Em artigo publicado em 1999 na Internet, o arquiteto espanhol Josep Quetglas afirmava que “qualquer instituição educacional tem como alternativas seguir um dos dois grandes modelos de formação inventados até agora pela humanidade: o serviço militar ou as escolas de idiomas. Não há outro” (1). Não obstante o radicalismo da observação, é interessante acompanhar seu raciocínio.
No serviço militar, o que importa é o título obtido ao final de um longo período. Ninguém busca uma relação entre o que se faz no quartel e o que se fará mais tarde na vida. Na escola de idiomas, o título vale pouco, talvez não seja nem necessário. O importante é o aumento gradual do conhecimento de quem a freqüenta, o qual é comprovável e imediatamente aplicável.
O objetivo do ensino em qualquer universidade, especialmente as públicas, não deveria ser a mera obtenção de títulos, mas a formação de uma profissão. O ensino de arquitetura sempre teve esse objetivo, durante o tempo em que era exclusivo das universidades públicas. Nada contra as universidades privadas, mas é um fato que nos últimos vinte anos o número de escolas de arquitetura saltou de pouco mais de trinta para mais de cento e trinta. Na grande maioria dessas escolas o ensino de arquitetura tem se afastado da formação profissional e cada vez mais visa a mera concessão de títulos.
As escolas públicas não ficaram imunes a esse vírus e até a pós-graduação se viu afetada, pois a exigência feita pelo MEC de que os professores universitários devam ter pelo menos grau de mestre detonou uma verdadeira corrida à titulação.
Embora possam parecer deslocadas, as considerações iniciais são pertinentes ao tema deste seminário, pois há pelo menos duas maneiras de integrar o projeto à pós-graduação. Uma leva ao aperfeiçoamento da formação, o outro à obtenção de um título.
Para os professores do Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PROPAR/UFRGS) este tema não chega a ser uma novidade, pois tem sido essencial para nós desde a criação do programa. Pode-se dizer que o projeto de arquitetura é o fio condutor da maioria das atividades desenvolvidas no PROPAR. Todas as abordagens teóricas, históricas e críticas de um determinado assunto tem por objetivo ampliar o conhecimento projetual. É crença geral entre nós que teoria, história e crítica são dimensões extremamente importantes do processo projetual.
As últimas décadas do século XX se caracterizaram pelo desaparecimento dos discursos hegemônicos em todas as áreas do conhecimento e das atividades humanas. Se algo caracteriza o artista moderno –incluindo o arquiteto— é a consciência de seu trabalho sempre poderia ser diferente (2). O seu inimigo, e nosso por consequência, é a arbitrariedade. O que se espera do processo de aprendizado ao longo de um curso de pós-graduação em arquitetura centrado no projeto é que o conhecimento adquirido através da prática projetual, entrelaçada com atividades de teoria, história e crítica, possa contribuir para evitar a Arbitrariedade e resultar na Forma Pertinente que nos escapa com tanta facilidade.
Embora o nosso interesse sempre tenha sido centrado no projeto, até recentemente a prática de projetos tinha ficado restrita às atividades relacionadas à obtenção de créditos, não sendo permitido que substituísse a elaboração de uma dissertação como trabalho de conclusão de um curso de mestrado ou doutorado. Recentemente, começamos a estudar essa possibilidade, muito provavelmente levados pela constatação da baixa qualidade do entorno construído brasileiro e pela conclusão de que o ensino de graduação não está sendo capaz de formar profissionais com a qualificação necessária para projetar os edifícios e a cidade que desejamos. E, sendo assim, passa a ser também atribuição da pós-graduação tentar contribuir para a elevação da qualidade da produção profissional brasileira.
Hoje fala-se muito na existência de duas espécies de mestrado oferecidos pelas universidades brasileiras:
As discussões iniciais levadas a efeito no PROPAR nos dirigiram a duas maneiras de inserir o projeto arquitetônico na pós-graduação.
O projeto no mestrado acadêmico
Trata-se de desenvolver a prática de projeto no currículo existente do mestrado acadêmico, de três maneiras:
Como disciplina regular, como temos desenvolvido desde 1990, abordando temas ligados às pesquisas dos professores do curso;
Como oficinas de projeto ministradas por professores visitantes e /ou locais sobre temas tópicos da cidade. Um bom exemplo foram as várias oficinas desenvolvidas por professores estrangeiros (Nuno Portas, Manuel Solá-Morales, Jonathan Barnett, Philipe Panerai, Cristián Boza, Jean-François Lejeune, Roberto Behar/ Rosário Marquardt) desde 1992, tratando de áreas urbanas de interesse da Prefeitura de Porto Alegre;
Possibilidade de substituir a dissertação por um projeto. Neste caso, o projeto é concebido como uma reflexão a respeito de um tema relevante. O trabalho final consiste de um projeto arquitetônico fundamentado, isto é, os elementos gráficos habituais são acompanhados por um texto alentado que trata dos aspectos teóricos, históricos e críticos do problema e de sua solução. Pode até ter o formato final de uma dissertação, com a diferença de que texto e ilustrações são da mesma autoria e se referem ao mesmo tema.
O projeto no mestrado profissional
Aqui nos defrontamos com com um fato importante da vida atual, que é a obsessão com o chamado mercado. Tudo deve estar subordinado ao mercado, talvez a verdadeira representação do espírito da época.
Nossa profissão não poderia escapar disso e há muitos que hoje identificam sua prática com prestação de serviços, atrelada ao mercado e seguindo modas e tendências internacionais. Nada mais natural, então, que surjam sugestões no sentido de criar cursos de pós-graduação que supram as "necessidades arquitetônicas" do mercado. Uma conseqüência disso é o entendimento de que a estrutura mais apropriada para aquele fim é a dos mestrados profissionais. Dois grandes equívocos.
Do mesmo modo, é equivocado pensar que os mestrados acadêmicos se dedicam a especulações sem aplicação imediata ou que os mestrados profissionais se dediquem a formar profissionais dotados de conhecimentos “de ponta” e atualizados para atuar no mercado. Em ambas modalidades de atividades de pós-graduação tratamos de temas relevantes à prática e à reflexão sobre a mesma. A diferença se coloca em termos de grau de intensidade com que os aspectos prático e reflexivo são tratados em cada um.
O mais importante é que o mestrado profissional não tenha como objetivo atender o mercado. Pelo contrário, deve formar profissionais capazes de se adequar e definir seu papel frente a qualquer circunstância, por mais inesperada e mutante que ela seja. Os Proprietários de um título de arquiteto ou os Adestrados em repetir respostas padrão atualizadas ou “de moda” perdem a sua qualificação à primeira mudança de condições. E no mundo atual as condições não param de mudar!
Uma boa formação profissional exige que se investigue e ensine o projeto não como é praticado habitualmente, mas como não se o pratica. A formação profissional não deve ser atual; devemos ensinar como já não mais se exerce a profissão, e também como ainda não a exercemos. O conteúdo desse ensino deve ser, ao mesmo tempo, anacrônico e vanguardista. Deve estar à margem, quando não à frente, do mundo da eficácia, da aplicabilidade, da rentabilidade e do mercado.
Com essa preocupação em mente, podemos armar uma estrutura curricular para um mestrado profissional que realmente possa qualificar arquitetos para a prática contemporânea. Mais do que nunca essa estrutura deverá ser centrada no projeto arquitetônico, certamente em sua prática mas igualmente na reflexão sobre essa prática. A espinha dorsal do curso que estamos criando no PROPAR será um ateliê de prática de projeto que abordará temas projetuais que nos parecerem relevantes em cada momento (exemplos: intervenções em áreas problemáticas e polêmicas de Porto Alegre, como o setor portuário, alvo de vários concursos; programa de interesse atual e coletivo, como o Museu Iberê Camargo; programas ligados a projetos de pesquisa em curso, como o edifício híbrido ou multifuncional urbano).
Concomitante ao exercício projetual, dentro do ateliê acontecerão atividades teóricas (a busca do entendimento e da aplicabilidade de teorias pertinentes ao tema estudado), históricas (a contextualização arquitetônica, cultural e socioeconômica do tema), críticas (análise de exemplos pertinentes) que servirão como fundamentação da proposta projetual específica.
Estima-se que metade dos créditos será obtida em atividades prático/teórico/histórico/críticas ou, mais simplesmente, o ateliê de projeto como o entendemos. A outra metade poderá ser obtida cursando um elenco de disciplinas que inclui tanto as já existentes no mestrado acadêmico quanto novas disciplinas criadas para o mestrado profissional. Essas novas disciplinas tratarão de temas estreitamente ligados à aspectos técnicos da prática como, por exemplo, soluções estruturais avançadas, conforto ambiental, economia da construção, iluminação natural e artificial, gerenciamento de obras, informática como instrumento projetual, revestimentos, e até mesmo marketing aplicado à arquitetura.
No entanto, a inclusão de qualquer uma dessas disciplinas voltadas especialmente para o arquiteto praticante será sempre baseada no objetivo de formar um profissional reflexivo, apto a responder com responsabilidade a qualquer problema projetual.
O trabalho de conclusão será um projeto arquitetônico fundamentado semelhante ao que seria aceito no mestrado acadêmico em substituição à dissertação. Mas o real produto do curso de pós-graduação em projeto arquitetônico que almejamos é um profissional que, além de dominar o conhecimento disciplinar, possa tratar o seu trabalho como produto cultural, que possa resistir à transformação da arquitetura em objeto de consumo e a sua inserção como ramo da publicidade.
Sobre as ilustrações
As ilustrações ao lado se referem a um exercício realizado em um módulo da disciplina Projeto Arquitetônico, do curso de mestrado do PROPAR/UFRGS – Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura –, turma especial para professores do curso de arquitetura das Faculdades Integradas Ritter dos Reis. Em termos temáticos, o exercício consistiu no projeto de uma livraria de aproximadamente 100 m2 no entorno do edifício das Faculdades Ritter dos Reis, podendo ser locada no seu interior ou no seu exterior. O único pré-requisito era que o objeto proposto possuísse um interior e um exterior. Mas isso deveria ser feito a partir de um programa teórico relacionado a alguns aspectos da modernidade arquitetônica. Isso significa entender o projeto como uma atividade totalizadora que sintetiza na forma os requisitos do programa, as sugestões do lugar e a disciplina da construção. Além disso, procuramos enfatizar a noção de forma como sistema de relações, ao invés de pensá-la em relação aos aspectos fisionômicos de um objeto. Por último, foi solicitado aos estudantes que utilizassem como critérios de projeto e verificação os seguintes conceitos: economia de meios, rigor, precisão e universalidade.
notas
1
“Escuelas de arquitetura. De arquitetos, modelos de formação e empresas”.
2
HARRIES, Karsten. “Thoughts on non-arbitrary architecture”, em Perspecta 20, 1983, citado em PEREZ, Fernando; ARAVENA, Alejandro; QUINTANILLA, Jose. Los hechos de la arquitectura. Santiago, Ediciones ARQ, 1999, p. 26.
3
idem, ibidem.
sobre o autor
Edson da Cunha Mahfuz é arquiteto, AADipl (1980), PhD (U. Penn, 1983), professor titular de Projetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS