Natureza e centralidade
Rio de Janeiro é a única metrópole no mundo cuja iconicidade não está referida a um símbolo arquitetônico: dois “morros” predominantes identificaram o skyline urbano: o Pan de Açúcar e o Corcovado. Sua história resume uma persistente relação de amor-ódio entre natureza e cidade. No século XVI, os franceses sob o comando do almirante Villegagnon, fundaram a France Antarctique em uma ilha da Bahia de Guanabara; logo, os portugueses, trasladaram para o Novo Mundo as tradições urbanas medievais. Assentados timidamente na entrada da bahia, aos pés do Pão de Açúcar; ocuparam mais tarde as alturas do morro do Castelo (1565), verdadeiro assentamento fundacional. Por fim, uma pequena quadra irregular surgiu no reduzido espaço plano – chamado várzea –, de aproximadamente um quilômetro quadrado, circundado por diversos morros. As estruturas simbólicas do poder foram dispersas em um tecido urbano travado, alheio às normativas das Leis das Índias que controlaram as cidades hispano-americanas.
Com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil (1808), a densa cidade colonial foi dilatada pela expansão no espaço suburbano – assumindo os códigos neoclássicos da missão francesa de Grandjean de Montigny –, em direção à zona Norte e ao interior da bahia. Contudo, as costas oceânicas e suas praias representavam o perigo dos ataques inimigos, enquanto o poder político e a aristocracia local se sentiam protegidos em suas luxuosas mansões dos novos bairros “terra adentro”. Aconteceu um fecundo diálogo com a natureza, “humanizada” pelos renques de palmeiras reais do Jardim Botânico e o parque tropical da Quinta de Boa Vista, residência do Imperador. Este, apaixonado com o agredido bosque da Floresta da Tijuca, promoveu seu reflorestamento e seu uso como espaço de recreação para os habitantes da capital carioca.
Proclamada a República no final do século XIX, a adoção do modelo haussmaniano entrou em conflito com a paisagem e a herança colonial. Entre a adoção da monumentalidade acadêmica pelo prefeito Pereira Passos (1903-1906) e o Plano Diretor de Donat Alfred Agache (1925-1930), o centro urbano foi palco de profundas transformações, que configuraram a imagem do Rio “moderno”. O traçado da Avenida Central se mostrou uma operação cenográfica – em contraposição à Avenida de Maio de Buenos Aires –, baseada no desenho das fachadas ao longo do novo eixo viário, que arrasou cerca de 400 edifícios coloniais. Iniciativa reiterada na alargada avenida Getúlio Vargas (1940), ocasionando a demolição de outras tantas construções históricas. Conseqüências radicais foram a conseqüência da desaparição de vários morros no centro, abrindo espaços livres para a implantação de lojas comerciais, escritórios e edifícios públicos. Entre 1920 e 1950, se apagou a memória histórica da cidade, modificando-se o perfil originário da área central: a terra dos “morros” do Senado, do Castelo – que continha as principais igrejas e conventos coloniais – e de Santo Antônio, ficou derramada sobre a bahia, surgindo ali o aeroporto de Santos Dumont e o Aterro de Flamengo. Implantados os traçados acadêmicos, as amplas avenidas, os edifícios governamentais ecléticos e as primeiras torres de escritórios, a capital assumiu assim a importância e a monumentalidade de acordo com a escala continental do Brasil.
A urbe hedonista de Zé Carioca
A revolução iniciada por Getúlio Vargas (1930) acabou com a República Velha e os epígonos do classicismo, acelerando-se a modernização e industrialização do país. Com o desenvolvimento da estrada de ferro e as primeiras fábricas implantadas na capital, a zona Norte se converteu no espaço proletário, que deslocou a burguesia para a costa da Zona Sul. Primeiro, nos bairros ao largo da bahia – Flamengo e Botafogo –, e finalmente em direção às praias oceânicas de mar aberto: Copacabana, Ipanema, Leblon, prolongando-se na segunda metade do século XX, em direção de São Conrado e da Barra de Tijuca, atual “Miami” carioca. No centro, as representações do Movimento Moderno – identificadas com os pilotis, os brise-soleil, e a planta livre do Ministério de Educação e Cultura (1936), de Lucio Costa, Niemeyer, Le Corbusier e sua equipe –, e do Internacional Style, terminaram com as edificações ecléticas, convertendo a avenida Rio Branco em um desfiladeiro de altas torres de aço e cristal. Até 1960, data em que o sistema administrativo da nação se mudou para Brasília, o centro era um redemoinho de funções, gentes e afetividades sociais, em uma mistura heterogênea, não só de edifícios, mas também de grupos humanos de extratos econômicos diferentes.
Mas a nova imagem do Rio de Janeiro moderno começou a se construir nos bairros da Zona Sul. Após profanar morros e colinas com túneis e viadutos que permitiram o rápido acesso desde o centro em automóvel, a acelerada construção de hotéis e edifícios de apartamentos em Copacabana, fez deste bairro o ícone da cidade. Não é casual que nos anos quarenta, os investidores da Flórida chegaram para conhecer este modelo de desenvolvimento, aplicado em Miami Beach. Por sua vez Disney, no filme “Os Três Cavaleiros”, fez Zé Carioca flutuar suavemente em cima de seu tapete mágico sobre seu conhecido skyline. O austero ritual do centro contrastou com o comportamento informal de um espaço urbano mais relacionado com o prazer e o ócio do que com a disciplina do trabalho. A natureza foi recuperada para a vida ao ar livre, em contato com a praia e o mar, cuja exaltação maior se deu no Aterro de Flamengo, desenhado por Burle Marx. O culto ao corpo se converteu em credo fundamental do beautiful people do Rio. A imagem da Cidade Maravilhosa alcançou seu clímax nos anos cinqüenta, identificada com o Carnaval, Carmem Miranda e Oscar Niemeyer circulando pela avenida costeira em um Cadillac cauda de pato.
A cidade “partida”: bairros e favelas
Com a proclamação da nova capital, o sonho se dissipou e à euforia carnavalesca se seguiu um anonimato sem esperança. Perdido o dinamismo das funções administrativas e o brilho dos rituais do poder central, associados às duas décadas de repressão da ditadura militar (1964-1984), o Rio de Janeiro entrou em uma crise de identidade – e também econômica e social –, da qual foi difícil se recuperar. Mas a proliferação dos assentamentos precários da população de baixa renda se constituiu no maior problema urbano ao longo do século XX, configurando segundo o escritor Zuenir Ventura, “a cidade partida”. Surgidas no final do século XIX, existe na atualidade 600 favelas com mais de um milhão de habitantes – num total de 5,5 milhões no município –, distribuídas por todas as áreas da cidade. Contrariamente aos esquemas tipológicos urbanos tradicionais, nos quais pobreza e riqueza possuem zoneamentos distintos; as favelas do Rio – algumas delas assentadas nos morros centrais – se implantaram próximas às áreas “nobres”: Dona Marta em Humaitá; Pavão-Pavãozinho em Copacabana; Vidigal em São Conrado; Rocinha na Gávea, etc. O acesso principal para o aeroporto internacional “Tom Jobim” cruza o denso e problemático Complexo da Maré.
Superadas definitivamente as teses sobre a erradicação das favelas, assumidas como um “câncer urbano” – tanto pelos políticos de direita como pelos governos militares –; os governos municipais da década dos anos noventa –, os prefeitos César Maia (1993-1996 e 2001-2004) e Luiz Paulo Conde (1997-2000) –, optaram por integrá-las ao sistema da cidade formal. Implementou-se o Programa Favela-Bairro dirigido pelo Secretário da Habitação, Sérgio Magalhães, com o objetivo de criar espaços públicos nas favelas, outorgando-lhes os atributos da urbanidade: infra-estruturas básicas de saneamento, luz, água potável, recolhimento de lixo e um sistema viário que elimina o isolamento dos assentamentos. O desenho de ambientes apropriados às funções sociais foi acompanhado pela construção de novas edificações sociais: centros de capacitação, jardins de infância, áreas desportivas e serviços comunitários. Ou seja, tentou-se superar a antítese entre “cidade formal e informal”; revalorizar esteticamente o subúrbio anônimo e eliminar o conceito de gueto segregado, tanto social como arquitetônico. Os projetos desenvolvidos em uma centena de favelas, foram elaborados por arquitetos cariocas de renome – Paulo Casé, irmãos Roberto – ou escritórios de profissionais jovens: Archi 5; Arquitraço; Fábrica Arquitetura, Planejamento Arquitetônico Ambiental, etc. O resultado foi uma experiência significativa, porque obrigou os projetistas a assimilar as lógicas espaciais e formais das estruturas urbanas preexistentes, adaptar-se aos complexos condicionantes topográficos e ecológicos, e identificar os significados culturais e simbólicos originários, para adequar as propostas aos sistemas de valores de cada comunidade. Estas intervenções, hipoteticamente, haviam facilitado a redução dos conflitos sociais, ao conseguir a articulação espacial entre as favelas e os bairros circundantes; mas a agressiva presença dos traficantes de drogas e sus incidência na dinâmica econômica da cidade, não permitiram atenuar as contradições existentes e a aguda violência urbana. O recente filme Cidade de Deus, de Fernando Meiroles, testemunha esta situação.
Uma urbanidade mediática e globalizada
Diferentemente de outras capitais latino-americanas – Buenos Aires e Montevidéu, por exemplo –, Rio de Janeiro nunca teve uma alta densidade de população morando no núcleo central, basicamente especializado nas funções comercial, política, administrativa, bancária e recreativa. Tampouco o turismo alcançou uma presença significativa: os principais hotéis se instalaram ao longo da bahia, do bairro da Glória em direção à costa atlântica. Ou seja, com a mudança da capital para Brasília, o centro perdeu vitalidade, acentuada pelo desenvolvimento da área residencial na distante Barra de Tijuca (a “Miami” carioca) – a partir do Plano Diretor realizado por Lúcio Costa nos anos sessenta –, que abriga na atualidade 170 mil habitantes de classe média alta. Ao integrar-se progressivamente neste território suburbano, shoppings, escritórios, escolas, centros universitários e atividades culturais – que absorvem a maior parte dos investimentos privados no setor imobiliário –, as recentes tentativas dos governos municipais em reavivar o centro não obtiveram êxito até o presente.
Desde os anos oitenta se levaram a cabo diversas iniciativas no centro histórico tradicional. A primeira foi o “Corredor Cultural”, que recuperou uma área de construções de valor patrimonial, implantando nelas cafés, restaurantes, antiquários, museus e instituições culturais de grande vitalidade: o Paço Imperial, a Casa França-Brasil e o Centro Cultural Banco do Brasil. A partir de 1993, Luiz Paulo Conde, Secretário de Urbanismo e posteriormente Prefeito (1997-2000), desenvolveu uma agressiva política de intervenção nas áreas centrais, através do Programa Rio-Cidade, que também abarcou 17 bairros urbanos. Se assumiram como paradigmas a experiência de Porto Madero em Buenos Aires e Barcelona Olímpica, sendo convidados a participar como assessores e projetistas Jordi Borja, Oriol Bohigas e Nuno Portas. As iniciativas concretas de desenho urbano – chamadas por César Maia de “acupuntura urbana” –, substituíram os genéricos esquemas abstratos de planificação ou de planos diretores. Estas se concentraram nos desativados armazéns da zona portuária e a faixa litorânea da área monumental, entre o aeroporto Santos Dumont e a Praça XV. Elaboraram-se alternativas para um conjunto polifuncional, onde são integradas sedes de empresas internacionais, luxuosos hotéis e residências, shoppings e novos centros culturais, revertendo a acelerada degradação social e ambiental da zona. Ainda que na atualidade os projetos estejam ainda no papel, o maior esforço econômico e político das autoridades municipais – mesmo considerando as duras críticas de profissionais locais e agentes comunitários –, se concentrou em colocar em prática a custosa e sofisticada proposta de uma sucursal do Museu Guggenheim no Pier Mauá, principal doca do porto, projetado por Jean Nouvel.
Em resumo, a cidade do Rio de Janeiro sempre foi a cidade “ícone” do Brasil, e segue conservando sua “aura” de capital cultural do país. O que explica os angustiosos esforços das autoridades para inseri-la no sistema de “cidades mundiais”, reativar sua precária economia e alcançar uma dimensão continental e universal, não só através de sua imagem difundida nos cartões postais. Mas esta ambição não pode assumir acriticamente receitas alheias, nem esquecer a realidade econômica e social vigente. A escassa identificação da elite carioca e dos investidores privados com as iniciativas de reativação do centro e com seus significados culturais e simbólicos, assim como os agudos conflitos sociais, distantes de uma iminente solução – que não seja a clássica repressão policial –; dificultam as perspectivas de um resgate dos valores perdidos da Cidade Maravilhosa. Afinal as cenografias espetaculares da cidade mediática se mostraram fugazes quando não contam com a participação ativa dos múltiplos segmentos da comunidade, na transformação do presente e na gestação do futuro.
bibliografia básica
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nota
NE – O presente trabalho faz parte da pesquisa em desenvolvimento no PROURB/FAU e patrocinada pelo CNPq., visando o estudo dos ícones urbanos do século XX na cidade de Rio de Janeiro. Artigo publicado originalmente na revista ZArquitectura, n. 2, Zaragoza, Colégio Oficial de Arquitetos de Aragón, 2003, p. 46-49. Republicação autorizada pelo editor.
sobre o autor
Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro