Em uma entrevista (não muito recente) o compositor Paulinho da Viola afirmou, falando sobre música, não gostar de viver no passado, mas que o passado sempre o acompanha. Na obra O declínio do homem público, de Richard Sennet, podemos ler: “O saudosismo é um sentimento perigoso, pois nos leva a uma posição de resignação em relação ao presente. O mito de hoje é de que os males do homem estão ligados à impessoalidade, alienação e frieza” (1). Pergunto-me se tais afirmações não teriam relação também com a produção da arquitetura. Acompanhando os projetos publicados em revistas ou os concorrentes nos últimos concursos de idéias e bienais pelo Brasil – refiro-me a um grupo de arquitetos –, recordo-me de outro nome importante de nossa música: Cazuza, que em uma de suas composições, O tempo não para, diz: “Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades...”.
O legado deixado por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, parece continuar a ser uma sentença condenando a nós arquitetos à obrigação de continuidade e à necessária vocação de sermos os eternos “arquitetos modernistas brasileiros”. É como se não fôssemos capazes de mais nada além do “apenas moderno” ou como se a busca de outros caminhos, experimentos e influências tornasse a todos nós hereges e mitigadores do passado. Mitificação e contradição. Qual destino estaria reservado a nossa arquitetura se estes incontestáveis epígonos não tivessem o ímpeto da ruptura? Certamente, não teríamos como referência o edifício do Ministério da Educação, no Rio de janeiro, como exemplo de nossa coragem e capacidade de sermos participativos na afirmação do léxico moderno e na evolução do pensamento através de nosso ofício. Ler a obra de Oscar Niemeyer, em especial a sua produção mais recente, com um olhar crítico – o que não significa, necessariamente, fazê-lo com conteúdo destrutivo ou antiético como os seus colaboradores e ex-colaboradores insistem em interpretar –, é o mesmo que pregar a inexistência de Alah bem no centro de Meca. Percebe-se, da mesma forma, que nestes mesmos concursos, publicações e bienais que nem todos se vêem como eternos vassalos. Com certeza, por entenderem que arquitetura deve estar, necessariamente, atrelada aos vários contextos e, por conseguinte, como simbologia, deve também criar novos conceitos para a estética na sua mutável relação com a ética e vice-versa. É inquestionável que devemos preservar as lições de nossos grandes mestres, mas sem que isso venha a nos transformar em "carros com os faróis para trás", como dizia o escritor Pedro Nava. Notoriamente falta-nos, neste momento, o exercício da reflexão sobre nossa participação como arquitetos na formação e transformação do pensamento.
O projeto para Sede da Reitoria da Universidade de Brasília (1972), de autoria dos arquitetos Paulo Zimbres, Vera Braun Galvão e Josué Macedo (2), é um grande exemplo de síntese de influências dos paradigmas técnicos e estéticos de uma época, mas que cria através deles um sintagma de absoluta originalidade e coerência – estão lá o brutalismo paulista, o pilotis e a clareza dos seus elementos formais. Torna-se pois, uma obra além do seu tempo, bastante atual e capaz de ainda nos transmitir importantes ensinamentos. Não estaria cometendo nenhum excesso em considerá-la uma obra-prima junto com tantas outras construídas em Brasília. O edifício é formado por dois volumes horizontais locados paralelamente e independentes. O auditório, as pérgulas, e a rampa que dá acessos aos pavimentos, dão unidade ao conjunto. Mas, quais são as lições deixadas por esta obra? A começar, por abandonar o princípio do edifício modernista hermético que o diferencia dos outros pelo campus. A separação dos volumes proporciona uma permeabilidade quase total. Transmite-se a sensação de tratar-se algo não finito capaz de expandir-se dentro de necessidades futuras – há a intenção dos autores em realizar adequações ao programa de necessidades original. A Ville Savoye também está lá representada através da rampa. Ela não é apenas a forma de acesso, mas dá ao edifício uma “escala urbana”, reforçando o seu diálogo com o entorno e dando continuidade aos vários caminhos feitos pelos passeios, e os outros feitos na grama pelos pés, como os imaginados pelo poeta Ferreira Gullar.
A ausência de uma “porta de entrada” é outra característica que nos chama a atenção em um primeiro momento. O partido adotado, que dá a permeabilidade ao conjunto, proporciona também um acesso não discriminador e democrático. Esta relação franca do edifício com entorno nos soa como uma utopia dentro de uma vida urbana cada vez mais enclausurada nos espaços privados dos Shoppings Centers, com seus argumentos consumistas e cheios de superficialidade. Como não contrapor esta obra aos chamados centros empresariais com suas recepções bem vigiadas por aparatos eletrônicos sofisticados, servindo como mais um signo das fragilidades e mazelas do sistema tupiniquim com seu tratamento igual das desigualdades?
O auditório e as pérgulas dão o sombreamento necessário para tornar o espaço intersticial um oásis e, através do microclima criado, remanso para os que por ali transitam. Estando ali a contemplá-lo, eles nos remete à visão “naturalista writgthiana” do edifício integrado à natureza a buscar o equilíbrio entre interior e exterior. “Pássaros utilizam sua vegetação como espaço de procriação” – com um certo orgulho me contou o arquiteto Paulo Zimbres em meio às explicações dadas sobre o partido adotado. Funde-se arquitetura com um pouco de poesia dentro de tanto racionalismo e sobriedade.
Há também o que lamentar. Refiro-me à falta de conservação do edifício, que potencializa a incapacidade crônica de nosso país em preservar a sua memória. Brasília ainda é uma cidade nova, mas com obras que merecem o mesmo respeito de outras centenárias de cidades históricas. Vivemos em um patrimônio histórico da humanidade o que, por si só, justifica qualquer atitude para preservá-lo de forma devida. É com a boa arquitetura que ensinamos como fazê-la, e ela deve estar para o arquiteto como o templo está para o fiel, que vez ou outra se sente obrigado a aparecer por lá para “pagar penitências e rezar um pai nosso”.
notas
1
SENNET, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, primeira impressão em português (tradução: Ligya Araújo Watanabe, título original: The Fall of Public Man).
2
O arquiteto Érico P. Weidle foi o responsável pela construção.
sobre o autor
Francisco Lauande é arquiteto. Formado pela Universidade de Brasília(1987). Tem curso de pós-graduação em Sistemas de Construção pela Universidade Metropolitana de Tóquio (1990-1991).Professor de Arquitetura e Urbanismo da UNIP-Brasília. Foi membro do Conselho Fiscal do IAB-DF (1996-1997) e Diretor Cultural do IAB-DF (2000-2001). Responsável pela organização da III Bienal de Arquitetura de Brasília (2001)