Affonso Eduardo Reidy foi um apaixonado. Um dos principais protagonistas da arquitetura moderna brasileira vislumbrava o seu trabalho como um casamento entre as possibilidades de uma nova arquitetura e a manutenção de valores culturais e naturais pré-existentes. Através dos anos, a conciliação entre estes dois aspectos fortaleceu e definiu sua arquitetura como uma das mais representativas da recente história brasileira. Dentro do conjunto de sua obra, um dos exemplos mais destacado neste sentido é o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, mais conhecido como Conjunto Pedregulho (1), localizado no bairro Benfica no Rio de Janeiro, próximo ao centro da cidade. A obra foi realizada entre os anos de 1946 e 1952 e até hoje serve como modelo e referência na temática da habitação popular. O projeto do Conjunto Pedregulho constituiu em uma das primeiras tentativas de construir conjuntos habitacionais no país deixando clara a opção de prover uma maior dignidade à classe trabalhadora e servindo como uma espécie de eco do discurso promulgado por parte dos líderes do Movimento Moderno europeu, a partir dos anos 20, em favor de uma habitação social e coletiva.
Acomodação ao lugar
O terreno destinado à implantação do conjunto habitacional possui uma área total de 52.142,00 m2 e a taxa de ocupação final do projeto ficou em 17,3%. A conformação do terreno é irregular e sua topografia bastante acidentada apresentando em certo ponto um desnível de cerca de 50 metros que de forma sinuosa, cruza toda a extensão transversal do terreno. Esta pendente de grande altura dificulta o deslocamento físico entre os dois grandes platôs horizontais acentuando a segregação do espaço, além de onerar qualquer trabalho de movimentação de terra que busque suavizar esta diferença. Sua orientação é em certa forma desfavorável devido à excessiva insolação vespertina sobre o talude num local de clima quente, embora esta característica negativa seja compensada de certa forma, pelas magníficas vistas panorâmicas sobre o fundo da baia de Guanabara (figura 01). Contrariando uma lógica construtiva, Reidy implanta o famoso edifício ondulado denominado bloco A ao longo da cota mediana deste talude, seguindo o desenho natural da curva de nível (figura 02).
A partir do posicionamento deste grande bloco, como uma espécie de gênese de todo o projeto, o arquiteto distribui ao longo do terreno as demais edificações visando a conformação dos espaços a partir das relações criadas entre os distintos elementos. Esta intenção de Reidy é claramente percebida ao analisar a implantação das edificações da escola, do posto de saúde e do bloco B de residências. Juntas, estas edificações conformam um espaço central onde se instala a praça do conjunto, que é a principal área de lazer do projeto. O “coração” da unidade de vizinhança ou do espaço público foi definido a partir da implantação dos edifícios que foram distribuídos segundo uma simples e eficiente regra compositiva (figura 03).
Para promover uma maior legibilidade às edificações em relação a sua funcionalidade, Reidy optou em posicionar os edifícios segundo uma simples relação de organização espacial onde os blocos residenciais estão dispostos paralelamente entre si enquanto as edificações com as demais funções estão implantadas perpendicularmente. O único objeto que possui ambas as relações é a edificação destinada ao posto de saúde, pois a distribuição de sua planta resultou na forma de um quadrado. Esta engenhosa e eficiente distribuição dos edifícios junto ao terreno promove desde o princípio do projeto o êxito de todo o conjunto, efeito defendido por Le Corbusier que afirmava que o essencial de uma obra arquitetônica está em sua implantação (2). De fato, a distribuição do conjunto e em especial do bloco A é uma das principais virtudes do projeto de Reidy. Percebe-se no ato de dispor o edifício ondulado ao longo do recorrido original do talude, a intenção de organizar todo o conjunto a partir de uma característica existente, contextualizando a arquitetura com a paisagem natural.
Não existe dúvida que a imagem mais forte e representativa relacionada com o projeto, seja a deste edifício. O seu valor arquitetônico está presente tanto de maneira isolada, quanto perante o conjunto edificado, criando assim, uma espécie de dualidade nas relações compositivas com as demais edificações. Analisando as plantas de implantação do conjunto, fica evidente o protagonismo exercido pelo grande edifício curvo em relação aos demais objetos. O caráter monumental aliado com a originalidade do seu desenho confere ao bloco A um destaque formal que não vislumbramos ao observarmos as demais edificações (figura 04). Por outro lado ao analisarmos o conjunto a partir de sua volumetria, centrando nossa atenção nos edifícios que complementam o programa, a barra ondulada adquire uma importância compositiva secundária, transformando-se em um grande pano de fundo e transmitindo seu protagonismo para os objetos estudados. Reidy busca com esta ação um típico efeito dos espaços barrocos dos santuários religiosos encontrados no Brasil colonial onde objetos menores e de cota inferior vão mudando de proporção com relação aos objetos mais distantes e mais altos, na medida em que nos aproximamos na subida (figura 05), proporcionando um inteligente jogo de hierarquias tipológicas que muda constantemente de acordo com o ponto de vista do espectador.
O nascimento da curva
As relações encontradas entre o bloco A e a natureza existente buscam a contextualização do objeto arquitetônico com o espaço natural. Através do reconhecimento da importância compositiva do lugar, implantou-se a edificação segundo o traçado original da curva de nível, buscando assim, reconhecer e enfatizar uma característica natural pré-existente, definindo a natureza como desencadeadora da arquitetura. Com este gesto, o arquiteto reconhece o fato geográfico como gerador e organizador do projeto arquitetônico e obtém assim uma maior relação entre os elementos naturais e artificiais, promovendo uma inserção racional do objeto frente à natureza (3). A preocupação em fazer com que a natureza se converta em um importante elemento de composição de projeto já havia sido abordada anteriormente pelo arquiteto. No projeto para a construção do MAM, a municipalidade responsável pelo empreendimento doou uma área de 40.000 m2 para sua implantação. No intuito de organizar e prover escala humana nesta grande superfície, Reidy projeta uma série de recintos que organizam o grande espaço adjacente ao edifício do museu. Assim, entra em contato com o diretor do Jardim Botânico da cidade e recebe a doação de um grande número de palmeiras imperiais que implanta de forma lineal delimitando o grande espaço aberto com elementos naturais. Desta forma, mesmo sendo concebida artificialmente, reconhece outra vez o papel da natureza como ferramenta de projeto.
É importante observar que para reconhecer estes elementos que desencadeiam ou organizam o processo de projeto, é fundamental definir a verdadeira vocação do espaço em que se projeta. Em uma primeira análise, o plano inclinado encontrado no terreno do conjunto Pedregulho dificulta a articulação física entre os dois platôs horizontais adjacentes. No momento que Reidy implanta o bloco junto a esta pendente, ativa qualidades projetuais inerentes à sua geografia, como por exemplo, as visuais para a Baía de Guanabara, configurando assim, uma nova utilização para a característica geográfica. O edifício construído junto ao talude serve como resposta positiva à busca da verdadeira vocação geográfica do espaço natural, fato que muitas vezes não está disposto de forma clara e objetiva. A partir deste gesto a grande pendente natural do terreno não é mais vista como um obstáculo topográfico, mas sim, como uma característica física natural que através de sua vocação influiu decisivamente na definição do projeto arquitetônico.
Estes dois aspectos que auxiliaram na geração do projeto são interdependentes na medida em que de nada vale existir uma vocação, se esta não é reconhecida e explorada.
O parentesco da curva
A temática da edificação curva sempre foi explorada das mais distintas formas. Joan Llecha aborda esta tipologia dividindo os edifícios em três grupos para uma mais fácil interpretação e assimilação. No primeiro, agrupa os projetos onde o traço curvo ou sinuoso pode ser interpretado como uma resposta a um marco natural, onde a continuidade do edifício deveria reduzir a complexidade volumétrica do programa. Um segundo grupo agregaria as edificações que utilizam a curva como recurso para aumentar o desenvolvimento da fachada do edifício promovendo um acesso mais generalizado para vistas desejáveis. Um último grupo era reservado às edificações que utilizam a forma curva para abraçar e proteger espaços abertos, criando uma espécie de pátio interior com caráter próprio, protegendo de entornos pouco atrativos (4).
Entre os exemplos de edifícios utilizados por Llecha para ilustrar os distintos grupos, o que possui especial significado segundo o tema de edifício curvo é, sem dúvida, o conjunto de projetos dos Crescents executados na cidade de Bath na Inglaterra. Royal Crescent (1769) juntamente com Landsdowne Crescent (1794) marcam o início da tradição das edificações curvas ligadas ao programa residencial na arquitetura. É importante salientar que a relação existente entre os Crescents e o bloco A do conjunto Pedregulho de Reidy é de natureza apenas formal, sendo que as intenções geradoras e os resultados compositivos gerados por estes objetos, são nos dois casos, completamente distintos. No projeto brasileiro observa-se que o edifício percorre o terreno com a intenção de adequar-se à topografia natural do espaço enquanto que nos projetos ingleses, os objetos não estão preocupados com a questão topográfica sendo sua curva um ato ensimismado de proteção e apropriação do espaço convexo criado. A serpente de Reidy através de seu movimento lineal, ativa espaços em todas as direções como um objeto monolítico de tipologia contínua, enquanto que os edifícios de Bath articulam apenas uma de suas fachadas longitudinais definindo uma clara divisão entre frente e fundos onde somente o espaço convexo e frontal do objeto é ativado.
Reidy sempre vinculou os aspectos geradores de suas obras com os princípios compositivos dos grandes arquitetos do movimento moderno, destacando-se nesta lista as obras de Mies Van der Rohe, Frank Lloyd Wright e principalmente, Le Corbusier.
Frank Lloyd Wright
Uma das característica da arquitetura de Frank Lloyd Wright era a busca pelo equilíbrio entre os espaços formados pelos elementos de sua arquitetura, onde forma e a função deveriam ser a mesma coisa e por tanto, possuir uma mesma importância. O recorrido através de suas casas, faz com que os diversos recintos que formam o objeto arquitetônico adquiram unidade e interdependência que constantemente buscam relações visuais de controle e domínio do espaço exterior natural. Este reconhecimento do espaço natural como elemento de projeto é encontrado em grande parte de sua obra, da mesma forma como ocorre com o projeto de Reidy.
No projeto desenvolvido em 1909 para Como Orchard Summer Colony na cidade de Darby em Montana (figura 06), o arquiteto americano explora de forma explícita o tema da conformação e a organização de recintos. Para isso, dispõe uma série de edifícios isolados em seqüência lineal de modo a criar uma continuidade formal que configure estes espaços. Este ato é tão intenso, ao mesmo tempo em que sugerido, que o espaço resultante entre as casas não é mais visto como um vazio, mas sim como um espaço não edificado que foi ativado pelos edifícios lindeiros que o conformam. Desta maneira a sucessão de casas parece virar um grande e único bloco dotado de elementos que agregam o sentido de cheios e vazios. Desta forma, de uma maneira mais sutil e contida como no Pedregulho, os objetos geram e conformam espaços adjacentes através de suas relações, conferindo organização espacial em toda a implantação.
Na obra de Mies Van der Rohe ocorre o mesmo, pois como afirma Carlos Martí “Esta es la operación básica que Mies lleva a cabo: los elementos pueden ser neutros, incluso añadidos, pero, a través de su colocación, de sus relaciones, de su distancia, pueden encarnar valores y propiciar una interpretación del mundo” (5).
Alvar Aalto
Outro exemplo que apresenta relações projetuais com o edifício de Reidy, neste caso por suas inspirações orgânicas, é o projeto da Residência Baker, MIT, de 1949 de Alvar Aalto (figura 07), um arquiteto que conferia fundamental importância à natureza como modelo para a arquitetura. O edifício construído em Cambridge revela a madures do arquiteto relacionada com a tipologia curva. A temática da sinuosidade já era amplamente desenvolvida em seus projetos de mobiliário, sendo que em sua arquitetura ainda era muito sutil. Seu repertório curvo vinha de pequenos intentos setorizados como na marquise de acesso da Vila Mairea de 1939, no teto do salão de atos da biblioteca de Viipuri de 1935, ou em projetos de interior como o encontrado no Pavilhão Finlandês da Exposição Mundial de Nova York em 1939. No projeto de Massachusetts o edifício está concebido, tal como ocorre no de Reidy, como um extenso bloco lineal fiel aos princípios funcionalistas e que sofre uma deformação como o propósito de adequar-lo às condições de sua implantação.
O desenvolvimento da fachada sul, voltada para o rio, apresenta a partir de sua sinuosidade uma espécie de promenade arquitectural, onde se obtém distintas percepções sobre o objeto á medida em que este é percorrido pelo usuário. Desta forma, o edifício apresenta características de conformação e ativação de espaços semelhantes aos encontrados no conjunto Pedregulho. A diversidade espacial é baseada nos antagonismos existentes entre o pano de fachada que apresenta de forma seqüencial, espaços gerados através da convexidade e concavidade da fachada do edifício. Como resposta ao elemento geográfico natural encontrado no local, neste caso o rio, o objeto adquire uma sinuosidade no intuito de reproduzir de uma forma mais natural possível à elegância do percurso da água. É interessante ressaltar que esta relação está presente somente na face do edifício voltada para o rio, enquanto que a fachada posterior possui características ligadas a uma ortogonalidade de caráter mais urbana.
Le Corbusier
Os precedentes corbusianos e a obra de Reidy foram relacionados entre si por Sidfried Giedion no livro Space, Time and Architecture e logo por Sérgio Bracco que, assimilando as idéias de Giedion, consegue perceber a influência dos projetos de Argel e do Rio de Janeiro na obra do Pedregulho (6). Ao longo do desenvolvimento de seu repertório de projeto, Le Corbusier deixa claro que a arquitetura enquanto criação humana deve rivalizar com a paisagem natural em um diálogo de complementação que resultará em um equilíbrio dinâmico. Sem a arquitetura, a paisagem não pode oferecer todo o seu esplendor a favor do homem. Desta forma, a arquitetura não deve confundir-se com a paisagem, mas sim, promover um destaque entre si. Ambas são valorizadas e se complementam. Este forma de entender a relação entre objeto e natureza, assemelha-se muito à maneira em que foi concebida a disposição espacial dos edifícios do Pedregulho, embora neste caso, rivalizar parece não ser o termo adequado. De fato o mecanismo projetual corbusiano está presente ao longo de todo o desenvolvimento do projeto. No memorial de intenções, foi estabelecido que o deslocamento do morador até seu posto de trabalho deveria ser realizado em um tempo mínimo possível, que no caso do Pedregulho, não deveria ser superior a 30 minutos a partir do conjunto residencial (7).
No ano de 1930, logo após sua primeira estada no Brasil, Le Corbusier desenvolve um projeto de reurbanização para a cidade de Argel no norte da África onde projeta uma série de tipologias urbanas com o propósito de regular propriedades e reorganizar leis de desenvolvimento urbano para a cidade. A análise territorial realizada por Le Corbusier para esta cidade é muito similar à realizada anos antes para a cidade do Rio de Janeiro. Descreve a futura capital do norte da África como uma cidade que está em pleno curso de desenvolvimento e que vislumbra um grande futuro pela frente, devendo assim, criar fortes bases que regulamentem e organizem o território. Destaca sua extraordinária posição geográfica junto ao mar, as montanhas e o pôr do sol compondo um cenário precioso sobre a cidade ressaltando que todas as precondições necessárias para que a cidade se torne uma das capitais mais lindas do mundo estão presentes. Desta forma, é compreensível que Le Corbusier recorra à proposta urbanística desenvolvida para a cidade brasileira (figura 08), voltando a utilizar o edifício contínuo apoiado em uma estrutura viária de grande altura sobre o terreno existente, devido à impossibilidade econômica de desenvolver uma proposta ao nível do mar. Junto ao grande edifício contínuo, projeta outras edificações dispostas de forma orgânica junto à encosta de uma pequena montanha, que criam como no conjunto das edificações do Pedregulho, relações compositivas e visuais com a grande barra contínua (figura 09).
Estas edificações implantadas na encosta da montanha da cidade de Argel, apresentavam regras compositivas que tinham como objetivo promover relações visuais entre paisagem e arquitetura por meio de um dinâmico diálogo entre o construído e o natural, onde o objeto arquitetônico interferisse o menos possível junto as visuais naturais existentes entre a montanha e o mar. Para lograr esta intenção, Le Corbusier definiu que os edifícios dispostos sobre as encostas da montanha deveriam apresentar junto ao pavimento de acesso (figura 10), pilotis que permitissem uma permeabilidade visual junto à natureza do lugar. A solução arquetípica desenvolvida pelo arquiteto europeu para esta proposta foi claramente adotada por Reidy na configuração do bloco A do Pedregulho.
Também desenvolvida por Le Corbusier para a cidade de Argel, no ano de 1933, o loteamento Durand propôs em uma área de 108 hectares, a construção de quatro grandes blocos de edifícios com capacidade de 300 famílias cada, que eram circundados por grupos lineares de pequenas edificações unifamiliares. As relações compositivas entre os edifícios e o terreno, nesta proposta, foram desenvolvidas de forma inversa às encontradas no projeto de Reidy para o Pedregulho. No projeto de Argel, é a linha das edificações menores que está implantada seguindo o contorno topográfico natural do terreno, enquanto que os grandes blocos estão repousando sobre um platô horizontal (figura 11).
O racionalismo e a necessidade de se obter uma hegemonia social na moradia, fazem com que o arquiteto desenvolva o programa de necessidades das vivendas buscando um maior grau de igualdade compositiva possível, independentemente se estas estão localizadas de forma coletiva nos grandes blocos, ou dispostas individualmente em pequenas unidades. Para obter este resultado, Le Corbusier adota uma tipologia escalonada nos grandes blocos, possibilitando assim, o surgimento de pequenos terraços ou jardins descobertos (figura 12). Com esta atitude, as residências localizadas nos blocos dos grandes edifícios possuem superfícies descobertas que conformam espaços similares aos encontrados nos pátios das casas individuais. Esta engenhosa solução tipológica resultou no desenho de um objeto distinto relacionado aos demais edifícios projetados na cidade pelo arquiteto. O escalonado resultante das distintas posições dos terraços em cada pavimento, resulta no desenho de um objeto com um aspecto inclinado que de forma artificial busca imitar a tipologia natural do lugar, neste caso, a encosta da montanha. Agora, o plano inclinado não é mais disposto naturalmente pela topografia, mas sim, construído pelo homem no sentido de domínio, respeito e reconhecimento do espaço natural.
Os planos para Argel possuem a capacidade de respeitar as demandas de liberdade individual, dar suporte a coletividade da sociedade, à economia e à produção, preceitos básicos presentes na descrição de Reidy sobre o projeto do conjunto Pedregulho. Outra característica que está presente em ambas as propostas é a estrutura baseada em princípios biológicos de demanda, onde o acréscimo ou a retirada das células é realizado segundo princípios biológicos de crescimento, mantendo sempre uma organizada liberdade individual como gênese de proposta.
Mesmo programa, distintas soluções
A forte relação entre Reidy e Le Corbusier foi contínua e profunda como atesta a série de cartas escritas por ambos profissionais no início da década de 50. Enquanto Reidy enviava fotografias da construção do Conjunto Pedregulho para Le Corbusier, este devolvia a gentileza enviando fotos da Unidade de Habitação de Marselha, na França (8). De fato a analogia entre estes dois projetos é pertinente na medida em que ambos possuem programas similares que adotam distintas soluções.
Os dois edifícios apresentam como arquétipo básico, a torre com pilotis, mas devido às diferenças encontradas em ambos os terrenos, o resultado espacial dos objetos é distinto. Reidy implanta no 3º pavimento do edifício, uma segunda linha de pilares que dá origem a um pilotis intermediário localizado junto ao pavimento de acesso à edificação, a partir do platô mais elevado do terreno. Esta solução foi adotada além da temática das visuais descritas nos projetos de Argel, para que o usuário ao observar e aceder à edificação através das duas pontes (9) tenha plena consciência de que a tipologia que define a estrutura do objeto é a de um edifício sobre pilotis, solucionando a questão da legibilidade do edifício pelo fato de dotar o 3º pavimento com as mesmas características encontradas no térreo.
Outra distinta solução, diz respeito ao programa complementar existente nos dois projetos. Enquanto que a Unidade de Marselha engloba todas as funções inerentes à moradia em um único objeto isolado que se articula solitariamente como uma grande massa unitária pousada junto a um platô horizontal natural, Reidy distribui estes serviços complementares sob a forma de distintas edificações que ativam entre si, relações espaciais que potencializam espaços adjacentes não edificados.
Embora os estudos realizados pelo arquiteto para o Rio de Janeiro anunciem uma mudança de rumo em sua trajetória, quando se liberta da rigidez cartesiana dos projetos anteriores para aceitar e incorporar os acidentes geográficos típicos do terreno natural, essa relação entre edifício e topografia se desenvolve de uma maneira ainda muito subjetiva (10), enquanto que no projeto do Pedregulho, é disposta da maneira clara e objetiva. Outro aspecto compositivo que apresenta distintas estratégias está no fato de que o edifício contínuo da proposta urbanística para a cidade do Rio de Janeiro desconsidera como conjunto as demais edificações existentes na cidade sendo que no conjunto Pedregulho nota-se exatamente o contrário, pois neste caso, uma das principais intenções projetuais está presente nas diversas relações existentes entre os distintos objetos, ativando de forma unitária e monolítica todo o conjunto.
Relações como princípio
Toda e qualquer obra de arquitetura, por mais independente que possa parecer, relaciona-se com os diversos elementos que formam seu entorno próximo. Estas relações, que são geradas a partir das composições espaciais com outros objetos, devem auxiliar na conformação do espaço arquitetônico, reforçando a idéia de unidade entre estes distintos elementos. Uma edificação, uma montanha, ou um rio, são apenas alguns destes elementos que estão presentes no espaço e que devem de alguma forma, serem considerados ao definir o partido arquitetônico de modo a orientar positivamente no desenvolvimento do processo de projeto.
Passados mais de cinqüenta anos de sua construção, aquele que foi o projeto vencedor da 1º Bienal Internacional de São Paulo no ano de 1953 continua sendo um dos exemplos mais importantes na temática da habitação popular. Todavia, falta muito caminho a percorrer para que a integração harmônica entre cidade, natureza e arquitetura, seja uma realidade dominante.
O Pedregulho nos ensina que a arquitetura não deve possuir valores ensimesmados e egoístas, mas sim, características que componham juntamente com os demais elementos existentes, a cidade contemporânea. Ensina-nos que existe uma grande diferença entre o espaço arbitrariamente ocupado e àquele que se deixa ocupar. Ensina-nos que deve respeitar, relacionar, compor e equilibrar.
Estas lições foram ditadas há mais de meia década.
Basta apenas, aprender.
notas
1
O conjunto é popularmente chamado “Conjunto Pedregulho” pelo fato de estar implantado na encosta oeste do Morro do Pedregulho.
2
CAIXETA, Eline. “Pedregulho: Enseñar a vivir en la nueva ciudad”. DPA, nº 19. Barcelona, p. 29, abr. 2003.
3
“As exceções formais ao sistema geral nunca são resultado de um capricho pessoal, mas respostas a potencialidades latentes no programa ou sítio”. MAHFUZ, Edson da Cunha. “The importance of being reidy”.DPA, nº 19. Barcelona, maio 2003, p. 35-36. “Las curvas del bloque A del Pedregulho obedecen de un modo sutil a la topografía hasta el punto de que su forma puede entenderse como el resultado de una operación de extrusionado de la sección.” LLECHA, Joan. “Curvas Habitadas”. DPA, nº 19. Barcelona, maio 2003, p. 35-36.
4
LLECHA, Joan. Op. cit., p. 39-42.
5
ARÍS, Carlos Martí. Silencios Elocuentes. Barcelona, Ediciones UPC, 1999, p. 18.
6
BRACCO, Sérgio. L'architettura moderna in brasile. Milan, Capelli, 1967. p. 65.
7
“El Pedregulho se destinaba a los funcionarios de la municipalidad que trabajaban cerca del local donde íbamos construir las residencias”. “El principio era: vivienda próxima al local de trabajo. Era un principio de Le Corbusier”. Entrevista de Carmem Portinho a Eline Maria Moura Pereira Caixeta. Revista de Crítica Arquitectónica, nº 3. Barcelona, set. 1999. p 91.
8
LLECHA, Joan. DPA, nº 19. Barcelona, maio 2003, p. 34.
9
Esta pode ser outra comparação com a unidade, mas de forma mais subjetiva. Como no projeto de Le Corbusier, o edifício de Reidy também possui analogias marítimas sendo uma das mais fortes, as 2 pontes de acesso que fazem com que o usuário não apenas “entre” no edifício, mas sim, que “embarque” nele.
10
As curvas existentes no edifício estrada desenvolvido por Le Corbusier para o Rio de Janeiro estão muito mais relacionadas com o desenho das curvas existentes no perfil natural da cidade junto ao mar, do que com a topografia por onde se desenvolve o edifício.
sobre o autor
Rafael Spindler da Silva, arquiteto e urbanista doutorando em Projetos Arquitetônicos da Universidade Politécnica da Cataluña – UPC, Barcelona.