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architexts ISSN 1809-6298


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O artigo descreve as paisagens urbanísticas nas quais as grandes cidades estão inseridas: terrenos baldios, vazios ociosos, lacunas ilhadas, áreas subutilizadas, usando como exemplo a cidade de Belo Horizonte


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TEIXEIRA, Carlos M; GANZ, Louise Marie. Urbanismo efêmero em amnésias topográficas. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 036.05, Vitruvius, maio 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.036/685>.

A paisagem das grandes cidades é composta por muitos elementos residuais: terrenos baldios, vazios ociosos, lacunas ilhadas; áreas subutilizadas esperando ser ativadas, reservatórios de oportunidades abertos às pressões das demandas cívicas e sociais.

Os prédios nas ruas do bairro Buritis, em Belo Horizonte, só podem contar com quatro pavimentos, ficando sem qualquer utilização as estruturas em terreno de declive acentuado – o que forma as assim chamadas “palafitas” de concreto sob os prédios. Como conseqüência da rigidez da Lei de Uso e Ocupação do Solo, construções onde as palafitas têm a mesma altura ou mesmo são mais altas que o prédio que sustentam são elementos comuns naquela paisagem. Além de serem conseqüência da ausência de integração entre arquitetura e topografia, esses prédios refletem fatores de domínio mais amplo: o crescimento urbano descontrolado, a justaposição aleatória de interesses múltiplos (da prefeitura, dos especuladores do setor imobiliário, das empresas urbanizadoras), a discrepância entre arquitetura e infra-estrutura e, principalmente, o desperdício típico das sociedades não planejadas. “Invento para Leonardo”, peça do grupo de teatro Armatrux, foi a transformação desse espaço em palco de um espetáculo, evento que se encaixou perfeitamente em nossa idéia de reverter os espaços negativos da cidade, aproveitando-os como “espaços ativáveis” (2).

Ora, o potencial dessas estruturas está precisamente nessa desorganização baseada numa lógica que poderíamos chamar de amnésia topográfica. O labirinto formado pela seqüência das palafitas de concreto, a natureza explicitamente residual desses labirintos e a mediocridade geral dos prédios suportados pelas mesmas palafitas são, todos eles, características que podem ser vistas como qualidades. Partimos de algo existente – de uma estrutura arquitetônica necessária, comum e agressiva – que então se transformou em matéria plástica num sentido que extrapola o domínio isolado da arquitetura, do teatro e das artes plásticas. Prédios vizinhos aqui se tornam uma única e contínua estrutura de concreto aparente. Terrenos acidentados são vencidos através de uma malha sincopada de pilares e vigas, cintas e contraventamentos que, juntos, materializam fantasias arquitetônicas. São espaços piranesianos não idealizados por arquitetos; produtos de calculistas que jamais imaginaram o espaço que projetaram; surpresas espaciais que nunca acontecem no mundo previsível da arquitetura.

A peça possibilitou também uma inversão no quadro de privatização dos espaços da cidade. Em um país de cidades cada vez menos públicas e mais violentas, o projeto funcionou como um urbanismo efêmero que denuncia os desequilíbrios urbanos de uma maneira sem precedentes. Nesse sentido, Armatrux foi um fator crucial nesta investigação: ao contratar-nos para a escolha do local para uma nova peça, o grupo com tradição de teatro de rua estendeu seu espaço de atuação para a pesquisa de novos conceitos de rua. Um quadro estático foi assim colocado em movimento, já que espaços privados foram usados como palco e transformados em espaços públicos.

Simultaneamente à apresentação da peça, os prédios vizinhos apresentavam suas cenas cotidianas: famílias jantando, usando os banheiros e eventualmente assistindo à peça de suas janelas: cenas privadas que se tornaram públicas. Passarelas de madeira, escadas, rampas e plataformas possibilitaram o uso extensivo das palafitas em diversos níveis, enquanto uma arquibancada tubular transformou um lote vago em platéia das palafitas. A porção mais central do palco se aproximava das proporções de um palco italiano, mas a situação da platéia – um lote vago entre dois prédios de apartamentos laterais e as palafitas no fundo – certamente criou uma outra relação entre espectadores, palco e a cidade.

Prancha 1

Construída de acordo com um plano do século XIX, Belo Horizonte tem seu traçado como duas malhas sobrepostas em um sítio de topografia pouco acidentada. Hoje, novos bairros fora dos limites do plano original brotam por todos os lados. A cidade planejada foi construída sobre uma planície, mas o crescimento urbano acontece de todas as maneiras, sem qualquer relação com o relevo montanhoso da periferia da cidade: amnésia topográfica. Prédios e tecido urbano criam juntos estruturas vazias e ociosas, resultado de uma arquitetura estúpida sobre um desenho urbano pouco estudado. Edifícios de apartamentos são construídos sobre impressionantes palafitas de concreto armado com até quatro andares, em um continuum de vazios arquitetônicos que cria uma estranha paisagem suburbana.

Prancha 2

Em uma cidade densa e desordenada, não há chance para espaços públicos. O que se vê são ocupações informais de lacunas urbanas, curtos-circuitos que se reproduzem de acordo com a presença de usuários em potencial. Energias sociais aparecem em locais inesperados, resultado da falta de vazios para atividades cívicas.

Prancha 3

Inserindo-nos dentro desses vazios suspensos, propusemos a inserção de novos programas nessa amnésia topográfica, trazendo para perto do cotidiano esses espaços latentes. Neste projeto, espaços flexíveis proliferam-se e conectam-se aos outros, formando uma rede sob os edifícios capaz de prover áreas de playground, palcos de dança, jardins suspensos, hortas, áreas de lazer, ateliês de arte, etc.

Prancha 4

Recentemente, desenvolvemos um projeto para o Armatrux, grupo de teatro de rua. As palafitas transformaram-se em palco para a peça “Invento para Leonardo”, concebida para ser apresentada nos vazios. “Invento” lidava justamente com a pesquisa dos movimentos dos atores nas palafitas, todos eles explorando as particularidades de um espaço dramático. Uma primeira programação, um primeiro projeto que demonstra a condição de muitas outras possibilidades.

notas

1
O espetáculo Invento para Leonardo foi apresentado pelo grupo de teatro Armatrux em setembro de 2001 no bairro Buritis, em Belo Horizonte. Recentemente, o projeto arquitetônico do palco do espetáculo (leia texto abaixo) recebeu o primeiro prêmio no concurso “e-2: Defining the Urban Condition”, cujo resultado foi publicado em livro homônimo que conta com ensaios sobre o concurso por Bernard Tschumi, Domenique Perrault (arquiteto e membro do concurso), Michel Desvigne (paisagista e membro do júri), Frederic Migayrou (curador de arquitetura do Centro Cultural Georges Pompidou e membro do júri), entre outros. A exposição sobre o concurso esteve no Pavillion de l’Arsenal, em Paris, desde 16 de janeiro, e continuará até o final de fevereiro. O concurso “e-2”, de idéias, tratava de premiar uma proposta de intervenção na cidade em uma área “intersticial”, em algum vazio urbano que fosse abordado a partir de uma leitura da cidade. Foram feitas 1258 inscrições de 67 países, sendo que os 352 projetos entregues foram enviados via internet. Também receberam premiação arquitetos de Londres (Chee Hon Kong, segundo lugar) e Tóquio (Kano Tomoko, menção honrosa). Na crítica do júri do concurso, transparece o caráter muldisciplinar teatro-arquitetura como o ponto forte da proposta: “o projeto (de Belo Horizonte) é o único que utiliza o corpo como uma forma de ação, que aqui é utilizado na apropriação do espaço. A riqueza sem dúvida vem da diversidade do grupo, ou pelo menos de um enriquecimento da proposta por uma agenda que ampliou os horizontes da intervenção.” O livro foi publicado por groupe e2 e ACTAR, e traz detalhes sobre os vinte projetos finalistas.

2
Ficha do espetáculo: Direção: Andréa Caruso / Pesquisa de movimentos: Adriana Banana e Armatrux / Projeto arquitetônico: Louise Marie Ganz e Carlos M Teixeira.

sobre os autores

Carlos M. Teixeira é mestre em urbanismo (distinction) pela Architectural Association, Londres (1994). Foi bolsista do programa Virtuose do MEC na mesma AA. Tem escritório próprio desde 1995 e é professor de arquitetura da FUMEC. Publicou o livro "História do Vazio em Belo Horizonte", foi premiado em concursos nacionais e internacionais, e publica regularmente na imprensa geral e especializada

Louise Marie Ganz é mestranda pelo Institute d´Architecture de Génève, Suíça. É formada em arquitetura pela Escola de Arquitetura da UFMG e em Artes Plásticas pela Escola Guignard, BH. É professora de planejamento arquitetônico na Unileste-MG. Trabalha com produção de arte urbana e já teve seu trabalho exposto em diversas galerias

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