A casa La Ricarda (1949-63) de Antonio Bonet está em processo de restauração desde 1997. Quando recebemos a encomenda deste trabalho, estávamos nós, os autores do projeto, há vários anos pesquisando a obra de Antonio Bonet (2), em particular aquelas edificações nas quais o autor havia utilizado soluções com abóbadas (em especial as casas em Martínez, na Argentina, ou a Casa Berlingieri no Uruguai, construídas na década de quarenta), o que a priori nos permitia melhor avaliar a busca de soluções. Sem dúvida, o alto grau de articulação entre experiência formal-espacial e inovação técnica que distingue esta obra condicionou notavelmente os passos de sua restauração, obrigando-nos a um grande aprofundamento.
O primeiro passo foi a elaboração de um relatório com o diagnóstico sobre o estado das abóbadas da cobertura, que foi seguido de um projeto de restauração das abóbadas, cujo estado causava uma preocupação maior, e mais tarde, pelo projeto de restauração das esquadrias, instalações e estrutura metálica.
Durante o projeto de restauração das abóbadas foram levantados os desenhos necessários para o conhecimento da geometria das mesmas e dos detalhes de seu sistema construtivo, e para estabelecer as bases dos estudos de campo, a análise e a proposta de restauração. O sistema construtivo da casa incorporava uma série de elementos: sapatas de concreto armado, estrutura de suporte metálico, vigas de concreto armado, abóbada estrutural de concreto armado atirantada e aliviada com um "enchimento intersticial" de ladrilhos ocos de 9 cm de espessura, câmara de ar e ventilações, isolamento térmico, abóbada de cobertura sobre divisórias, isolamento hídrico, revestimentos, rebocos, gessos, etc.
Frente a esta complexa solução, a dificuldade maior consistia em determinar e hierarquizar os problemas a serem solucionados a partir das patologias visíveis que prejudicavam a imagem da casa: desprendimento de estuque, fissuramento das peças cerâmicas nas coberturas, condensação nos interiores, oxidações e esfoliações na estrutura metálica, desgaste e envelhecimento de vernizes e pinturas.
A pesquisa deixou claro que, além da degradação e envelhecimento natural imputável ao passar do tempo, existiam alguns problemas derivados de erros de execução de alguns detalhes projetados por Bonet e até mesmo alguma limitação projetual na solução de alguns pontos. Cabe assinalar que durante a realização da obra Bonet morava em Buenos Aires e, mesmo fazendo visitas periódicas à obra que acompanhava com uma documentação muito completa, o controle diário ficava em mãos de seu arquiteto de contato, o Sr. Comas, do construtor, o Sr. Bofill, e do proprietário da casa, Sr. Ricardo Gomis, que poderiam ter alterado alguns detalhes.
As inspeções realizadas nos permitiram comprovar como os desprendimentos do estuque e as fissuras paralelas à superfície da cobertura derivadas da dilatação das abóbadas haviam se agravado por falta de juntas aonde essas dilatações pudessem ser absorvidas ou dissimuladas, e também como as condensações interiores derivadas de uma ventilação insuficiente da câmara de ar e das pontos de possível condensação na zona das calhas e canaletas se complicavam por estarem os tubos de ventilação obstruídos e a lã de vidro isolante deslocada para as partes mais baixas do interior da abóbada.
O objetivo do projeto se centrou em restabelecer o funcionamento dos isolamentos térmico e hídrico, e na reparação das corrosões derivadas da condensação sobre a armadura da abóbada estrutural, menos visíveis mas mais preocupantes do ponto de vista da estabilidade e da sobrevivência da abóbada, portanto, de toda a casa. Isso implicou em um processo de desmontagem e reconstrução da abóbada exterior (não estrutural), a partir de uma premissa baseada na manutenção do aspecto exterior definido pelas características construtivas originais. Este processo foi dificultado pela desaparição de alguns materiais do mercado da construção dos anos sessenta, como era o caso das peças de grés (3) de 12 x 12 da Loja Cucurny – hoje desaparecida – que revestiam as abóbadas, o que nos obrigou à fabricação de algumas peças iguais àquelas, tarefa que ficou sob responsabilidade do ateliê de Antoni Cumella.
Foram analisadas três pequenas zonas das abóbadas para determinar a cor, a tonalidade e o brilho, e foi realizada uma série de experiências que permitiu definir as qualidades das peças definitivas. No projeto foram estabelecidos os detalhes de ajustes relevantes entre peças, e se determinaram as juntas de dilatação entre a soleira da base e seu perímetro, entre distintos painéis de grés e entre os planos de grés e o reboco definitivo, para evitar fissuras futuras, uma das patologias mais presentes e previsíveis. A obra de restauração das abóbadas se desenvolveu entre junho 1999 e junho 2000.
Esta premissa de "mínima intervenção aparente" se manteve no projeto de restauração das esquadrias, das instalações e da estrutura metálica. Para organizar o trabalho, as esquadrias de La Ricarda foram agrupadas segundo seus materiais componentes: ferro, madeira (pino melis e olma), alumínio e latão sulfurizado.
O estudo se iniciou com um levantamento exaustivo na escala 1:1 de cada um dos vãos, e foi essa centena de detalhes que nos permitiu entender a forma, funcionamento, composição material, estado de conservação e origens da deterioração. Esta se devia fundamentalmente a uma série de peças de ferro – colocadas no interior das molduras com o objetivo de reforçá-los mecanicamente – que haviam se oxidado, aumentando seu tamanho e desprendendo a chapa de latão sulfurizado.
Podemos encontrar esquadrias de latão em obras alemãs, suíças ou americanas do Movimento Moderno (os armazéns Petersdorf de Mendelsohn em Wroclaw, ou a casa Tugendhat e o Edifício Seagram de Mies), mas na Espanha era uma técnica muito pouco comum, mesmo nas construções de qualidade na época; e inclusive continua sendo até hoje, o que significa que a restauração é tão complexa como a própria construção original. Em consonância com outras decisões, o projeto afastou a opção de uma reconstrução e menos ainda de "melhorias" que implicassem em mudanças de material, de corte ou de aparência, entendendo-se que a restauração deveria ser feita contando com o maior número de peças originais e que as novas peças a ser incorporadas deveria respeitar a geometria das originais.
Em março deste ano foi restaurado a primeira esquadria deste tipo, o que nos serviu para acabar de sistematizar o trabalho a seguir. Assim, foram restauradas as esquadrias de madeira (lâminas de proteção solar no salão e no pavilhão independente e fechamentos dos dormitórios) mediante um processo de descascamento, reintegração de partes faltantes e envernizamento. Nestes dias está a ponto de se iniciar a restauração da estrutura metálica. Pouco a pouco, a casa recupera a aura de seus melhores dias e o espírito de seus construtores, e sua excelente arquitetura continua deslumbrando aos cada vez mais freqüentes visitantes.
notas
1
Artigo publicado originalmente na revista AT – Arquitectes de Tarragona, do Colégio de Arquitetos de Tarragona, julho 2003.
2
Ver dos autores: 1. ÁLVAREZ, Fernando; ROIG, Jordi; PICH-AGUILERA. La Ricarda. Antoni Bonet. Barcelona, Colegio de Arquitectos de Cataluña / Ministerio de Fomento, 1996. 2. ÁLVAREZ, Fernando; ROIG, Jordi. Bonet Castellana. Barcelona, Santa & Cole-Edicions UPC, 1999; 3. Antonio Bonet 1913-1989. Barcelona, Colegio de arquitectos de Catalunya / Ministerio de Fomento, 1996; 4. Bonet y el Río de la Plata. Barcelona, Galeria CRC, 1987; 5. "Bonet, 1938-48". En Quaderns, nº 195. Barcelona, Colegio de Arquitectos de Cataluña, 1995.
3
Grés é uma espécie de argila misturada com areia fina para fabrico de objetos que, depois de cozidos a temperaturas elevadas, são resistentes, impermeáveis e refratários.
sobre os autores
Fernando Alvarez Prozorovich é arquiteto (Universidade Nacional de La Plata, Argentina, 1978) e doutor arquiteto pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, Universidade Politécnica da Catalunha (Espanha, 1991). Desde 1987, é professor de História da Arte e da Arquitetura, de Teoria da Restauração na ETSAB, e do Programa de Doutorado do Departamento de Composição Arquitetônica. Tem orientado teses de doutorado sobre arquitetura moderna latinoamericana. Atualmente participa de várias campanhas para a preservação do legado de Antonio Bonet e colabora com Jordi Roig na restauração de La Ricarda
Jordi Roig Navarro é arquiteto (ETSAB, 1987). Nascido en Barcelona em 1960. Professor de Projetos na ETSAB desde 1990. Pesquisa a obra Antonio Bonet em colaboração com Fernando Alvarez, organizando exposições (Galeria CRC, 1987 e Colégio de Arquitetos da Catalunha, 1996 – esta última apresentada no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Bolívia), editando catálogos e artigos sobre Antonio Bonet. Prêmio Hispalyt 1996, vários prêmios sobre arquitetura escolar e de habitação para o Governo da Catalunha, prêmio da Bienal de Arquitetura Espanhola de 1997, prêmio (com Fernando Alvarez) Terceira Bienal Ibero-americana de Arquitetura e Engenharia Civil de 1999 (melhor publicação com “Bonet Castellana”, Barcelona, 1999)