Urbanidade em São Paulo
Na cidade de São Paulo, os movimentos da modernização social, cultural e ideológica atropelam-se e radicalizam-se caso comparados à mais lenta digestão dessas práticas no desenvolvimento do capitalismo continental europeu e – de maneira diversa – americano. Pré-figurações ideológicas antecipam-se à práxis de um desenvolvimento endógeno das forças produtivas, forçando a rápida e hiper-tardia industrialização brasileira. O nacionalismo ambíguo subjacente às vanguardas locais dos anos 1920 toma feição de estratégia desenvolvimentista nas décadas posteriores, com conseqüências diretas no desenvolvimento de nossa arquitetura moderna e, de maneira menos clara, de ações urbanísticas nas grandes cidades (1).
Por essas razões, na cidade centro da aceleração industrial do país, o crescimento urbano – sempre caracterizado por uma “explosão” – sintetiza vários processos: inércia da estrutura urbana e social da colônia, adensamento urbano, dispersão da mancha urbana (e desadensamento) pós-1930, regulamentação urbana da cidade dos ricos e dos negócios, desregulamentação urbana das imensas periferias onde vivem os pobres (ambas áreas produzindo grandes lucros imobiliários), drásticas intervenções urbanas de espírito do século XIX e modernas (rapidamente traduzidas num zoneamento protetor de investimentos e na abertura de vias rápidas), e, mais recentemente, tentativas de recosturar os fragmentos resultantes do tipo de desenvolvimento anterior e tentativas de requalificação urbana a partir de um frágil entendimento de cidade e história etc (2).
Assim, sobrepõe-se nessa vasta aglomeração de edifícios e pessoas, a livre e desimpedida ação da exploração da terra e da propriedade (sem os contrapesos do glorioso século XIX europeu e suas reformas urbanas autoritárias e sanitaristas) e um recalcitrante pensamento sobre a cidade, cuja origem moderna acentua uma perspectiva antiurbana (bastante útil ao desenvolvimento capitalista a partir do fordismo). Na cidade de São Paulo não existe ou existiu espaço urbano, apenas um processo de justaposições, descontinuidades e fragmentação que não cessa e que transforma a cidade inteira num movimento autofágico de produção de valor e de segregação. Se quisermos, podemos atribuir a espacialidade daí resultante adjetivos de ordem formal, mas que não ajudam a compreender sua gênese, sua transformação e tentativa de alteração. Tampouco ações sobre sua forma, equívoco anacrônico da arquitetura brasileira recente, podem viabilizar qualquer transformação substantiva (e não segregadora).
Uma das mais emblemáticas intervenções urbanas dos anos 70 – os anos do “milagre econômico” produzido pelas políticas da ditadura militar – foi a construção do elevado Costa e Silva, conhecido como “minhocão”. Um viaduto de 2,8 km de extensão que cruza o centro da cidade em direção à zona oeste.
Acusado por alguns como um dos responsáveis pela rápida deterioração do centro da cidade a partir dos anos 70, o elevado pode certamente ser indicado como culpado pela deterioração do entorno imediato, que, graças a sua grande extensão, significa uma considerável área urbanizada e – nos termos da cidade “explosão” – consolidada. Habitações de classe média e comércio nunca mais se recuperaram dessa incisiva intervenção urbana.
Largo do Arouche
Neste trabalho interessa-nos analisar um trecho específico desse elevado que margeia o Largo do Arouche, tradicional praça do centro da cidade, próxima à Praça da República. Com uma implantação típica das praças brasileiras, a área do largo é uma “ilha” verde rodeada por vias de circulação de automóveis, com tráfego mediano se considerarmos sua centralidade. Sua peculiaridade é a predominância de edifícios habitacionais, cuja função se mantém nos dias de hoje, com seus térreos comerciais que abrigam pequenas lojas, bares e restaurantes. Essa sobreposição de funções – uma praça central e local ao mesmo tempo – dá ao Largo características de passagem e permanência (contemplação e lazer). Ou seja, esse largo serve, apesar de sua deterioração, de passagem, descanso e serviços na escala da cidade, e como área de lazer para a população local, principalmente nos fins de semana. Devido a sua proximidade com os bares da avenida Vieira de Carvalho, tradicional área de bares noturnos da cidade, tem intensa ocupação nas noites durante toda a semana, atividade já incorporada pela população local.
Na área próxima ao elevado Costa e Silva, no extremo leste do Largo, a deterioração se acentua. Área residual sem qualquer atividade programada, cercada por avenidas, tornou-se área de estacionamento irregular e de venda de drogas.
A partir de um novo programa criado pelo “Governo Eletrônico” na Prefeitura da cidade de São Paulo (2001-2004) – os Telecentros (3) – foi pensada uma ação de recuperação do largo que utilizasse novas estratégias cuja ênfase fosse a criação de um novo programa para esse espaço público deteriorado – ou pelo menos subutilizado em suas grandes potencialidades urbanas e sociais.
Além da recuperação de seus equipamentos e pavimentação, e de uma pequena alteração da malha viária, o foco da intervenção seria a recuperação do tradicional mercado de flores, acoplado a um Telecentro.
Telecentro
Sabemos hoje que os excluídos dos benefícios da sociedade urbano-industrial serão ainda mais excluídos da sociedade em rede (pós-industrial), baseada na informação, tecnologia e no conhecimento (4). Em países periféricos como o Brasil, o chamado apartheid digital agrava a própria precariedade estrutural de seu crescimento “desigual e combinado”, atualizado pelas transformações mais recentes do mundo globalizado. Diminuir o desnível em relação ao acesso à tecnologia informacional pode ampliar as “políticas estruturais” de combate à pobreza nos países subdesenvolvidos (5).
Os Telecentros, ou Pontos Eletrônicos de Presença (PEP), são parte de um programa de inclusão digital desenvolvido pela Coordenadoria do Governo Eletrônico da Prefeitura de São Paulo (gestão 2001-2004) que tem como finalidade atenuar o processo de exclusão digital crescente no atual estágio das sociedades em rede. O programa busca atender as pessoas das regiões de maior exclusão, ampliando seu acesso à cidadania, na consciência de seus direitos, identificação de suas necessidades coletivas e individuais, e no desenvolvimento de habilidades necessárias ao cotidiano. Situados preferencialmente em áreas da periferia da cidade, os Telecentros são espaços dedicados ao aprendizado e utilização de terminais conectados às redes mundiais de computadores. Os usuários têm acesso gratuito a cursos básicos de informática e a Internet em conexão de alta velocidade. Em cada um deles funcionam 20 computadores, duas impressoras e uma série de softwares livres – equipamentos suficientes para permitir que o usuário tenha um endereço eletrônico, leia e envie mensagens eletrônicas, pesquise, realize pagamentos.
O programa foi aceito e incorporado pela população e tornou-se um importante instrumento para um novo conceito de cidadania na sociedade da informação, principalmente quando associadas ao orçamento participativo. Geridos em parceria entre a prefeitura e a própria comunidade, os Telecentros representam hoje um de seus maiores centros de expressão e informação.
Para a arquitetura dos Telecentros foram planejadas três situações complementares. Uma parte desses equipamentos estariam localizados em edifícios públicos reformados, outra em novos edifícios projetados e implantados em pontos estratégicos nas áreas da periferia e alguns seriam alojados em áreas centrais da cidade. Como os Telecentros acabaram por formar um ponto de encontro local, uma atenção especial foi dada às salas de espera – facilidade de acesso, número suficiente de assentos, conforto, sanitários e acessibilidade universal, foram alguns dos parâmetros adotados. O layout básico partiu de sucessivas entrevistas com técnicos e educadores e sua solução busca otimizar os usos individuais (Internet) e coletivos (aulas), assim como suas necessidades técnicas. Os novos edifícios partem de parâmetros semelhantes em relação ao layout interno, entretanto, sua arquitetura tem que relacionar dados de maior complexidade. O edifício deveria manter com a paisagem das áreas em que seriam implantados, uma relação ambígua: destacar-se da precariedade do conjunto habitação/espaço público do entorno e, ao mesmo tempo, ordenar os elementos construídos presentes na experiência dessa população. Deste modo, o projeto funde elementos construtivos industrializados, com parâmetros locais; entretanto, distantes de sua mimese ou simplificação – sua forma busca afinar-se no limite entre o respeito e a possibilidade de reorganizar arquitetura e seus lugares (6).
Os Telecentros projetados para as áreas centrais da cidade (também foco de exclusão e pobreza), foram propostos como excepcionais em relação às estratégias adotadas em seus exemplares dos bairros da periferia. Seu primeiro exemplar foi indicado para a praça principal do Largo do Arouche (patrimônio histórico da cidade), junto a um conjunto de pequenas lojas de flores existentes (7). O objetivo era potencializar o uso local e melhorar as condições dos floristas (uma tradição na praça), ambos com evidentes sinais de declínio. Após seguidas reuniões com as entidades e população local, que apoiaram o projeto e com o DPH-Departamento do Patrimônio Histórico do Município, o projeto foi aprovado nas estâncias municipais. O CONDEPHAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, órgão subordinado ao governo do estado de São Paulo, não aprovou o novo uso a praça. Diante desse fato, foi realizada uma nova proposta, situada ainda no Largo do Arouche, mas em uma área mais deteriorada – sob o Viaduto Elevado Costa e Silva. O novo projeto foi aprovado por todas as entidades responsáveis.
Telecentro Elevado Costa e Silva
A peculiar situação urbana desse novo sítio escolhido aponta para uma questão que pode ser extrapolada para vários contextos da cidade: o urbanismo rodoviarista dos anos 1960 e 1970 criou uma infinidade de espaços residuais de difícil aproveitamento sob os grandes viadutos que cortam a cidade. Freqüentemente o poder público apenas inviabiliza, com a construção de planos inclinados e grades, sua ocupação pela população sem teto.
A devolução desses espaços para seu uso público esbarra, com agravantes, na deterioração em que se encontram boa parte das praças e largos da cidade. Isolados normalmente em ilhas viárias, sem qualquer atividade comercial ou habitacional nos seus limites próximos, esses espaços remanescentes não poderiam simplesmente transformar-se em áreas de descanso contemplativo. De resto, um problema sem solução para a totalidade dos espaços públicos urbanos nas grandes cidades do Brasil e do mundo (8).
Coloca-se, com grande ênfase nesse caso específico, uma urgência da arquitetura e urbanismos contemporâneos: espaços associados a uma ação traduzida em um novo programa. Em tal circunstancia urbana não seria possível à simulação de uma piazza, com suas pequenas lojas, cafés, terraços etc. Por outro lado, adotar soluções já utilizadas em áreas similares, como a construção de albergues, depósitos de órgão públicos, funerárias, barracões de escolas de samba etc. sub-aproveitariam suas potencialidades urbanas; além de não ampliarem o uso coletivo dos espaços da cidade. Sua proximidade com o tradicional largo do Arouche autoriza a aposta em uma utilização pública e urbana, com a criação de um foco de atividades que atraísse grande número de pessoas, e que não requisitasse grandes áreas construídas.
A rotatividade de uso dos Telecentros – grande demanda de usuários que podem utilizar os equipamentos por tempo controlado – exige áreas de encontro e espera, não necessariamente vinculadas ao programa estrito desse equipamento. Por causa dessa característica – apenas reconhecida a partir da intensa aceitação do programa nas áreas periféricas da cidade – foi associada à sua arquitetura a possibilidade de criação de praças. As quais, além de acomodarem os usuários que para lá se dirigem, acabam se transformando, pela intensa utilização, em locais de encontros e lazer com maior segurança. Esse fenômeno, característico dos Telecentros das áreas na periferia, poderia ser ampliado e intensificado numa área central com as características existentes no Largo do Arouche.
O projeto desse novo equipamento não deve acrescentar nessa área repleta de construções fragmentárias e intensa circulação de pessoas e veículos – além dos anúncios, pichações e grafites – um novo objeto arquitetônico que pretenda unidade e completude (em oposição ao caos circundante). Tal postura – oposição da ordem da arquitetura à desordem da metrópole capitalista – marcou a arquitetura moderna brasileira. Essa equação urbana não autoriza tampouco um projeto “contextual” que procure articular e costurar essas “pré-existências”, na busca de um significado histórico ou arquitetônico que remeta a uma memória – a recuperar – de uma cidade que tenha existido alguma vez.
A estratégia do projeto, situado e não contextual, não procura amenizar o caos de seu entorno, mas extrair daí sua forma de expressão que acomode, com precisão, as necessidades funcionais do programa. Tal desarmonia revela uma verdade da arquitetura: o conflito – do ponto de vista do classicismo moderno – entre a forma ideal e a ideal utilização. O desenho resultante busca linhas predominantes que permitam a ordenação dos espaços internos e sua interface – já que não se trata de uma volumetria – e a conformação da praça exterior.
A nova praça considera a projeção do elevado, que a torna convenientemente semi-coberta (um limite zenital), os planos de vedação das áreas internas do próprio Telecentro, e um equipamento urbano – uma espécie de banco de vários usos indeterminados. Esses limites e suas utilidades conformam e dão sentido às proporções do espaço vazio. Mas, nesse caso, o vazio não é residual, ao contrário, o seu desenho é que norteia os principais vetores das construções propostas. Tenta-se evitar, dessa forma, o tradicional jogo figura-fundo, em direção a um jogo figura-figura des-hierarquizado, com ênfase no programa e na ação.
Conclusão
Nesse projeto foram experimentados vários aspectos da metrópole:
- reurbanização de áreas centrais e a relação entre as novas arquiteturas e novos programas; uma oposição planejada aos ideais preservacionistas que pretendem recuperar formas urbanas do passado, e uma possível sociabilidade a elas associadas, na tentativa de reencontrar uma cidade que nunca pôde existir (de pequena vila a metrópole em pouco mais de 100 anos); ou na descontextualizada submissão às imposições pós-modernas do mercado que transformam o passado em consumo;
- reativação dos espaços públicos deteriorados por diversas causas (urbanismo rodoviarista, violência urbana, monofuncionalidade, etc) a partir de novas possibilidades de utilização, para além dos programas culturais esvaziados predominantes em intervenções nas áreas centrais;
- uma concepção de praça associada a intensificação de atividades e demandas reais da população de menor renda;
- o enfrentamento dos resíduos urbanos e, principalmente os baixos de viadutos, que não considerem simplesmente a sua eliminação (quase sempre inviável se considerada a realidade da gestão urbana);
- exploração urbana e arquitetônica das peculiaridades da democratização da informação digital em paises caracterizados pelo baixo poder aquisitivo de grande parte da população, que inviabiliza a utilização totalmente doméstica do equipamento;
- Uma arquitetura que privilegie uma ação urbana coletiva-democrática em detrimento das falsas hipóteses apaziguadoras da técnica e do desenho.
notas
1
RECAMAN, Luiz. “Form without utopia”, In: ANDREOLI, Elisabetta; FORTY, Adrian (org.). Brazil's modern architecture. Londres, Phaidon, 2004.
2
Ver a esse respeito, por exemplo: MARICATO, Ermínia. “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias”, In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. (org). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 3ª. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. ROLNIK, Raquel. A Cidade e a lei. Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo, Studio Nobel, Edusp, Fapesp, 1999.
3
Informações sobre o programa: http://www.telecentros.sp.gov.br. Acessado em 01/08/2006.
4
CASTELLS, M. A Sociedade em Rede. Coleção A Era da Informação: economia, sociedade e cultura; v.1. São Paulo, Paz e Terra, 1999.
5
VAZ, José Carlos. Telecentro – plano de inclusão digital e cidadania. Em: http://inovando.fgvsp.br/conteudo/documentos/20experiencias2003/SAOPAULO-SaoPaulo.pdf. Acessado em 01/08/2006.
6
O projeto do “Telecentro Modelo” pode ser visto em: http://www.la2.com.br/projetos.html.
7
O projeto foi publicado em: http://www.vitruvius.com.br/institucional/inst57/inst57.asp.
8
Cf. ZUKIN, Sharon. Landscapes of power: From Detroit to Disney World. Berkeley, UCLA Press, 1991.
sobre os autores
Leandro Medrano é arquiteto e urbanista formado pela FAU-USP (1992, São Paulo, Brasil), mestre pela UPC-Universitat Politécnica de Catalunya (1995, Barcelona, Espanha) e doutor pela FAU-USP (2000, São Paulo, Brasil). Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP, onde leciona na graduação e pós-graduação.
Luiz Recaman é arquiteto formado pela FAU-USP (1982 São Paulo, Brasil); Mestrado pela FFLCH-USP (1993 São Paulo, Brasil); Doutor pela FFLCH-USP (2002 São Paulo, Brasil). Professor na graduação de pós-graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP).