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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Nas cidades americanas, a reunião e a movimentação de personagens ambulantes, historicamente tem se constituído num elemento primordial na construção de um imaginário de rua, nem sempre coincidente com a perspectiva municipal

español
En las ciudades americanas, la reunión y movimiento de personajes ambulantes, historicamente se ha constituído como elemento principal en la construcción del imaginario de la calle, ni siempre coincidiendo con el poder gubernamental


how to quote

DIOS, Jorge Ramos de. O gato e o rato. Ambulantes urbanos e poder municipal. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 046.00, Vitruvius, mar. 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.046/598/pt>.

A tradição latino-americana

A história nos deixou inumeráveis constâncias sobre os modos de habitar dos setores populares. Durante séculos estes construíram seus assentamentos, idealizado suas estratégias de sobrevivência – pautadas por suas diversas culturas – quase sempre à margem das chamadas práticas e normas “oficiais”, combinando resistência e astúcia.

A América Latina tem uma grande tradição de expressões da cultura popular urbana, desde o artesanato e tecnologias apropriadas até a alimentação, rituais, festas, formas de intercâmbio, consumo e modos particulares de uso do espaço público. Nesses últimos aspectos, a rua, junto à praça do mercado, constitui o cenário importante da vida cotidiana com vigência contínua até o presente.

Contribuição essencial a essa importância são as inumeráveis atividades exclusivas do mundo da rua, como o trânsito de veículos, e de pedestres, o encontro social, as manifestações políticas, a oferta sexual, recolha de papelão, a vagabundagem e a venda ambulante, entre outras; todas elas, finalmente, apropriações do espaço público, previsíveis ou errôneas, reguladas ou incontroláveis, formais ou informais.

Nas cidades americanas, a reunião e a movimentação de provedores e mercadores tem sido, historicamente, um elemento primordial na construção de um imaginário de rua, não sempre coincidente com a perspectiva municipal.

Entre outros atores urbanos, consideramos os vendedores ambulantes como imprescindíveis para a valorização simbólica da cidade, como imprescindíveis em toda a representação urbana. E sabemos que as representações (junto com a economia, o planejamento e a arquitetura) também constróem a cidade. Os ambulantes – através da experiência coletiva – seriam marcas de leitura do patrimônio cultural. Nas palavras de Armando Silva, constituiriam “uma sobrecarga imaginária na cultura urbana, (…) parte de uma densa rede simbólica em permanente construção e expansão” (2).

Na América Latina, à tradição sustentada que mencionávamos somam-se, hoje em dia, no calor das políticas neo-liberais (com deterioração geral da economia, fechamentos de fábricas e desemprego), uma série de fatores de acelerada degradação e caos urbano que tornam essa apropriação complexa e acabam por modificar esse imaginário. Ao aumento explosivo de vendedores ambulantes somou-se ultimamente, em pontos estratégicos da cidade, uma horda de acrobatas, malabaristas, engolidores de fogo e limpadores de pára-brisas. Sob a crise e o levante popular do 19 e 20 de Dezembro de 2001, várias cidades argentinas viram suas ruas transitadas por um exército de recolhedores de papelão, popularmente chamados de “cartoneros”, constituído por milhares de famílias que todas as noites vêm da periferia em busca do pão do dia-a-dia.

Como sustentam Jorge Enrique Hardoy e David Satterthwaite, “a renda de dezenas de famílias que vivem em grandes, médios e pequenos centros urbanos é tão baixa e instável que se vêm obrigadas a realizar a maior parte de suas atividades fora da lei (…) Não são precisos estudos detalhados para apreciar seus problemas: homens, mulheres e crianças sobrevivem vendendo nas ruas, carregando sacolas (…) dedicando-se à prostituição, mendigando, roubando, ou simplesmente estando parados numa esquina” (3).

Aqui coloco o problema-chave: como preservar nossa tradição americana, atualizar e enriquecer esse imaginário, recuperando a dignidade humana, a salvo da exclusão, da marginalidade, da pobreza crescente e dos abusos do poder municipal.

A tradição urbana da venda ambulante e a sociabilidade no espaço público construiu-se a partir da herança indo-americana e as contribuições da cultura hispano-árabe. Desde os tempos pré-hispânicos, durante a Colônia e dos processos de Independência até nossos dias, o comércio de rua teve uma forte presença nas cidades latino-americanas; sempre vivo, quase ilegal ou à margem da legalidade, dos decretos de Cabildos e Legislaturas.

Sem dúvida foi o tianguis (4) (a feira dos povoados indígenas) a instituição mais significativa de venda a céu aberto, periódica e móvel, em nosso continente. Essa espetacular extensão de lonas, esteiras de piso, gente, cores, aromas, gritos e sabores já tinha assombrado Bernal Díaz del Castillo em sua visita ao mercado de Tlatelolco: “… e desde que chegamos à grande praça (…) como não havíamos visto tal coisa, ficamos admirados com a multidão de gente e mercadorias que nela havia…”. E após descobrir as coisas que se vendiam acrescentava: “… e depois de ver bem e considerar tudo o que tínhamos visto, voltamos a ver a grande praça e a multidão de gente que nela havia, uns comprando e outros vendendo, que, somente o rumor e zumbido das vozes e palavras que ali havia, se ouvia a mais de uma légua…” (5).

Acontecia tal e qual no Império Inca. Pedro de Cieza y de León, na sua Crônica do Peru, de meados do século XVI, com perplexidade e entusiasmo falava dos grandes tianguis do reino do Peru, e mesmo reconhecendo a importância do tão famoso de Cusco, dizia que “…nenhuma feira do mundo se iguala à de Potosí.” E via que “…numa clareira que fazia a praça desse lugar, numa parte dela havia uma fileira de cestos de coca (…); em outra, montes de mantas e camisetas ricas finas e tecidos; em outra estavam montes de milho e de batatas secas e em outras as suas comidas. Enfim, vendia-se muitas outras coisas que não cito; e durava desde a manhã até o escurecer da noite…” (6).

Através das feiras de Medina del Campo ou de Granada transmitiu-se até a América, por sua vez, a tradição moura do comércio ambulante, com seus cavaletes, guarda-sóis, toldos e tendas que coexistiram com as mantas, esteiras e cestos indígenas. De alguma forma, compartia-se assim a fruição das ruas da casbah de Tunis ou de Argel, com os vendedores de castanhas, túnicas e mercadorias baratas, com os que lêem o Corão ou o jornal às rodas de vizinhos analfabetos, com os bebedores de chá verde e os fumadores de narguile.

Que distância traçar entre deambular e caminhar hoje nas ruas densas, morenas, de Cartagena de Índias, com as vendedoras de papaya e ameixa, as de cocada de abacaxi, os vendedores de loteria, os cafés e o Portal dos Escrivãos que fazem a redação de cartas de amor e declarações de impostos?

Quão diferente pode ser-nos apresentada a praça-mercado de Djema´a el-Fna em Marrakech, tão maravilhosamente descrita por Juan Goytisolo e a de Chichicastenango na Guatemala?

O setor “informal”

O hoje chamado setor “informal”, então, não é nada além da modalidade atual da histórica importância popular; é a América profunda que se apropria de ruas e de praças para viver e sobreviver na cidade. E esses novos nômades urbanos o fazem como podem, com a precariedade, a necessidade, o desespero, a astúcia e o desafio que lhes impõe o desemprego e a economia “formal” do neo-liberalismo avassalador, hoje em evidente retirada. La Paz, Lima e México (7) são expressões extremas dessa nova “informalidade”, perseguida e intolerada pelas autoridades locais, com o argumento da invasão do espaço circulatório, a insalubridade, o roubo de energia elétrica, a evasão de impostos, a competência desleal e o fomento da falsificação e o contrabando.

Essas guerrilhas urbanas já são espetáculo corrente no centro de Buenos Aires, desde os portais da Plaza Once até os terminais ferroviários do Retiro ou os arredores de Liniers. Batalha reiteradamente perdida pelos inspetores municipais.

Tenhamos em conta que, num arbitrário controle de infrações, não se persegue com o mesmo afinco nem com “tolerância zero” as obstruções ou “prolongamento” do comércio “formal” sobre o espaço público, com seus cavaletes, cabideiros, mesas, enormes marquises e cartazes pendurados.

Mas a marginalidade não é o detonador excludente do ambulante, como já dissemos, há de se considerar a dimensão cultural americana e a “pregnância simbólica” (8) desse imaginário popular.

No caso de Buenos Aires, mesmo distante das culturas andinas ou meso-americanas, também encontramos derivações dessa tradição. No início do século XIX, índios pampas vendiam – ambulando- penas, ponchos e couros trançados; enquanto ao longo de todo o século, com notável presença de cidadãos negros, nossas ruas e praças se povoavam com o movimento de pamonheiros, vendedores de velas, azeitonas, vassouras, plumas, sisal, doces e – agora sim, com a hegemonia basca – leiteiros com suas vacas. Tanto durante a Colônia como nas primeiras décadas republicanas, representantes do governo municipal e ambulantes (gatos e ratos) fizeram as pazes diante da situação de abastecimento imperfeito e constituição incipiente de um comércio formal.

Com a mudança de cenários, pautas de consumo, composição social e étnica, o imaginário de rua foi variando através do tempo. Foi dessa forma como “os vendedores ambulantes negros desapareceram de Buenos Aires com a chegada da imigração massiva, que os deslocou de ruas e praças monopolizando a venda de rua” (9) a qual muitos transformaram em ocupação permanente.

Esses imigrantes, instalados fundamentalmente nas cidades, sem maior experiência de trabalhos urbanos, optaram pela autonomia.

Apesar de não conhecer dados oficiais sobre o número de vendedores ambulantes na cidade de Buenos Aires, contamos com uma estimativa de 9.000 em 1900 (10) e de 12.000 em 1901 em pesquisa para o jornal La Prensa (11). Apresenta-nos a divisão de vendedores, os quais, junto com a quantidade total, ajuda a imaginar aquele pequeno mundo de rua com seus ambulantes:

  Vendedores de hortifrutigranjeiros      
  de fruta, carne e verdura
8.000
   
  de massas e doces
1.300
   
  de pescado
320
   
  de aves
100
   
  Vendedores de artigos de banca e armazém
   
  querosene, velas, sabão, etc.
600
   
  rodas da fortuna
75
   
  engraxates
450
   
  amoladores
200
   
  diversos
955
   
  Total
(sem contar jogadores e vendedores de loteria)
12.000
   
         

Cabe destacar que para essa época, todos esses personagens, junto com varredores e outros trabalhadores de rua, eram quase exclusivamente italianos; que a pé com seus cestos, caixas, jaulas, bastões e carrinhos, com seus aparelhos e gritos como “tem aranja e manana!” ou “corbina fresco!”, em tom de barítono e mezzo soprano, resignificaram o imaginário de rua em permanente desafio ao ideário municipal.

Desde a instituição municipal portenha, precisamente em 1900, tentou-se suprimi-los “por razões de higiene”. Novo esforço vão do gato resistido com obstinação por esse poderoso grupo de ratos contraventores. Assim, a autonomia e a venda ambulante reafirmavam sua raiz e presença nos bairros. Mal desapareciam uns e surgiam outros, como o desfiador de lã, o “turco” comerciante (vendedor de tecidos), o “cuentenik” judeu (com sua venda a prazo) ou o grego doceiro.

A memória recente dá conta da bicicleta do afiador, dos carros a cavalo ou motorizados do verdureiro, o vendedor de gelo, o leiteiro de Santa Brígida, o padeiro da Panificación Argentina, o garrafeiro ou o vendedor de cestos e cadeiras. Hoje somente ficam, desses vendedores móveis – por conta de terceiros – o vendedor de refrigerante e os “deliveries” de comida chinesa, pizza e vídeo, mais tolerados que os catadores de papelão e os comerciantes com placas penduradas ao pescoço.

Duas estratégias

Diante dessa nova realidade, diante das “fugas” da ordem estabelecida, diante das “normas” próprias dos ambulantes para o uso da rua, colocam-se duas estratégias do poder municipal: a “limpeza social” e a reterritorialização.

A primeira derivou, em todos os casos, em enfrentamentos com a força pública ou em sucessivos desalojamentos e reconquistas da rua (um interminável jogo de gato e rato), com o conseguinte fracasso do controle fiscal.

A segunda foi praticada com diversos resultados.

Em Buenos Aires e Montevidéu temos os exemplos das feiras livres, que ao longo do século passado, desde 1918, ocuparam de forma rotativa algumas quadras dos bairros com suas fileiras de barracas desmontáveis. Por razões bastante débeis decidiu-se por sua localização “formal” com o sistema de feiras internas, retrocedendo-se notavelmente em vitalidade e no desfrutar da rua.

Na maioria dos casos as soluções arquitetônicas deixaram muito a desejar, com a honrosa exceção das “feiras modelo” projetadas pelo arquiteto Juan A. Casasco no marco do Planejamento e Desenho de Edifícios para Abastecimento e Controle Alimentício, impulsada em Buenos Aires pelo Intendente Jorge Sabaté (1952-1954). Essa série tipológica retomava o ambiente público incorporando ruas, pracetas, fontes e jogos infantis, recuperando a característica de condensador social. Os conjuntos se completavam com murais de Clorindo Testa e o atelier La Gotera (12). Também é certo que, quatro anos mais tarde, o próprio Casasco (como bom colaborador de Mies van der Rohe) queixava-se dos toldos, lonas e outros elementos “pitorescos” acrescentados pelos feirantes.

As experiências de reterritorialização, em várias cidades latino-americanas, têm sido muito conflitantes devido à rigida concepção de “ordem urbana” das autoridades competentes.

Dado que o território do comércio “informal” é a calçada ou a rua, seria prudente que dita reterritorialização (em postos móveis, semi-fixos ou fixos) não implique em expulsão mas que atenda a duas condições básicas: o uso racional pelos ambulantes de calçada e rua – se fosse necessário redesenhando esses espaços – e a garantia de lugares estratégicos de compra-venda (terminais urbanos, pontos de concentração pública, etc). Isso levaria a criar um terceiro espaço fronteiriço entre o “formal” e “informal” nas mesmas zonas de demanda escolhidas pelos ambulantes.

O imaginário municipal

Se analisarmos as disposições em vigência para Buenos Aires, nos surpreenderemos frente a um esquizofrênico imaginário urbano municipal, dando conta de “uma cidade que somente existe na mente de tecnocratas e burocratas”. (13)

Ditas Secretarias, depois de distinguir a venda ambulante por conta de terceiros da realizada por conta própria, resolvem liberar um máximo de 500 autorizações para os autônomos – cifra claramente superada pela realidade – que devem ocupar uma residência na cidade não inferior a 18 meses, devendo levar pendurada no peito a permissão concedida. Permissão que não contempla a venda de alimentos e bebidas, salvo os seguintes artigos: águas e refrigerantes sem álcool engarrafados; amendoim com casca, descascado, tostado ou cru; castanhas, amêndoa caramelizada, maçãs do amor, figos, algodão doce, pamonha e biju; guloseimas e cereais em copos, frutas secas, descascadas e tostadas. A venda de sorvetes, café, chá, mate e outras infusões, somente é permitida a elaboradores e distribuidores não autônomos, e nunca na rua (somente em lojas).

Entre outras utópicas disposições exige-se que, por ser ambulantes, deverão circular permanentemente com carrinhos, triciclos e bicicletas, lembrando que no micro e macro centro somente poderão fazê-lo com mochila, podendo ainda abranger as Costaneras e os dois parques: Lezama e 3 de Febrero.

As mesmas Secretarias imaginam uma “cidade de papel” onde os engraxates devem ser maiores de 45 anos (ou de 18 com incapacidade certificada pelo Hospital Manuel Roca). Nesse plano se confinam, por sua vez, os fotógrafos, coloristas e desenhistas ao espaço de praças e parques, permitindo-lhe tão somente aos vendedores de sair dali para percorrer as ruas. O pitoresco do imaginário municipal é realçado com os guardadores de veículos, todos obrigatoriamente deficientes físicos (em mais de 66% de suas funções vitais) e com certificado de boa conduta.

Essa paisagem orwelliana não ficaria perfeita sem os uniformes obrigatórios: avental azul ou cinza para os engraxates; macacão azul, verde claro ou rosa para os floristas; colete cinza para os fotógrafos e desenhistas; casaco ou blusa cinza com viseira da mesma cor, placa identificatória de metal esmaltado branco com números pretos, para os cuidadores de carros; e jaqueta marrom ou verde e boné, para o resto dos vendedores ambulantes.

Rebeldemente, invisíveis ao olho municipal, ambulam hoje milhares de “desempregados”, bolivianas com seus alhos e limões, vendedores de bebidas, todos sem permissão nem uniforme, à exceção dos camuflados veteranos da guerra das Malvinas.

Esqueçamos também, nessa cidade radiante, daquele alvoroço, tão americano e tão metropolitano – um mundo onde “mais é mais” – ao que aludiamos anteriormente, pois segundo decreto, “lhes está absolutamente proibido oferecer sua mercadoria, assim como também mostrar cartazes (...) tendendo a atrair sobre si a atenção dos transeuntes”.

O desenho ambulante

Saindo desse pesadelo proscriptivo, pensamos que o desenho industrial, a arquitetura e o pelnejamento, junto com políticas de justiça social, têm muito a contribuir ao campo da venda ambulante, na construção do imaginário moderno americano.

De uma forma ou de outra, o desenho sempre esteve presente nessa atividades: seja nas caravanas dos turcos, persas e bereberes; nos mercados e ruas dos casbah; nos tianguis indo-americanos; nos carregadores pré-cortesianos; nos mercados coloniais ou nas atuais feiras de artesanato.

Um exemplo notável dessas situações urbanas são os bouquinistes de Paris, que iniciando no século XVI como livreiros ambulantes, depois de um período de clandestinidade (14) conseguiram, desde 1606, a instalação semi-fixa de seus módulos (sem fixação ao chão) na via pública. Hoje, ao longo de três quilometros, existem 242 módulos dispostos sobre as calçadas de ambas as margens do Sena, expondo aproximadamente 300.000 obras na maior livraria a céu aberto que se conhece, assegurando uma animação permanente do cais. Uma verdadeira “marca de leitura” ao longo do rio urbano.

Em território americano e a nível popular, contamos com algumas pré-figurações espontâneas do terceiro espaço ao que nos referimos anteriormente; tal é o caso dos livreiros que rodeiam a Praça de Armas em Havana, os de Tristan Narvaja em Montevidéu ou, em Buenos Aires, os do Parque Los Andes em Chacarita, da Praça Dorrego em San Telmo e a Feria de los Pajaritos em Nueva Pompeya.

Em projetos urbanos, cabe citar algumas experiências interessantes de venda ambulante, que têm explorado alternativas desse terceiro espaço, respeitando os respectivos imaginários urbanos.

Em consonância com as feiras de Casasco, com tecnologias e códigos da modernidade, Pedro Ramírez Vázquez e Félix Candela projetaram, em 1956, o mercado de Coyoacán na cidade do México. Ali coexistem o mercado coberto com parabolóides hiperbólicos (como guarda-chuvas invertidos) e o tianguis adjacente ao ar livre, com longas lajes de concreto e lonas estendidas sobre uma grande esplanada seca.

Ainda no México, vale localizar o Programa de Ordenamento e Realocação do Comércio na Via Pública na cidade de Querétaro (1999). Trata-se de uma experiência reconhecida internacionalmente, com sua proposta de “corredores comerciais” abertos, sobre boulevards, calçadas e praças secas, complementados com carros móveis para o Centro Histórico. A tal efeito definiram-se quatro territórios combinados com os ambulantes:Centro Histórico, Zona do Hospital, Alameda e Periferia. O programa beneficiou 1.700 vendedores realocados em igual número de módulos e carrinhos de excelente desenho.

Um projeto similar de terceiro espaço, sem negar a rua nem a passagem, e de alta qualidade arquitetônica é o camelódromo do Calçadão dos Mascates na cidade brasileira de Recife, obra dos arquitetos Zeca Brandão e Ronaldo L’Amour (1993-94). O termo vem de camelôs, como se denomina aos vendedores ambulantes no Brasil.

O partido consistiu num espaço único de dupla cruz, de 800 metros de comprimento, com 1.600 módulos para igual quantidade de ambulantes, num setor urbano com circulação diária estimada em 150.000 pessoas. O camelódromo se interrompe ritmicamente em cada intersecção da quadrícula urbana. Tem uma estrutura em pórtico de perfis de aço, depósitos no segundo andar e caixas d’água, abrindo-se para a passagem central e as ruas laterais, em harmonia com as características da cidade histórica. Segundo Roberto Segre, “a imagem final resgata três elementos arquitetônicos: a) o pórtico, ancestral símbolo de articulação entre o templo e o espaço urbano; b) a torre, presente nas múltiplas igrejas do centro; c) os etéreos toldos, rememoração dos guarda-sóis indígenas e lonas do mercado árabe” (15).

Nos últimos anos, uma tomada de consciência das sequelas das autocracias neoliberais – como a indigência e o desemprego – impulsionaram vários ediles progressistas de nossas cidades a rever as normativas excludentes e persecutórias.

Um exemplo a destacar é o Plano de Modernização do Comércio Popular de Quito (2000-03), dirigido pelo arquiteto Diego Carrión: foram realocados 10.000 vendedores ambulantes do Centro Histórico em núcleos de locais comerciais refuncionalizados, outorgando-se os postos em propriedade, pagos em baixas parcelas mensais.

Em Buenos Aires, ao contrário, tivemos uma infeliz experiência de terceiro espaço: o “ambulantódromo” da zona ferroviária do Retiro, recentemente demolido, localizado sobre a calçada da Avenida Dr. Ramos Mejía, junto ao acesso do terminal de ônibus. Numa tentativa de ordem desenhou-se – à maneira de um corredor de pedestres obrigado e penoso – uma longa e estreita galeria metálica compacta, aberta somente em seus extremos e com fechamentos laterais cegos.

Além de seu deficiente desenho, ignorava o entorno imediato sem resgatar a qualidade da rua nem das calçadas tangentes. E se nos perguntarmos por suas evocações urbanas não encontramos correspondência nem com o mobiliário urbano moderno da cidade, nem com a tecnologia e estéticas ferroviárias, nem com as arquiteturas desse tipo de “setor soviético” da cidade (os edifícios oficiais do Puerto Nuevo). Talvez tenha se tratado de uma homenagem tardia, ao trem fantasma do desaparecido Parque Retiro.

A gestão do espaço público de Buenos Aires, com políticas corretas em áreas verdes, recreativas e culturais, mostrou-se impotente frente ao crescente aumento de catadores e vendedores ambulantes “informais”. A recente tentativa do Paseo del Retiro, uma feira de 1.000 postos, ausente de desenho, nessa espécie de Perspectiva Nevsky em que dávamos nesse “setor soviético” da cidade, também não parece ser uma solução aceitável. Funciona somente aos domingos numa área desolada, convocando os que passeiam no fim de semana, privando os ambulantes de seu trabalho diário e de seu público tradicional: as multidões que em horas de pico se concentram nos nós de conexão.

Enfim, estas reflexões têm o propósito de marcar a relevância do comércio ambulante desde a perspectiva dos imaginários urbanos.

Conseqüentemente, repensar o comércio em via pública, aceitando a presente situação sócio-econômica dos ambulantes urbanos (desempregados, "informais", novos pobres, migrantes), respeitando a tradição americana (com a singularidade portenha, pouco comparável às urbes andinas ou centro-americanas) e inventando desenhos, espaços e normativas conformes a esta realidade.

notas

1
Trabalho exposto no SAL X – X Seminário de Arquitetura Latino-americana, ocorrido em Montevidéu, Uruguai, de 17 a 20 de setembro de 2003. O tema, nesta oportunidade, foi "A cidade latino-americana", com 4 subtemas: 1. Gestão territorial-urbana: teoria e prática. 2. Transformações e permanências. 3. Patrimônio urbano. 4. Reflexões teóricas e discursos histórico-críticos. O primeiro Seminário de Arquitetura Latino-americana foi organizado espontaneamente na I Bienal de Arquitetura realizada em Buenos Aires em 1984 convocada pela Sociedade Central de Arquitetos da Argentina e o CAYC (Centro de Arte e Comunicação). O segundo SAL foi organizado pela revista Summa e se realizou em Buenos Aires em 1986. Tratava-se de criar um espaço para pensar e debater entre os que valorizavam os esforços da arquitetura latino-americana por tomar atitudes mais reflexivas, partindo da necessidade de uma análise crítica da produção de nosso continente em resposta à alienação hegemônica na região. A convocatória dos SAL é ampla, com a única restrição do verdadeiro interesse em nossa realidade ambiental. Os SAL se realizaram em Buenos Aires, Argentina (1984 e 1986) – Manizais, Colômbia (1987) – La Trinidade, Tlaxcala, México (1989) – Santiago de Chile, Chile (1991) – Caracas, Venezuela (1993) – São Carlos, Brasil (1995) – Lima, Peru (1999) – San Juan, Porto Rico (2001) – Montevidéu, Uruguai (2003). O Sal XI se realizará no México D.F., México (2005). Em cada SAL se entrega o Prêmio América nas categorias desenho e história / crítica / teoria. Até o momento foram ganhadores Luis Barragán (México), Marina Waisman (Argentina), Fernando Castillo (Chile), Víctor Pimentel (Peru), Eladio Dieste (Uruguai), Gabriel Guarda (Chile), Lucio Costa (Brasil), Ramón Gutiérrez (Argentina), Rogelio Salmona (Colômbia), Mariano Arana (Uruguai), Silvia Arango (Colômbia), Manuel Moreno (Chile) e Claudio Caveri (Argentina).

2
SILVA, Armando. Imaginários urbanos, Tercer Mundo Editores, Santafé de Bogotá, 1998.

3
HARDOY, Jorge Enrique; SATTERTHWAITE, David. La ciudad legal y la ciudad ilegal, Grupo Editor Latinoamericano, Buenos Aires, 1987.

4
Tianguis: do náhuatl, tianquiztli, praça ou mercado, e de tiamiqui, vender ou traficar.

5
DÍAZ DO CASTILLO, Bernal. Historia verdadera de la conquista de la Nueva España, Madri, 1985.

6
CIEZA E DE LEÓN, Pedro de. La crónica del Perú, Espasa-Calpe Argentina, Buenos Aires, 1945.

7
O Censo de 1999 consigna 100.000 vendedores ambulantes no Distrito Federal.

8
Termo usado por Ernst Cassirer.

9
PANETTIERI, José. " los 'cuenta propia'", em Historia popular argentina, tomo 3, Centro Editor de América Latina, Buenos Aires, 1982.

10
Caras e Caretas
, 13 out. 1900.

11
La Prensa, Buenos Aires, 23 set. 1901.

12
Entre outras obras de Casasco, cabe citar as " ferias modelo " de Constitución, Once, Belgrano, Liniers, Parque Patricios e Plaza Lavalle. Ver Nuestra Arquitectura, n. 351, fev. 1959, Buenos Aires, p. 17-50.

13
HARDOY, Jorge Enrique; SATTERTHWAITE, David. Op. cit.

14
Durante a segunda metade do século XVI, quando perambulavam com seus livros nas costas, foram perseguidos por atrapalhar a circulação, até que se fixou uma cota, obrigando-os à padronização, designando-lhes zonas de venda e obrigando-os a costurar sobre sua jaqueta uma placa de cobre identificatória, com um número.

15
Roberto Segre, "Mercaderes estáticos", en Enlace, n. 4, México, abr. 1995. Ver documentação completa em Projeto, n. 190, São Paulo, out. 1995, p. 54-59.

sobre o autor

Jorge Ramos de Dios, Mestre em Arquitetura, Diretor Adjunto do Instituto de Arte Americana e Pesquisas Estéticas "Mário J. Buschiazzo". Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo, Universidade de Buenos Aires. Professor de História da Arquitetura I, II e III na Universidade de Buenos Aires e de Mar del Plata, Argentina. Professor de Pós-graduação em História e Crítica da Arquitetura e o Urbanismo, FADU/UBA

Tradução de Flávio Coddou

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