma rua interna ou lateral; 4) sob uma grande cobertura; ou 5) em uma grande caixa liberando a maior parte do terreno (única estratégia que não separa em blocos os principais espaços do programa).
Interessante perceber que dos 4 premiados (1), cada um apresenta uma variação diferente desta organização e foi citado na ata por um aspecto diferente: um pela flexibilidade, outro pela expressividade, o terceiro pela relação com o entorno e o quarto e mais polêmico (por não ter sido indicado por unanimidade) pela funcionalidade. Esta variedade esconde na verdade um problema maior, que perpassa o escopo de qualquer concurso e com o qual nos deparamos já a algumas décadas. Em face da diversidade, quais os critérios definidores da boa arquitetura? Qual a escala de valores a ser aplicada diante de soluções múltiplas que enfatizam ora um aspecto ora outro?
Uma vez que nenhuma proposta atendeu plenamente aos critérios propostos pelo edital do concurso, acho pertinente a idéia de que os premiados sejam remunerados para continuarem o aprimoramento dos projetos. Mas para além deste ou daquele concurso, a discussão sobre os critérios norteadores da dita boa arquitetura, ou melhor, o exercício da crítica (diversa e constante) torna-se fundamental.
Há 10 anos atrás a crítica ficou centrada em torno da pertinência ou não do modelo FAU-USP como representante da arquitetura brasileira, até porque o próprio objeto do concurso – um pavilhão brasileiro na Expo Sevilha 92 – já carregava em si a questão da visibilidade e da representatividade de toda uma nação, o que não é o caso do edifício sede do grupo Corpo que deve representar a si mesmo e ao sistema estrutural do patrocinador do concurso. Mas voltando às páginas das publicações brasileiras de 1991/92 dedicadas ao resultado do concurso para o pavilhão brasileiro em Sevilha, percebo que a diversidade das propostas (só tive acesso neste caso aos premiados e outros poucos projetos publicados) é tão grande quanto a diversidade das 136 propostas para o concurso Corpo/Usiminas. A impressão que fica agora é de que a arquitetura brasileira já demonstrava, 10 anos atrás, esta pulverização de conceitos e diretrizes cujo único aspecto comum seria a exacerbação da individualidade criativa de cada equipe. Naquela ocasião, seja por estarmos ainda próximos dos debates de 1978-1985 sobre a pertinência da pós-modernidade em terras brasileiras, seja pela identidade do projeto vencedor com a arquitetura de Artigas e Mendes da Rocha, o debate apenas tangenciou as questões da pluralidade/individualidade e da dificuldade em se estabelecer critérios mais rigorosos para julgamento, tendo caído nas questões de representatividade (ou falta de) da caixa de concreto da proposta vencedora.
Mas da mesma forma que Sevilha foi um marco da arquitetura brasileira no início dos anos 80, o concurso Corpo/Usiminas sintetiza algumas tendências (nem todas otimistas) deste início de milênio. Um certo debate no calor da hora e uma decisão adiada por três meses. Uma certa dificuldade de se estabelecerem critérios de julgamento no meio da diversidade corrente, levando o júri a escolher 4 propostas a serem aprimoradas. Pouquíssima divulgação dos trabalhos que constituem um importante recorte contemporâneo da arquitetura brasileira, expostos até esta data apenas na UFMG. Um terreno descolado da malha urbana da cidade e com acesso por automóvel particular apenas (nenhum tipo de transporte público), no meio de uma área de ocupação recente e esparsa que sofrerá inevitavelmente o impacto dos 1000 visitantes vespertinos do grande teatro a ser ali implantado. Tudo com cara de New Urbanism não fossem os ocupantes um grupo de reconhecido sucesso, com montagens famosas pela combinação de vanguarda internacional com mineiridade. Isso me leva a perguntar se o locus deste encontro entre culturas locais e globais (tão celebrado como alternativa inteligente aos processos de transformação do capitalismo tardio) tem mesmo de ser fora da cidade e inacessível à grande maioria da população que já não vai aos teatros nem no centro das cidades. Em vista disto tudo, o concurso Corpo/Usiminas se torna ainda mais representativo dos dilemas e desafios da arquitetura e do urbanismo brasileiros contemporâneos. Esperamos que a Usiminas perceba o riquíssimo material que tem nas mãos e leve os 136 trabalhos a viajar pelo Brasil, incentivando a reflexão e a crítica sobre estas arquiteturas brasileiras de início de milênio.
notas
[O presente artigo antecede a divulgação do resultado final].
sobre o autor
Fernando Lara é arquiteto, doutor pela Universidade de Michigan (EUA) e professor da PUC-Minas.