Alfons Hug, curador geral da 25ª Bienal de São Paulo pronunciou há apenas alguns dias, durante sua abertura, a seguinte frase: “(A Bienal) não pode ser vendida como espetáculo, jogo de futebol ou carnaval… isso aqui não é arte popular. Exige sempre um pouco de reflexão e sensibilidade” (1). Para começar, uma sentença solene. A Bienal de São Paulo é um evento cultural brasileiro de primeira categoria. Brasil, o país do futebol e do carnaval.
Que a Bienal de artes plásticas não seja uma partida de futebol nos parece algo lógico e indiscutível. Mas dizem que nada é racional, nem no Brasil, nem no mundo das artes bienais. E tão logo se abriram as portas do evento, os paradoxos burlaram de maneira acachapante as profecias do funcionário de carreira Hug. No Palácio da Indústria de Niemeyer – concebido como sala de máquinas e encravado no maravilhoso parque tropical do Ibirapuera, no poluído coração urbano de São Paulo –, no piso térreo do edifício, havia uma candente instalação. Não me recordo do nome de seu criador. Era uma espécie de minicampo de futebol, hibridizado com características de campo de beisebol. Com um simulacro de gramado verde de plástico. Além das linhas de marcação do campo, umas seis ou sete maravilhosas bolas de campeonato. O público, que no Brasil é sempre imaginativo, sensual e divertido, não esperou a chegada dos guardas do museu. Fizeram uns cinco ou seis gols na instalação pós-moderna, que acabou resultando numa escandalosa expulsão de campo pós-surrealista.
O curador-funcionário alemão, que tem uma experiência verdadeiramente pobre em questões de arte latino-americana e internacional, não compreendeu que aquela instalação havia encontrado seu verdadeiro lugar histórico no panorama da arte global que ele mesmo estava promovendo. Era um happy end de perfeita definição camp. Uma decodificação da obra de arte como jogo lingüístico com objetos da fantasia, ou seja, como simulacro de uma partida de futebol. E perdeu a oportunidade de compreender que aquela instalação, com seus espectadores dentro, rompendo de maneira pós-vanguardista a dialética de interior e exterior, era precisamente a verdadeira obra de arte futebolística e carnavalesca.
Deixemos a cena. Voltemos ao texto. De acordo com o curador-chefe da Bienal, precisamente esta Bienal, que está em sua vigésima quinta edição, não é um espetáculo. Quando a época pós-moderna, quer dizer, o American Postmodern, chegou ao seu ponto culminante (tornou-se uma expressão superior de simulacros da guerra global, desconstrução da informação eletrônica e desmaterialização biológica do planeta), o curador-chefe alemão afirma que os eventos político-mediático-burocráticos das bienais paulistas não são espetáculos. Se não é um espetáculo, o que será que é?
Também esta segunda definição programática da Bienal foi burlada. Foi escarnecida cruelmente, como só pode acontecer com a imaginação carnavalesca que de alguma maneira misteriosa habita todos os corações brasileiros que tive o imenso prazer de conhecer e amar. Acontece que aqueles espontâneos futebolistas-artistas e seus chutes, goleadores ou não, estrita e tecnicamente falando (desde o ponto de vista epistêmico de qualquer crítico de arte que se pretenda autenticamente pós-moderno), haviam transformado o cenário espetacular de uma medíocre instalação em uma verdadeira situation pós-espetacular, uma ação artística trans-performática e desterritorializada, entre risadas lascivas e comentários jocosos.
Mas o curador-chefe não se contentou com a imcompreensão. Ocupou pessoalmente o lugar da action-art e, diante da estética confusa de gols e pelotas, decidiu retirar pessoalmente as bolas do cenário. “Arte é para contemplar” (2), foram as palavras paradoxais que pronunciou para o restaurado e reabilitado espetáculo multimediático da câmeras de televisão, microfones e jornalistas, decretando a volta da ordem. Parecia um missionário evangelista repreendendo índios antropófagos. Ou talvez fosse apenas um economista do FMI disfarçado de comissário cultural.
Dizer que a Bienal não seja uma grande vitrine, um evento, um espetáculo, é algo patético. A distinção que o funcionário global Hug estabelece entre arte e carnaval é ainda mais obscura. O carnaval, todo mundo sabe, é um ritual sagrado de passagem que têm suas raízes nas tradições religiosas africanas milenares do Brasil. Carnaval é, além de tudo, uma obra de arte total, com uma significação com a qual Wagner jamais pôde sonhar, muito menos os ascéticos professores da Bauhaus. Festa sagrada onde se articula a música, a poesia e a dança, com a exaltação de uma visão profunda da natureza e da sexualidade. É onde o povo se abraça com seus poetas e escritores. Só um imbecil ou a rede da televisão mercantilista pode tomá-lo como um espetáculo.
Mas o ponto culminante da profecia burocrática global responsável hoje pela Bienal de São Paulo foi alcançado pelas últimas palavras de seu curador. “Isso aqui não é arte popular. Exige sempre um pouco de reflexão e sensibilidade!”. Novas fronteiras. Globalidade sim, porém com novas fronteiras. Se for necessário, com alambrados. A arte da bienal, que é arte do espetáculo, mas que se apresenta como arte de reflexões elevadas, não é a arte do povo, nem dos pobres, nem dos índios, nem dos negros. Este “povo brasileiro” não é reflexivo, nem tampouco é sensível: eis aqui a questão!
A afirmação de Hug é draconiana. Nos obriga a uma resposta simples em nome da dignidade mais elementar. Há uma poderosa razão ética para defender a arte popular, tanto no Brasil como em qualquer lugar da terra. Ainda mais na era dos genocídios macroeconômicos globais que todos nós conhecemos. A arte popular é, certamente, a arte dos despossuídos, de seres humanos que agonizam como cultura e muitas vezes também como grupo ou nação étnica. Mas, ao mesmo tempo, é a arte dos estratos profundos, os mais antigos e mais verdadeiros de nossas culturas globais. Hug também não leu Vico, Herder, Grimm, nem mesmo Goethe, que apontaram para a centralidade das tradições literárias populares na própria cultura européia. Certamente não sabe quem é Darcy Ribeiro. A arte popular constitui um substrato cultural profundo, uma vez que se enraíza em etapas muito remotas da história da humanidade global. É esta mais ou menos a concepção social que defendeu Gramsci no cárcere, e que sua discípula ítalo-brasileira Lina Bo reformulou no Brasil, com extraordinárias conseqüências na boemia tropicalista da música, da poesia e das artes visuais da Bahia.
Existe ainda uma última razão que deslegitima o curador desta Bienal. Esta arte popular que ele proíbe de entrada na Bienal é a mesma arte que gerou a arte moderna em suas expressões lingüisticamente mais sutis e espiritualmente mais intensas. A começar do Brasil. A modernidade brasileira começa com Macunaíma, a mais radical das reivindicações das culturas populares do Brasil, desde a língua dos tupis-guaranis até a plasticidade barroca da África existente no Rio de Janeiro ou na Bahia. Não podemos esquecer o Grande Sertão de Guimarães Rosa, o clássico moderno, ou a música e a poesia das vanguardas… Até a arquitetura dos palácios de Brasília está inspirada na elegância dos volumes puros das malocas indígenas do Amazonas. Separar o popular do erudito significa cortar a historia da arte e da literatura brasileiros pela metade.
Contudo, não se trata apenas do Brasil. A vinculação do popular e do erudito foi igualmente central nas manifestações mais inovadoras da arte de vanguarda européia. Kandinsky é impensável sem as aldeias medievais que povoavam a Europa antes da Segunda Guerra Mundial. Klee descobre a cor nos mercados do Norte de África. Schoenberg reivindicava o artesanato dos sons musicais em contraponto aos pretensos mestres da harmonia musical. Lorca reviveu o misticismo da Espanha islâmica na dança e na música cigana…
De qualquer modo, numa questão importante concordo sobre esta desconfiança manifesta pelo intelectual global diante do popular. A expressão popular mais profunda da arte popular brasileira é a antropofagia. E os índios tupinambás, que a praticaram com o primeiro funcionário de carreira europeu que chegou às lindas praias desse país, foram os primeiros globalizadores integrais: não lhes importava comer um francês, mesmo que este tivesse sotaque alemão. Só se abstinham de comer espanhóis, mas o cronista italiano Benzoni descobriu que era por medo de se envenenarem.
notas
1
Jornal do Brasil, 17 de marco de 2002, p. B-5.
2
Estado de São Paulo, 25 de marco de 2002, Caderno 2.
sobre o autor
Eduardo Subirats é autor de uma série de obras sobre teoria da modernidade, estética das vanguardas, assim como sobre a crise da filosofia contemporânea e a colonização de América. Escreve assiduamente na imprensa latino-americana e espanhola artigos de crítica cultural e social