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Após a inauguração da São Paulo Railway, ligando Santos a Jundiaí, com a parada de Ribeirão Pires, surgiu o Núcleo Colonial, que seria origem da cidade que forneceu produtos agrícolas, tijolos, pedras, lenha e carvão para os pólos industriais próximos


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AURELIO, Claudio Rogerio; SCALABRINI, Marina Veiga. Patrimônio e cidade. "Sobrevivências" do passado em Ribeirão Pires. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 048.07, Vitruvius, maio 2004 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.048/587>.

Quando se pensa em patrimônio, imediatamente vem à tona alguns conceitos que se cristalizaram ao longo do tempo, embora como produção histórica reelaborados constantemente, ligados à idéia de monumentalidade, excepcionalidade, antiguidade, herança social de um passado comum a todos, eliminando assim todos os conflitos e contradições. Dessa forma, imbuído da idéia de neutralidade, passa a ser encarado como sobrevivência involuntária desse passado. Esse conceito de patrimônio, compartimentado em histórico, artístico e arqueológico, privilegiou excessivamente o monumento arquitetônico, por sua materialidade, portador visível desses atributos. Durante muito tempo esse conceito prevaleceu inclusive entre os órgãos de preservação.

Sobretudo nessas três últimas décadas, esse conceito se alarga, procurando abarcar as diversas representações culturais, não se limitando ao monumento arquitetônico que, agora, passa a ser visto não somente como testemunho e documento do passado, principalmente por seu aspecto físico, mas como portador de fazeres sociais, suporte da memória e inserido na dinâmica urbana e ambiental.

Dentro dessa concepção, de patrimônio cultural, o enfoque se desloca da nação para a sociedade, insere o ambiente natural nas preocupações preservacionistas e introduz a noção de patrimônio como memória, inscrevendo-o dessa forma no presente (1).

No entanto, mesmo dentro dessa nova ótica, uma questão crucial continua sendo a eleição desse patrimônio. Afinal, essas "sobrevivências" do passado sempre foram produto de uma escolha, legitimada no presente através da generalização social do patrimônio, supondo-o único e de uma mesma significação para todos, excluindo a multiplicidade de vivências e, conseqüentemente, sua preservação e atuação no presente. Converter em vontade coletiva a memória de um grupo social tem sido um eficiente instrumento de legitimação do poder, exigindo para isso sua consolidação através de diferentes suportes: monumentos, museus, objetos, bustos, personagens, datas comemorativas, nomes de ruas, praças, etc. Portanto, o que se preserva, em última instância, é a memória de um determinado grupo social.

Contudo, a decisão sobre o que preservar não deve significar a simples substituição do patrimônio de um grupo social por outro, mas dar voz à pluralidade de vivências, possibilitando assim, a reapropriação da memória de grande parcela da sociedade, alijada desse patrimônio. O seu reconhecimento por esses setores sociais implica o reconhecimento da ação desses grupos no passado e a apropriação de direitos no presente.

Ora, tratado dessa forma, o patrimônio deixa de ser a seleção pura e simples de alguns monumentos pontuais, destacados na paisagem e devidamente sacralizados, passando a fazer parte da própria dinâmica social. Como as relações sociais se dão em um determinado espaço, a cidade como um todo passa a ser o foco, não somente os chamados "centros históricos" ou as "cidades históricas", como se os outros bairros e demais cidades não o fossem. A cidade vista, não apenas nos seus aspectos materiais, mas da vida contida nela, que tece relações, recria espaços, simbologias e lhe dá forma.

Ter a cidade como referencial na adoção de políticas de preservação não implica seu engessamento, seu congelamento no tempo, mas nesse refazer-se constante das cidades, a garantia de manutenção das redes de sociabilidade, da história acumulada, da identificação dos indivíduos com seu espaço, criando a idéia de pertencimento, o que não significa a atenuação das diferenças e conflitos.

De certa forma, a descaracterização dos ambientes urbanos se dá menos em função da passagem do tempo que impõem novas dinâmicas, do que de alguns projetos urbanos que, desde o século XIX vem transfigurando as cidades em nome da eficiência, da racionalidade do espaço, enfim, em nome do capital, deslocando moradores, rompendo sociabilidades e laços de pertencimento. Por outro lado, também não podemos esquecer que essas modificações pelas quais as cidades passam ao longo do tempo, acrescentando-lhes as marcas de cada época, não são exatamente espontâneas, sobretudo quando o espaço urbano se transforma em mercadoria, como acontece nas sociedades capitalistas, e a especulação imobiliária dá a tônica do desenvolvimento urbano.

Esse é outro fator responsável pelos rompimentos e esvaziamento do sentido do patrimônio, que se transforma em produto de consumo na indústria turística, o que interfere inclusive na seleção desses, eleitos, por alguns poucos, pelo seu potencial econômico, mesmo que não haja nenhuma significação para a comunidade no qual está inserido. É o caso de locais fetichizados pela passagem de alguma celebridade, como por exemplo, casas que hospedaram algum presidente da República ou qualquer outra autoridade - ainda que por um dia ou algumas horas - ou residências de férias de algum escritor ou outro artista, ainda que não frequentassem a cidade ou cuja discreta presença só fosse "descoberta" décadas depois. Nesses casos, o local passa a ser alvo de visitas, devidamente estimuladas, e sem muito esforço logo serão acrescentadas histórias envolvendo essas personalidades perfeitamente integradas, agora, na vida da cidade que, em vida, sequer conheceram. Na falta de um passado conveniente e lucrativo, inventa-se um.

No entanto, essa mercantilização provoca rupturas também em patrimônios tombados, consagrados por sua importância histórica e arquitetônica, como o caso do Pelourinho, em Salvador. Desde que a elite foi abandonando o centro da cidade, os antigos sobrados foram sendo ocupados por populações de classes menos abastadas e muitos se transformaram em cortiços. Nos andares térreos estabeleceram-se, em geral, pequenos comerciantes. Quando da restauração do bairro, necessária evidentemente, o caminho escolhido foi, no entanto, a transformação dos antigos sobrados num cenário. Tal intervenção promoveu a valorização dos imóveis e a subida dos aluguéis, culminando com a conseqüente expulsão dos moradores, alguns ocupando o mesmo imóvel desde a década de 40, para a periferia de Salvador. No local, foram instalados restaurantes e lojinhas para turistas, muitos locais de residência permanecem vazios. A população que dava vida ao bairro, e que inclusive manteve em pé esses velhos edifícios ao longo do tempo, preservando o patrimônio, foi bruscamente afastada, criando-se um cenário ascético, digno de uma disneylândia, para ser visto, não vivenciado. Enfim, em ambos os casos produziu-se um não-lugar, criou-se um simulacro (2).

Diante dessas questões, como tratar o patrimônio cultural de Ribeirão Pires? Em primeiro lugar, não é possível falar em patrimônio sem o estudo da história da cidade, não só para apreender suas significações, como tentar evitar a criação de simulacros.

Apesar do território ocupado hoje pelo município de Ribeirão Pires aparecer como referência específica nos documentos desde o século XVIII, é somente a partir do último quartel do século XIX que a cidade de Ribeirão Pires vai se constituir como tal. Antes dessa época não há nenhum indício de formação urbana, apenas ocupação rural e esparsa. É sobretudo nesse período que a região conhecida hoje como Grande ABC se estrutura como subúrbio de São Paulo, fornecendo produtos agrícolas, tijolos, pedras, lenha, carvão, etc. para suprir as necessidades cada vez maiores da metrópole que cresce impulsionada pelo desenvolvimento da economia cafeeira.

É a partir da inauguração da São Paulo Railway, ligando Santos a Jundiaí, com o objetivo de escoar o café do interior paulista ao porto de Santos, em 1867, com a parada de Ribeirão Pires em 1885, e com a criação do Núcleo Colonial em 1887, juntamente com outros núcleos coloniais nos arredores de São Paulo, visando o povoamento e o abastecimento da metrópole, que se dá, de fato, a formação urbana de Ribeirão Pires.

A cidade permanece com características de subúrbio rural até a década de 50, quando as indústrias já haviam se espalhado por outras cidades da região, promovendo a reestruturação do espaço metropolitano, agora como subúrbio industrial. No entanto, ainda que as indústrias não tenham nessa época atingido a cidade, suas grandes áreas desocupadas permanecem como reserva de valor, prontas para se integrarem a essa função (3).

Podemos constatar, portanto, que estamos em uma cidade e em uma região historicamente voltada para o trabalho, mas onde não se dá a acumulação do capital. Nessas condições, certamente não teremos um patrimônio exuberante, de reconhecido valor arquitetônico e estético, dentro dos cânones tradicionais evidentemente, no entanto, efetivamente, temos os nossos patrimônios aparentemente banais, iguais a tantos outros em outros subúrbios, sem atrativos dignos de serem visitados, fotografados e transformados em cartão-postal, mas esse, afinal, é o atributo da mercadoria para consumo turístico. O patrimônio, ou patrimônios, como tal, têm importância para sua comunidade. Além disso, não se limitam apenas aos bens móveis e imóveis, por nem sempre serem bens tangíveis. Por exemplo, durante muito tempo as olarias foram uma das atividades econômicas principais de Ribeirão Pires, portanto, a presença dessa instalação pode ter muita significação, não apenas por essa existência física, como também o conhecimento da produção que o oleiro detém, a apropriação social dessa produção, a rede de relações estabelecidas, as representações simbólicas.

No entanto, tendo como parâmetro ideológico um passado glorioso, muitas vezes se tenta apagar ou, pelo menos, enobrecer essa origem trabalhadora, essa história considerada comum, que caracteriza a região do Grande ABC. Essa tentativa de enobrecimento procura ligar a região ao passado bandeirista, idealizado evidentemente, estabelecendo uma linha direta de continuidade entre a ocupação do território da borda do campo nos séculos XVI e XVII e os subúrbios de hoje, calcado num mito de origem que, de certa forma resgata a região desse passado considerado pouco nobre. Nessa linha, atribui-se 448 anos a Santo André, quando sabemos que a Vila de Santo André da Borda do Campo, de localização ignorada, foi extinta em 1560. O mesmo acontecendo com a capela do Pilar em Ribeirão Pires, que de ponto de referência e de significação para os moradores, vem se transformando em ícone, usado como "prova" de nosso passado colonial.

Pensar o patrimônio da cidade, região ou de qualquer parte, é sobretudo pensar o presente e pensar na imagem do passado que está sendo criado. É desocultar e apropriar do passado para atuar no presente. É pensar na relação dos indivíduos entre si e com o espaço que produzem, apreender essas relações e significações. É, enfim, pensar a cidade e as práticas de cidadania. Portanto, uma tarefa bastante árdua, muito mais complexa do que nos limitarmos apenas à elaboração de listas de bens a serem tombados.

Preservar está longe de ser uma atitude de saudosos frente ao "progresso" e à vida "moderna". Principalmente quando, diante da competitividade de mercados, imposta pela globalização, o afã de conseguir recursos econômicos transforma a própria cidade em mercadoria, o que no ideário neoliberal implica a gestão empresarial da cidade, garantindo eficiência administrativa capaz de atrair capital sem possibilidade de risco para o empreendedor (4). Sobretudo nestes tempos, em que a ideologia do progresso impõe a renovação das cidades como necessidade da modernidade (5), preservar é antes de tudo uma atitude política, uma forma de resistência à transformação do espaço em mercadoria, à homogeneização desses espaços, que tornam as cidades cada vez mais parecidas umas com as outras.

Portanto, preservar é uma forma de reapropriação da cidade (6), contrapondo às decisões técnicas e "empresariais" a efetiva participação política. Assim, quando se constroem pontes, viadutos, túneis, às vezes tendo como único objetivo encurtar uma distância de 3 ou 4 quilômetros para os automóveis, descaracterizando as cidades em nome de uma pseudo-modernidade e equivocadas previsões de futuro, a discussão sobre preservação não representa nenhum apelo nostálgico, mas uma decisão política sobre a cidade que se quer viver. Evidentemente que essa mercantilização e esse tratamento não se restringem ao espaço urbano, mas também ao chamado meio ambiente, ao patrimônio dito natural, que por sua vez é também produto da ação do homem, portanto, cultural. De um modo geral, tratado de forma estanque, idealizado, desvinculado de qualquer questão social. Questão que só vem à tona quando da expulsão de moradores de baixa renda que constroem suas casa em áreas de preservação ambiental. Preservar, nesse caso, é também infinitamente mais complexo do que apenas a delimitação de áreas de proteção, como se depreende da maioria das discussões, em geral despolitizadas em torno das questões ecológicas. Discussão para nós de extrema importância, quanto mais pelo fato de Ribeirão Pires ter 100% de seu território em área de proteção aos mananciais.

Nesse contexto globalizado, profundamente marcado pelo presentismo, que rompe vínculos com o passado, impedindo que se vislumbre novos projetos para o futuro, além daquele traçado pelo capital, discutir o patrimônio é uma possibilidade de se restabelecer o diálogo presente-passado-futuro. Tornar possível a reapropriação de memórias, o reconhecimento de existência histórica e conseqüente intervenção no presente, permitindo, assim, o rompimento de consensos e a explicitação dos conflitos, resgatando a cidade como espaço político, espaço da vida e das utopias, tão em desuso ultimamente. Democratizar essas discussões é muito mais do que simplesmente substituir a preservação de opulentas sedes de fazenda por singelas casinhas populares, é intervir nos destinos da cidade, é decidir sobre a cidade que queremos para viver e sobre a sociedade que queremos construir.

notas

1
CARLOS, Ana Fani Alessandri. Conferência: O não-lugar e a fragmentação da memória. VI Congresso de História da Região do Grande ABC. Ribeirão Pires, agosto de 2000.

2
CARLOS, Ana Fani Alessandri. Op. cit.

3
KUVASNEY, Eliane. Desmebramentos na gênese da metrópole paulistana. SP, 1996. Dissertação (Mestrado em Geografia), FFLCH-USP.

4
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Patrimônio Ambiental Urbano: do lugar comum ao lugar de todos. In: CJ Arquitetura, 1978, n. 19.

5
RODRIGUES, Marly. Patrimônio, idéia que nem sempre é prática. In: A Construção da Cidade. Brasília, Dep. de Patrimônio Histórico e Artístico do Distrito Federal. 1998. p. 82-95.

6
VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria. In: ARANTES, Otília et al. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000. p. 75-103.

sobre os autores

Cláudio Rogerio Aurelio é arquiteto e urbanista formado pela Universidade Mackenzie. Integrou o Centro de Apoio Técnico ao Patrimônio da Prefeitura Municipal de 1998 a 2003.

Marina Veiga Scalabrini é formada em História pela USP. É Membro do Centro de Apoio Técnico ao Patrimônio da Prefeitura Municipal e integrante do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural e Natural de Ribeirão Pires.

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