Na década de sessenta, um Japão otimista e de cidades extremamente populosas levou certos arquitetos a proporem saídas para a supercongestão urbana do país. Projetos de cidades lineares na costa, estruturas flutuantes sobre o mar e edifícios orgânicos que cresceriam indefinidamente foram algumas das respostas à falta de espaço das grandes metrópoles. O chamado metabolismo causou um certo impacto na arquitetura do mundo ocidental, apesar de pouquíssimos terem sido os projetos construídos. Kisho Kurokawa, um dos líderes do grupo, viu seu hotel cápsula virar realidade quando este brotou de um terreno em Ginza, no centro de Tóquio. O prédio mutante tinha a forma de uma torre com uma estrutura localizada no miolo que suportaria inúmeras cápsulas encaixáveis, como num brinquedo LEGO. Assim, o hotel poderia crescer (ou eventualmente diminuir) à medida que a demanda aumentasse sem que isso acarretasse uma ocupação de terreno maior.
Sonhos de arquitetos visionários muitas vezes se tornam pesadelos quando colocados em prática. Kurokawa pensou orgânico porque as grandes cidades exigiam formas de ocupação alternativas e flexíveis, mas as mega-estruturas que saíram do papel quase sempre resultaram em edifícios-problema. Na verdade, seu hotel cápsula nunca cresceu porque na prática a idéia de um edifício vertical metabolista não funcionou; e hoje, a torre lá está com o número de quartos idêntico ao de quando foi inaugurada, em 1972.
O que não quer dizer que a idéia de uma arquitetura metabolista seja intrinsecamente ruim. Em meados dos anos oitenta, um ex-funcionário do exército resolveu montar um hotel em plena selva amazônica num afluente do rio Negro, rio Ariaú, a 60 quilômetros de Manaus. O hotel recebeu o nome do afluente, acrescido do pomposo sobrenome de Jungle Towers.
A característica “metabolista” do Ariaú está na fragmentação dos quartos espalhados pelas diversas torres, que hoje já são mais de dez. O hotel parece estar em crescimento contínuo; novas torres estão sempre sendo adicionadas às torres existentes. Em 1986 eram oito quartos, hoje são 270 e este número poderá chegar a 1.000 em breve. Altíssimas passarelas – que chegam a ter dois ou três níveis – ligam as torres espraiadas sobre a várzea do rio, o que permite uma expansão infinita do número de quartos sem que haja prejuízo para a paisagem geral dos meandros do Ariaú Jungle Towers (hoje rebatizado de Ariaú Amazon Towers). Os visitantes jamais entram em contato com o chão; tudo está suspenso. Piscinas são construídas sobre passarelas, uma grande pirâmide de vidro recebe os hóspedes esotéricos, uma capela de folhas de palmeiras acolhe os católicos mais devotos, um centro de convenções para 600 pessoas e um cybercafé atraem o turismo de negócios, e dois heliportos mais um ovniporto aumentam a complexidade espacial da trama de oito quilômetros de passarelas sobre palafitas que terminam, por enquanto, em um mall com lojas de coisas ecológicas.
Kyionore Kikutake, um outro arquiteto metabolista, pensou enormes geodésias de vidro sobre florestas que concentrariam o crescimento da população japonesa em círculos inseridos nas matas, e onde a energia seria renovável, os materiais, recicláveis, as construções obedeceriam a um processo de desmontagem e remontagem onde tudo seria reaproveitado. Seu colega Kenzo Tange projetou uma cidade na baía de Tóquio onde uma “infra-estrutura ideal” transformaria os prédios em pontes e viadutos, ligando Tóquio a novos piers, a prédios flutuantes e a uma delirante oferta de infra-estrutura no meio do mar. Prédios confundir-se-iam com o Tokyo Metropolitan Highway, viaduto de 200 quilômetros que serpenteia toda a capital, e a baía seria ocupada por escritórios e apartamentos apoiados em enormes pilotis sobre marinas.
Logicamente, as torres sobre palafitas do Ariaú Jungle Towers nada se assemelham às construções tecnológicas dos metabolistas. Elas também não imitam as casas dos ribeirinhos amazonenses, nem a arquitetura dos paraísos turísticos do Pacífico, muito menos a cafonice americanizada dos cinco estrelas do Nordeste. São enormes cilindros verdes revestidos de uma tela bem tosca que mais parecem grotescos e gigantescos viveiros, mas que estão incrivelmente integrados no meio dos igarapés do rio por meio de uma infra-estrutura eficiente, plasticamente expressiva e ironicamente metabolista e biológica, como queriam os japoneses. (Mas alguma coisa emprestada da arquitetura asiática está presente nas torres: talvez as estruturas camufladas dos filmes da guerra do Vietnã, as torres hindus de Bali em uma versão ‘militar’, a ponte do rio Kwai, ou nada disso).
Quando ficam velhas, as torres vão sendo abandonadas: uma das primeiras já está desativada por causa das fundações que estariam afundando ou apodrecendo, e parece que existe uma vida útil para as outras – todas estão programadas para serem abandonadas em um determinado prazo. No futuro, dezenas de torres estarão largadas na selva a espera do fim natural das coisas abandonadas, o que só aumentará o caráter metabólico de um hotel de surpreendente arquitetura militar. As acuaricuaras afundadas na várzea vão se desintegrando à medida que outras torres vão nascendo junto com mais outros quilômetros de passarelas cada vez mais complexas, transformando o hotel em uma cidade flutuante de torres novas, velhas, moribundas, abandonadas, em construção, por vir.
O esgoto – conta-nos um panfleto do hotel – é tratado e o lixo é reciclado em Manaus. O único resíduo produzido e não tratado é a própria arquitetura, mas tudo indica que o tempo e a selva se encarregarão de transformar a madeira das torres em matéria orgânica, que retornará aos rios, que finalmente alimentarão outras torres. O Ariaú é como a realização – via “tecnologia intermediária” – de um sonho metabolista: mesmo se alcançar a escala de uma verdadeira cidade, parece não correr o risco de virar um pesadelo. De qualquer forma, ainda que seu futuro seja menos lírico que banal, ainda que o turismo ecológico seja uma moda passageira, e ainda que essa cidade delirante um dia se perca no labirinto de seus próprios escombros, sua arquitetura de origem desconhecida é um alívio para um Sudeste de arquiteturas tão previsíveis.
sobre o autor
Carlos M. Teixeira é arquiteto, mestre em urbanismo pela Architectural Association e autor do livro "Em obras: história do vazio em Belo Horizonte"