No final do ano de 1983, chegou ao conhecimento do CONDEPHAAT, que a assim chamada Casa Modernista seria demolida para a realização de um empreendimento imobiliário. Ironicamente o exemplar pioneiro da vanguarda arquitetônica brasileira seria substituído por um conjunto de edifícios denominado Palais Versailles.
Um stand de vendas tinha sido instalado e as demolições estavam para se iniciar, quando o Presidente do CONDEPHAAT, Antônio Augusto Arantes, decidiu, ad referendum do conselho, abrir processo de tombamento, de modo a interromper e impedir qualquer iniciativa que viesse a destruir o edifício.
Àquela altura a casa se encontrava em bom estado de conservação, não tendo sido ainda inteiramente desocupada, como testemunhava a presença de roupas nos armários e da documentação da atividade do arquiteto Gregori Warchavchik, seu construtor.
Embora tais providências tenham se mostrado eficazes em impedir a destruição do edifício, o proprietário, sentindo-se lesado em seus interesses, não hesitou em tomar a iniciativa de processar o Estado de São Paulo.
A iniciativa do CONDEPHAAT não se deu isoladamente e, além da boa receptividade alcançada na imprensa, veio de encontro ao anseio da população do bairro, que logo se mobilizou em apoio à preservação não só do edifício como passou, a seguir, a defender a preservação de toda a área verde contida no imóvel.
Um pouco adiante, em junho do mesmo ano, foi proposta a proteção do bem cultural pelo instituto da Z8-200 (Zona Especial de Preservação), por iniciativa do então Presidente da Câmara Marcos Mendonça, apoiado pelo prefeito Mário Covas. A medida servia tanto para reconhecer a importância do bem cultural como vinha de encontro aos anseios dos moradores do bairro. Na ocasião, Marcos Mendonça declarou: “o que se pretende é que, mais tarde, os moradores possam visitar a casa, tendo acesso aos seus jardins, podendo usufruir das instalações do parque” (2).
Em setembro do mesmo ano o estudo de tombamento do CONDEPHAAT já se encontrava concluído, tendo sido relatado por Antonio Augusto Arantes, Presidente do Conselho, que propôs o tombamento não apenas do edifício e jardim contíguo, mas de toda a área do imóvel, consagrando, dessa forma, tanto o valor histórico e artístico da obra, como o seu valor ambiental. Aliás, parece ser esta última característica a que se destaca, uma vez que o relator ressalvou a condição de exemplar de transição do bem ao caracteriza-lo como um “protótipo de bricoleur onde se dá forma a novas idéias com velhos materiais e onde se chega a novas configurações com os velhos fragmentos” (3).
O Colegiado do CONDEPHAAT, assim como seu presidente, não ignoravam o risco que envolvia a decisão de tombamento integral do imóvel, a qual poderia caracterizar a indisponibilidade econômica do bem, o que poderia resultar a obrigação do Estado em indenizar o proprietário. À época não deixou de ser cogitada uma solução negociada que conciliasse a preservação da casa e do jardim contíguo à realização do empreendimento imobiliário no restante do terreno.
As medidas de proteção se ampliaram também no âmbito federal, por iniciativa de Eduardo Kneese de Mello. E foi a condição de exemplar de transição que levou ao IPHAN a propor o tombamento não apenas da Casa da Rua Santa Cruz, mas também de dois outros exemplares emblemáticos da obra de Warchavchik, a Casa da Rua Bahia e a Casa da Rua Itápolis. Atuando sem a premência do risco de demolição, o IPHAN pode contemplar uma amostragem mais ampla e coerente do papel pioneiro de Warchavchik na introdução da Arquitetura Moderna no Brasil.
Verifica-se pois que o bem cultural mereceu o reconhecimento das três esferas do poder público em relação à sua preservação. Não obstante, dado o tempo transcorrido, não parece que os objetivos de sua preservação tenham sido atingidos. E as causas são várias.
Durante o transcurso de todo o processo judicial, que se estendeu por mais de dez anos, nunca foi cobrada, por exemplo, a responsabilidade de conservação do edifício e do jardim por parte do proprietário. Considerando-se que o objeto da iniciativa de proteção do Estado era a preservação do bem por seu valor cultural, nada mais legítimo que exigir do proprietário a sua conservação, desde o início da lide. Em caso de omissão, o Estado poderia atuar legitimamente na sua manutenção, deduzindo posteriormente suas despesas, caso fosse condenado, dos custos da indenização. Não houve, no entanto, nenhuma atenção do Poder Público estadual sobre este aspecto, o que revela considerável grau de deficiência do executivo na defesa dos interesses da sociedade.
Mas, pior que isso, no curso deste processo, entre 1989 e 1994, o CONDEPHAAT e a Secretaria da Cultura concordaram com a cessão em comodato do imóvel, de seu proprietário para a Associação Parque Modernista. Tal cessão, não só desobrigou o proprietário de suas responsabilidades de conservação do edifício, como resultou em considerável agravamento de suas condições.
Não se tratou apenas da dificuldade daquela associação em arcar com os altos custos dos impostos municipais, mas principalmente da incapacidade de impedir que o imóvel fosse por quatro vezes invadido por vândalos, o que destruiu boa parte de seus componentes originais (4). Verifica-se, pois, que o propósito de atuar em favor dos anseios e expectativas das comunidades representadas por associações da sociedade civil nem sempre alcançam seus objetivos.
Em 1994, o Estado de São Paulo foi condenado a indenizar o proprietário, tendo obtido como única contrapartida, a transferência do imóvel para o patrimônio estadual. Desde então, transcorreram mais de 10 anos sem que o poder público tenha assumido a responsabilidade que lhe cabe.
A falta de atenção em relação a este bem cultural é alarmante. Há cerca de três anos foi alocada uma verba para serviços de emergência, cuja execução seria levada a efeito sem que houvesse um projeto de restauração. Graças a inteveniência do Instituto de Arquitetos do Brasil e ao compromisso então assumido pelo Presidente do CONDEPHAAT, José Roberto Melhem, o problema foi contornado, tendo sido iniciadas obras preliminares de conservação. Tais obras, porém, limitaram-se aos serviços iniciais, e não tiveram continuidade.
A responsabilidade do Poder Público, porém, não se limita ao Executivo. O Ministério Público tem também um importante papel na defesa da preservação do patrimônio cultural. Contudo, a experiência tem demonstrado que este órgão está longe de cumprir sua função. Ao invés de atuar de acordo com a sua função prescípua, como fiscal da lei, o MP vem se sobrepondo à competência dos órgãos de preservação.
Para se ter uma idéia dos desajustes que vêm ocorrendo, basta mencionar que os requisitos a serem atendidos pelo projeto de restauração da Casa da Rua Santa Cruz foram estabelecidos em reunião no gabinete do promotor, na qual foi assinado um documento pelos representantes dos órgãos de preservação, estabelecendo qual a orientação o arquiteto autor do projeto deveria seguir. É a completa inversão de valores. Disso resulta a transferência da esfera do trabalho de investigação e pesquisa e da competência profissional para o âmbito das decisões de ordem jurídica.
Uma tal condição só pode alarmar aqueles que de algum modo se propõem a discutir o delicado problema da preservação da Casa Modernista. Um edifício consagrado como obra pioneira quando de sua realização, mas reformado pouco mais de seis anos após sua construção, coloca complexas questões em termos de preservação, que certamente não podem ficar afetas apenas ao âmbito da apreciação técnica dos órgãos de preservação, nem muito menos mediados pelo Ministério Público.
Por outro lado, dado o processo de arruinamento sofrido pelo edifício, caberia a esta altura perguntar o que resta íntegro e o que se pretende preservar. Boa parte dos bens integrados está degradada ou foi irremediavelmente perdida. Tais aspectos, no entanto, não parecem ter preocupado muito os técnicos encarregados de definir os parâmetros para a restauração do edifício, uma vez que se estabeleceu tão somente a configuração da reforma de 1934, como diretriz a ser seguida.
Os problemas decorrentes da existência de dois níveis de forros distintos, as prospecções relativas ao tratamento cromático, a constatação de que as paredes internas da reforma executadas em estuque e, finalmente, a identificação de pintura figurativa em um dos quartos dos filhos certamente impõem a necessidade de uma reflexão mais profunda do que decisões de gabinete rígidas e unilaterais.
Recentemente, ao que tudo indica para dissimular a completa desatenção em relação ao caso, a Secretaria da Cultura promoveu a limpeza dos jardins e abriu a área ao acesso público. Novamente, trata-se de uma iniciativa que se realiza de forma episódica, sem critério definido e, o que é mais grave, sem nenhuma consideração aos destinos a serem dados ao jardim modernista de Mina Warchavchik. Este, aliás, não mereceu nenhuma atenção, nem sequer sob a forma de estudos dos órgãos encarregados de sua preservação.
Até hoje, não temos pesquisas ou levantamentos capazes de determinar aquilo supostamente corresponde à sua concepção original. O jardim continua sendo tratado como área verde indiferenciada, massa de vegetação a ser preservada em seus aspectos gerais, sem a menor consideração sobre o valor paisagístico da assim chamada primeira obra de paisagismo modernista do Brasil.
Um jardim cultivado, como se sabe, só se preserva se for continuamente tratado. Para tanto, é preciso conhecê-lo e, no presente caso a única informação disponível é um levantamento fito-botânico que registra as espécies existentes em dado momento, sem ter sido feita uma avaliação qualitativa capaz de distinguir aquilo que possa constituir o jardim projetado. A única documentação disponível é aquela que pode ser encontrada nos registros fotográficos, registros estes ainda pouco estudados.
Finalmente, não há uso ou destinação previstos para o edifício. A condição fundamental para a preservação de qualquer bem arquitetônico, indispensável para a realização de um projeto de restauração, nunca foi tratada pela Secretarial da Cultura. Certamente, não foi por falta de sugestões e propostas.
Em 1991, quando já se afigurava inevitável a transferencia do imóvel para o Estado de São Paulo, o IPHAN, preocupado com a necessidade de medidas urgentes para a recuperação do imóvel, sugeriu, com o apoio da FIESP, a criação de um Centro de Apoio à Criação Industrial, proposta não acolhida.
Mais tarde, em 1998, a Associação de Ensino de Arquitetura e Urbanismo propôs a utilização do imóvel para abrigar uma escola de arquitetura, a ser por ela implantada.
Mais recentemente, o IPHAN voltaria a propor à Secretária da Cultura, em troca de sua restauração do bem cultural, a sua cessão para nele instalar a sede de sua Superintendência Regional. Tais iniciativas, porém, não foram aceitas. O edifício continua sem proposta de utilização.
Da mesma forma, apesar da vultuosa a indenização paga pelo Estado de São Paulo, não há previsão no orçamento da Secretaria da Cultura para a restauração do bem, circunstância que tem ameaçado a integridade do objeto que deu origem a toda a ação do poder público.
Eis, pois, o lamentável estado em que se encontra a Casa Modernista, transcorridos mais de 20 anos de seu tombamento (5).
notas
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1
O presente artigo é texto de comunicação do I Seminário DOCOMOMO de São Paulo, Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, São Paulo, 22 a 25 de setembro de 2004.
2
Jornal da Tarde, 7 jul. 1984.
3
Proc. CONDEPHAAT nº 22831/83, p. 480.
4
Cópia da carta do 1º Tenente Eduardo Agulha de Carvalho, 6 abr. 1994, pasta da 9ª SR IPHAN.
5
NE – Do mesmo autor, ver os seguintes artigos: 1. CARRILHO, Marcos José. "Restauração de obras modernas e a Casa da Rua Santa Cruz de Gregori Warchavchik". Arquitextos, Texto Especial nº 030. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2000 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp030.asp>; 2. CARRILHO, Marcos José. "A restauração da Casa da rua Santa Cruz". Minha Cidade, nº 009. São Paulo, Portal Vitruvius, dez. 2000 <www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc009/mc009.asp>.
sobre o autor
Marcos José Carrilho é arquiteto (Universidade Federal do Paraná, 1978), doutor em História da Arquitetura pela FAUUSP, Visiting Scholar na Graduate School of Architecture, Planning and Preservation, Columbia University (Nova York, 1995), professor das disciplinas de Projeto I e Técnicas Retrospectivas da FAU-Mackenzie e arquiteto do IPHAN - 9ºSR - São Paulo.