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architexts ISSN 1809-6298


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Qual seria um sentido possível para um fazer artístico? Existe um sentido possível para um objeto artístico? A reflexão proposta passa pelas idéias de Heidegger e de Carlos Antônio Leite Brandão

english
What would be a possible direction for an artistic deed? There is a possible direction for an art object? The reflection is moved by the ideas of Heidegger and Carlos Antônio Leite Brandão


how to quote

MACEDO, Danilo Matoso. Espaços da arte e da arquitetura. Reflexão acerca de sua relação. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 027.06, Vitruvius, ago. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.027/762>.

Nos foi proposta a seguinte assertiva para reflexão: “A artes plásticas: espaço analítico da arquitetura”. Não é minha intenção tratar aqui de analogias entre a cena artística e a cena arquitetônica de determinada época. Tais analogias acabam por vezes em basear-se somente numa comunhão de interesses entre os dois campos abordados através do Zeitgeist. Procuro evitar esta abordagem por parecer-me genérica e, sobretudo, desfavorável a uma compreensão dos objetos tratados em si em prol de análises contextuais. C. A. Leite Brandão nos alerta para este vício. “A tentação historicista (...) é a tentação de fazer derivar o sentido do texto, da obra arquitetônica ou do objeto artístico a partir do contexto histórico –cultural que o envolve e só depois disso abordar a obra propriamente dita (...) nela, a obra perde seu poder determinante e formativo daquele contexto” (2).

Por outro lado, tampouco é minha intenção fazer comparações diretas entre obras de arte e obras arquitetônicas específicas. Surge outra dúvida anterior e necessária a uma parametrização desta comparação: em que instância podem a arte e a arquitetura interpenetrar-se, de modo que a arte possa servir como ferramenta analítico-interpretativa da arquitetura? Ao dizer ferramenta analítico-interpretativa é possível ainda enxergar a arte sob dois aspectos: como meio ativo de intervenção em concepções arquitetônicas de uma época e como instrumento auxiliar de uma tentativa de compreensão destas concepções feitas pelo crítico ou historiador de arquitetura. O presente texto constitui uma reflexão em torno desta questão. Acredito que as novas dúvidas suscitadas poderão auxiliar-nos posteriormente na compreensão da interpenetração do espaço artístico e do espaço arquitetônico.

A reflexão proposta necessita, portanto, de uma definição dos espaços próprios de cada área, tarefa à qual dedico-me a seguir. Para tanto pretendo basear-me principalmente no ensaio de Heidegger A Coisa (3), bem como na concepção fenomenológica e hermenêutica de Carlos Antônio Leite Brandão.

O espaço da arte

Qual seria um sentido possível para um fazer artístico? Existe um sentido possível para um objeto artístico? Uma resposta nos dá C. A. Leite Brandão:

“Já na sua Poética, Aristóteles estabelece a verossimilhança e não o vero como o objetivo do poeta trágico. Propondo a este retratar não “os homens como eles são” mas “tais como devem ser”, afora inúmeras outras considerações derivadas acerca da eticidade original e da função da obra de arte, o Estagirita coloca a necessidade da obra ater-se aos princípios de unidade tempo, ação e lugar que a capacita a condensar as ações e concentrar a vida de modo a que ela, afastando-se da dispersão do contingente, revele um sentido e promova a catarsis e o auto-reconhecimento do espectador. E, assim fazendo, ela se vê conferida de sentido e oferece um conhecimento da verdade que antes se ocultava. Tal experiência da verdade é o que muda o espectador e, portanto, é um outro tipo de verdade que se anuncia na obra de arte e que não pode ser compreendida como adequatio entre a obra e algo exterior a ela: é a verdade como desvelamento, produção do sentido, experiência do mundo da obra que se intromete e faz vacilar o mundo daquele que se envolve com ela” (4).

Esta função de desvelamento da verdade interna da obra de arte só ocorre quando o intérprete confere-lhe o sentido próprio da interpenetração de seu mundo com o mundo da obra. A existência da própria obra para o intérprete só ocorre neste momento de comunhão com a sua existência. A qualidade da obra para o intérprete/espectador portanto só se revela na medida em que esta lhe desvela não só seu próprio mundo, mas ajuda-o a descobrir novos sentidos para seu próprio mundo, sua própria existência. Como diz Brandão: “o que experimentamos e nos atrai em uma obra de arte é o fato de que ao contemplá-la podemos conhecer e reconhecer algo nela e, simultaneamente, em nós mesmos” (5). Por outro lado, podemos considerar o artista como um intérprete do mundo em que vive e de sua própria existência ao conceber o objeto artístico. Assim, a tarefa poética – criativa – do artista seria ao mesmo tempo uma tarefa interpretativa. Esta abordagem abre-nos a vertente da criação artística para além da materialidade do objeto em si – autônomo – possibilitando-nos a compreensão de diversas manifestações artísticas contemporâneas onde o enfoque no processo de criação e interpretação prescinde da opacidade semântica do objeto para concentrar-se no evento poético – como ocorreu com as perfomances e os happennings a partir da década de 60.

A realidade atual, entretanto, conduz-nos rumo a outra atitude. Heidegger já apontava, nos anos 50, para um cenário de alienação crescente do homem em relação ao mundo material em que vivemos:

“todas as distâncias no tempo e no espaço estão encolhendo. O homem hoje chega em uma noite, num avião, a lugares que antigamente demandariam semanas e meses de viagem. Ele hoje recebe informação instantânea, por rádio, de eventos de que antigamente ele só ouviria falar anos após o ocorrido, se tanto. [...]

Mas a abolição frenética de todas as distâncias não traz proximidade; porque proximidade não consiste em redução de distância. O que é menos remoto para nós em termos de distância, em virtude de sua imagem num filme ou seu som no rádio, pode permanecer longe de nós. O que é incalculavelmente longínquo para nós em termos de distância pode estar próximo de nós. A curta distância não é, em si, proximidade. Nem a grande distância é longínqua” (6).

O distanciamento entre mundo concreto e o homem são apontados por Heidegger como indícios de alienação do homem em relação ao mundo em que vive, em relação às coisas materiais que nos cercam, assim como a abstração e generalização em relação à realidade do pensamento científico moderno. Esta alienação seria a causa das grandes crises contemporâneas. Um exemplo dos fatores desta crise do homem contemporâneo nos dá o próprio Heidegger:

“O conhecimento científico, que se move dentro de sua própria esfera, a esfera dos objetos, já aniquilou as coisas como coisas muito antes da explosão da bomba atômica. A explosão da bomba atômica é apenas o exemplo mais grosseiro de todas as confirmações grosseiras da aniquilação da coisa já há muito atingida: a confirmação de que a coisa como coisa permanece nula” (7).

Assim, se é tarefa da arte ajudar a conferir sentido à existência dos que com ela travam contato, uma importante linha de trabalho artístico está exatamente em recuperar a importância da materialidade das coisas, no sentido heideggeriano, na existência do homem. Parece-me, por isso, mais produtiva a concentração da produção do objeto artístico como uma coisa entre outras – o homem incluído –, que delas se destaca por sua capacidade de síntese e compreensão destas coisas mesmas.

Coisa, para Heidegger, significa aqui reunião, significa a propriedade de um objeto de ser reunindo em si um mundo: a coisa coisa [verbo]. Coisando ela fixa terra e céu, divindades e mortais. Permanecendo, a coisa traz os quatro, em sua longinqüidade, próximos um do outro (8).

É importante, neste ponto, que deixemos claros os conceitos de obra de arte de que tratamos. Lidamos aqui com três instâncias distintas:

Numa primeira instância, mais genérica, consideramos parte da obra de arte o mundo que ela reúne e cujos múltiplos sentidos e significados circulam ao redor dos diversos pólos de sua existência. É o círculo hermenêutico de Paul Ricoeur, do qual nos fala Brandão:

“Para a hermenêutica de Ricoeur, o sentido não está nem dentro nem fora do texto [a obra de arte], mas circula entre múltiplos canais: o do autor, o do leitor, o da obra, o da tradição e o do público. Contudo, ela não visa a um saber absoluto, capaz de sintetizar todos estes múltiplos canais e dirigi-los a um sentido definitivo do texto e da obra, nem pretende um saber ou mediação total. O que dela se deriva são, apenas, mediações parciais que nos dão várias perspectivas da obra, semelhante ao cubismo, semelhante à percepção em que só podemos apreender perfis de um objeto” (9).

Esta ampla visão do escopo da obra de arte, da qual suas interpretações participam e na qual coexistem nos é útil para uma visão inclusiva do estudo da obra de arte, onde sua imagem – considerada como interpretação através de fotos, desenhos etc –, os textos explicativos, interpretativos etc. sobre ela comungam de seu sentido conferindo-se mutuamente sentido os diversos pólos, ou canais, de interpretação. Assim, nos termos de Brandão: o intérprete só compreende uma obra quando ela o compreende.

Uma segunda instância da obra de arte estaria na consideração dela como objeto. Heidegger diferencia objeto de coisa, tratando por objeto à relação da coisa que existe por si só à revelia do sujeito com este sujeito-homem: “uma coisa independente auto-suficiente se transforma num objeto se a colocamos diante de nós, seja pela percepção imediata ou seja por trazer à mente uma re-presentação sua” (10). Assim, a obra como objeto existe na mente do artista antes de existir como coisa auto-suficiente. Ela existe de modo potencial como objeto na medida eu que o artista se propõe a realizá-la como coisa no futuro. Ela existe mesmo como objeto para o intérprete que se dirige ao museu esperando travar contato com ela. Mas sua existência como coisa só se completa para o artista e para o intérprete na comunhão deste objeto potencial com sua materialidade.

Por fim, temos a instância da obra de arte como coisa auto-suficiente, que, em sua materialidade, existe à revelia de um sujeito que lhe presencie. Se esta instância parece à primeira vista a mais restritiva e estéril da obra de arte, vemos que no entanto é exatamente esta autonomia que lhe confere um potencial infindável de interpretações indetermináveis por diversos sujeitos. “O objeto a ser compreendido – texto, evento histórico, objeto artístico ou arquitetônico – oferece-se sempre dentro de uma infinita opacidade e só pode ser apreendido de forma parcial e inesgotável” (11). Acredito que apenas a materialidade confere às coisas esta infinita opacidade que as torna prenhas de sentido para todos nós, pois apenas a materialidade é auto-suficiente.

O espaço da arquitetura

O espaço da arquitetura é freqüentemente mesclado ao da arte; tanto em diversas análises – como é o caso do texto de Brandão citado acima – quanto em textos normativos. Esta confusão inicial talvez ocorra por haver sido a arquitetura – ao longo da história – considerada como tal apenas ao tratar da construção de edifícios monumentais ou de caráter público ou religioso. No entanto, a prática da arquitetura moderna, principalmente a partir das vanguardas do início do século, abriu o escopo da mesma para todos os ramos da construção civil. É tarefa do arquiteto a criação do meio-ambiente construído para o homem. Este aumento de responsabilidade acabou por colocar o arquiteto num impasse: de um lado há a necessidade de construção de um meio-ambiente genérico, como palco anônimo da existência humana; do outro lado encontramos a responsabilidade histórica do arquiteto em criar sempre uma coisa entre coisas, um objeto diferenciado que sintetize a experiência de quem o cria e vivencia: a priori, uma obra de arte.

A própria alcunha do termo arquitetura coloca-nos diante desta dicotomia:

“A origem etimológica da palavra arquitetura, entre os gregos, decorre da necessidade de distinguir algumas obras providas de significado existencial maior do que outras, que apresentavam soluções meramente técnicas ou pragmáticas. Assim, precedendo ao termo tektonicos (carpinteiro, fabricante, ação de construir, construção), acrescentou-se o radical arché (origem, começo, princípio, autoridade)” (12).

A priori, no entanto, a responsabilidade e obrigação do arquiteto é de pensar, criar e viabilizar a construção de um meio-ambiente repleno de coisas em potencial – como qualquer coisa pré-existente: uma pedra, uma árvore, uma montanha.

Ao livrar o fazer arquitetônico desta pretensa tarefa artística não estamos livrando-o de uma tarefa pensante, poética. Como nos sugere o próprio Brandão:

“a modernidade (...) leva, no século XIX, à perda da arché. Não que a partir daí o que se tenha edificado não tenha importância. A originalidade e a vitalidade da aquitetura do século XX provam-nos o contrário, embora não nos seja claro se ela remete a uma arché – o que Payot nega, pois a considera submissa ao industrialismo, ao tectônico – e que arché seria esta” (13).

É possível atingir um fazer artesão, tectônico que nos remeta a uma arché? Provavelmente sim. Quando Heidegger aponta o distanciamento, a falta de proximidade do homem moderno com as coisas que circundam-no, ele iguala-as a coisas que encontram-se distantes. Na contramão do distanciamento das coisas simples e concretas que nos circundam, está a aproximação das coisas distantes que chegam até nós. E mais: sem o tectônico puro e simples não é possível o arqui-tectônico.

É necessário um dia-a-dia alienado para que possamos re-descobrir esta mesma realidade ao travar contato com uma obra de arte ou com uma obra de arqui-tetura. É necessário haver igualdade para que se reconheça uma desigualdade. Uma das causas da crise da arquitetura contemporânea é a crise de caráter da própria profissão: o arquiteto é ensinado em escolas e livros a criar obras de arte, espaços que se diferenciem, que sejam obras de arte e frustra-se constantemente ao descobrir que o meio-ambiente urbano em que vivemos é homogêneo e amorfo não pela anonimidade das contribuições individuais, mas por diversas tentativas frustradas de se construírem espaços de diferença. A somatória destas tentativas acaba por descortinar ao habitante urbano não uma somatória de sínteses de sua existência comungada com cada contribuição, mas uma triste coleção de construções que podem ter se diferenciado das demais em algum momento, mas cuja repetição de princípios e padrões construtivos posterior em diversas outras edificações acaba por esgotá-la como espaço significativo. Nas cidades brasileiras, é a sucessão de estilos e modas arquiteturais que nos circunda, numa espécie de ecletismo temporal que sequer nos explica a história da arquitetura, pois a necessidade frenética de construção do mercado imobiliário acaba por destruir, desconfigurar ou simplesmente ignorar a presença de uma ou outra construção que possa realmente haver sido determinante em algum questionamento espacial específico.

Não devemos, no entanto, confundir pragmatismo construtivo com tecnicismo, com neutralidade formal nem e menos ainda com funcionalismo.

O tecnicismo ou a prevalência da techné sobre a arché enfatiza o discurso da técnica construtiva como ofício de eficiência, durabilidade e, por vezes, novidade técnica sobre a necessidade de se construir espaços demandados por um indivíduo ou grupo de indivíduos. Neste caso, os meios se sobrepõem à finalidade: construir o meio-ambiente humano. O que construir torna-se secundário em relação a como construir. O discurso técnico converte-se em objeto, no sentido heideggeriano, em lugar da coisa construída: um objeto distanciado da realidade.

A neutralidade formal, embora em grande parte das vezes seja a resposta construtiva mais pragmática, simples e direta a determinada questão edilícia, não necessariamente contribui para a conformação de um meio ambiente urbano anônimo. Se por um lado uma construção formalmente neutra isolada dentro de um contexto urbano caótico grande parte das vezes converte-se em benéfica generosidade estética ao habitante da cidade, por outro lado a uniformidade generalizada, carente de individualidade, (o caso dos grandes conjuntos habitacionais europeus do pós-guerra, por exemplo) não oferece ponto de toque direto na escala humana que o aproxime do edifício como coisa, convertendo-o não num meio-ambiente resultante de uma reunião de coisas próximas ao homem, mas num espaço homogêneo e indistinto, cuja síntese pouco interessaria a objetos de diferenciação.

O funcionalismo peca pela valorização excessiva da idéia do espaço e de seu uso e apropriação pelo homem. Negando a autonomia da obra e sua opacidade semântica, o arquiteto funcionalista acredita estar determinando a leitura da obra de arquitetura ainda em sua concepção, quando ela ainda é mais objeto abstrato que coisa concreta. O resultado é uma vã tentativa de “congelamento” do Zeitgeist da obra, através de uma compartimentação funcional. A repetição exagerada do plan libre corbusiano, embora seja uma solução menos determinista deste uso, acaba incorrendo, por vezes, no já citado problema da neutralidade formal excessiva.

Um pragmatismo construtivo centra-se na produção de uma coisa, considerada não apenas como materialidade auto-suficiente, mas também como um mundo em si, no sentido de Heidegger. Os atuais sistemas de produção/construção do espaço tornam quase indispensável a objetificação racional do mesmo através de representações, desenhos técnicos, simulações e cálculos diversos que permitem o planejamento de custos, pessoal e material envolvidos no processo. Acredito que, ao contrário do que possa parecer, os meios de comunicação e representação – considerados como objetificação científica – não comparecem no processo de produção do espaço como um modo de alienação entre a coisa construída – obra de arquitetura – e homem – no caso o arquiteto e o cliente/construtor geradores do espaço. Isto porque se consideramos como parte da coisa obra de arquitetura todas as interpretações do objeto auto-suficiente – a edificação construída –, então somos forçados a admitir como parte do mundo que esta coisa reúne em si também as diversas apresentações e re-presentações feitas em torno a essa coisa. Aqui, a representação arquitetônica é instrumento de interpretação da obra de arquitetura, e com ela se inter-penetra na interseção de seus mundos, num acréscimo de ser mútuo entre estes elementos.

Afirmo aqui que, sendo as representações da obra de arquitetura parte de seu mundo e vice-versa, é exatamente na riqueza deste acréscimo de ser mútuo entre re-presentação e obra construída representada fecunda-se um possível sentido da coisa obra de arquitetura. Quanto mais íntimo e rico for este acréscimo de ser maior será a capacidade desta obra de aproximar-se não apenas de seus criadores/intérpretes, mas também de seus espectadores/intérpretes. Trata-se de um meio válido de se garantir que esta obra será uma coisa entre coisas – homem, natureza, contexto urbano ou natural etc –, que reuna em torno de si sentidos múltiplos. Isso não quer dizer necessariamente que esta obra é uma coisa que se destaca dentre as demais por uma capacidade analítica superior, como é o caso da obra de arte, mas apenas que ela guarda uma relação de proximidade maior com o homem.

Interseção entre os espaços da arte e da arquitetura

Como é possível relacionar o mundo da obra de arte ao mundo da obra de arquitetura? Se pensamos a arquitetura em princípio como uma coisa entre coisas, que compõe um meio-ambiente sereno à experiência humana e a obra de arte como uma coisa que se destaca entre coisas por mostrar ao homem “a verdade como desvelamento, produção do sentido, experiência do mundo da obra que se intromete e faz vacilar o mundo daquele que se envolve com ela” (14), a relação entre os dois espaços nos parece claramente complementar.

Mais que complementar, entretanto, a relação entre as artes plásticas e a arquitetura é original, arquetípica, como nos propôs o teórico alemão Gottfried Semper:

“Etimologicamente, ele assinala, a palavra para parede (em alemão wand) é cognata de gewand, que significa vestimenta, manto, de modo que a policromia [em arquitetura] tem sua origem no conceito de vestimenta cobrindo a primeira arquitetura” (15).

A assertiva de Semper sugere-nos não apenas a relação entre parede e abrigo, mas entre artes plásticas e abrigo. A idéia de abrigo, de habitação teria nascido originalmente não do ato de se edificar uma cabana primitiva original, mas da construção mental de um espaço representativo existencial repleno de símbolos, imagens e texturas, representadas nas paredes das cavernas primitivas. É, portanto, da necessidade de simbolização, reunião e re-presentação do mundo que surge a noção de habitação. Ela surge antes como objeto mental que como produto, matéria auto-suficiente. A idéia de abrigo provê o conceito de habitação ao homem. Heidegger adverte-nos, no entanto, que o que uma “coisa é nós nunca podemos apreender (...) somente observando a sua aparência externa, a idea. Por isso Platão, que concebe a presença em termos de aparência externa, tinha menos entendimento da natureza da coisa que Aristóteles e todos os pensadores seguintes”. (16)

Mas o que é o conceito de habitação? Heidegger, em seu ensaio Construir, Habitar, Pensar, relaciona etimologicamente no alemão arcaico o termo construir (bau) com o verbo ser/estar (bin), e acrescenta: “não habitamos porque construímos, mas construímos hoje e no passado enquanto habitamos, quer dizer, enquanto somos os habitantes e somos como tais” (17). Mais adiante, Heidegger conclui: “habitar é o traço fundamental do ser (sein) de acordo com o qual os mortais são” (18). E depois alerta-nos para a crise contemporânea: “a verdadeira crise da habitação não reside na falta de alojamentos. (...) A verdadeira crise da habitação reside no fato de que os mortais estão sempre procurando o ser da habitação e de que precisam, antes de tudo, aprender a habitar” (19).

A conclusão lógica a que chegamos é clara: a crise da habitação relaciona-se à crise do ser. Esta por sua vez tem sua origem na relação de falta de proximidade que nós, como coisas mortais, temos com as demais coisas que nos cercam. É deste distanciamento da materialidade imediata que surge a crise do ser e, conseqüentemente, a crise do habitar.

Igualmente, para um aprendizado do ser de cada um, é necessário que cada um aprenda a habitar através da construção de seu mundo próprio. A construção do mundo de coisas que nos cercam precede à construção física. Construir é tanto um ato de re-presentação das coisas quanto a presentificação delas mesmas.

É esta construção mental a mesma que as artes plásticas auxiliam-nos a construir e a reconstruir, fazendo vacilar o nosso mundo. Nesse sentido, ao arquiteto cabe a tarefa de tecer o manto, o abrigo de circunstantes coisas soberanas. O mundo das artes é a ruptura, o ato analítico (ana-lisis, do latim ruptura) do torpor alienado em que vivemos, em prol da síntese que a arquitetura acolhe.

A habitação passa a ser o lugar e o ato pelo qual confirmamos nossas certezas, onde construímos nossa relação com os diversos mundos das coisas que nos circundam e damos sentido à nossa existência.

O mundo das artes e o mundo da arquitetura se interpretam, se inter-penetram, portanto nesta relação dialética de análise/síntese, o que nos permite reescrever a assertiva original, pois tanto a arquitetura constitui um espaço sintético para as artes plásticas quanto temos as artes plásticas: espaço analítico para a arquitetura.

notas

1
Texto elaborado para a disciplina Tópicos Especiais de Arquitetura e Urbanismo – As Artes Plásticas, Espaço Analítico da Arquitetura – ministrada pelo professor Dr. Stéphane Huchet no Curso de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo Escola de Arquitetura da UFMG no 1º semestre de 2001, com orientação do professor Dr. Luiz Alberto do Prado Passaglia. Julguei pertinente sua publicação dado o debate que vem cercando o Concurso para o Centro de Arte Corpo, realizado pelo IAB e pela USIMINAS em 2001.

2
BRANDÃO, Carlos A. L. A formação do homem moderno vista através da arquitetura. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2ª ed., 1999, p.115.

3
HEIDEGGER, Martin. The Thing. in Poetry, Language, Thought. New York: Perennial Library. 1971, p. 165-183.

4
BRANDÃO, Carlos A. L. Hermenêutica e verdade na obra de arquitetura. Parte 01. Texto não publicado. Belo Horizonte: Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG. 1997, p. 3-4.
5
BRANDÃO, Carlos A. L. De arquitetura e urbanismo, Belo Horizonte: EAUFMG, jul./dez. 1999, p. 121.

6
HEIDEGGER, Martin. Op. cit., p. 165

7
Idem, ibidem, p. 170

8
Idem, ibidem, p. 177.

9
BRANDÃO, Carlos A. L. Op. cit. (1999), p. 117.

10
HEIDEGGER, Martin. Op. cit., p. 167.

11
BRANDÃO, Carlos A. L. Op. cit. (1999), p. 118

12
BRANDÃO, Carlos A. L. Op. cit. (1999), p. 27.

13
BRANDÃO, Carlos A. L. Op. cit. (1999), p. 227.

14
BRANDÃO, Carlos A. L. Op. cit. (1997), p. 4.

15
KRUFT, Hanno-Walter. A history of architectural theory – from vitruvius to the present. New York, Princeton Architectural Press, 1994, p. 312.

16
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar in CHOAY, Françoise. O Urbanismo. trad. Dafne Rodrigues. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 168.

17
Idem, ibidem, p. 347.

18
Idem, ibidem, p. 348.

19
Idem, ibidem, p. 349.

sobre o autor

Danilo Matoso Macedo é arquiteto (EA-UFMG, 1997), vencedor do Concurso Attílio Correia Lima de Requalificação do Centro de Goiânia, em 2000 (com Alexandre Brasil, André Oliveira e Carlos Alberto Maciel), menção honrosa no 1º Prêmio Itagrés Arquiteto 2000, em 1995, e no 10º Concurso Paviflex, em 1998. Atualmente cursa mestrado em arquitetura e urbanismo na EA-UFMG

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