Em 1953, a revista Nature publicou o artigo de James Watson e Francis Crick no qual a hélice dupla da estrutura do DNA aparece impressa pela primeira vez. Um desenho simples, esquemático, que teria conseqüências decisivas para o avanço do conhecimento humano sobre o mundo. Além de seu conteúdo científico, essa descoberta ajuda a refletir sobre questões em outros territórios – design incluído.
O salto no espaço
Foi Linus Pauling quem havia proposto pela primeira vez uma figura no espaço para explicar a estrutura de uma proteína, alguns poucos anos antes (2). Até então, toda a investigação sobre o mundo molecular estava baseada em esquemas bidimensionais. Pauling foi quem deu o salto do plano ao volume. Ao dar esse salto, ele abriu uma perspectiva nova para a pesquisa na área. Em pouco tempo, a estrutura do DNA já estava ocupando seu lugar em um espaço tridimensional.
Está acontecendo fenômeno análogo no design. Iniciada nas décadas de 1970 e 1980, a conquista do espaço pelo design acelerou-se enormemente nos anos 1990, alterando a própria maneira de pensar os projetos. Por quais caminhos passou essa história?
O impresso cede lugar ao eletrônico,
o papel cede lugar à tela,
o bidimensional cede lugar ao tridimensional
Nas três últimas décadas, a televisão difundiu em escala planetária uma cultura audiovisual distinta da cultura impressa. Depois dela surgiram o computador e a internet. Ambos, seguindo seu exemplo, disseminaram-se pelo planeta. No que diz respeito à linguagem visual, uma das mudanças trazidas por esses veículos foi a tridimensionalidade.
Na década de 1960, McLuhan já havia percebido que a cultura impressa cederia lugar à cultura eletrônica; a primeira é o território do bidimensional, a segunda, do tridimensional (e também do tetradimensional: tempo e movimento são dimensões inescapáveis para quem projeta mídia eletrônica). A tridimensionalidade, portanto, foi colocada em pauta tanto pela natureza da imagem veiculada pela televisão e pela internet, como pelos novos modos de projetar design via computador.
O instrumento e o pensamento
Pode parecer estranho afirmar que a ferramenta com que trabalhamos interfere em nosso modo de pensar. No entanto, o caso ocorrido nas investigações moleculares é exemplar: enquanto os cientistas formularam hipóteses limitadas ao plano, as peças do quebra-cabeça não se encaixaram. Só quando Pauling percebeu que, se a proteína vive no espaço, então sua estrutura deveria ser espacial, é que uma imensa barreira foi transposta, e a cadeia de produção de conhecimento novo foi deflagrada. Depois que o salto foi dado, ele pode parecer modesto. Não é. As conquistas mais árduas são as que atuam exatamente aí, nas bases do pensamento. Nesse âmbito, as estruturas operativas parecem tão naturais que torna-se difícil afastarmo-nos delas. As hipóteses que formulamos carregam os caminhos que estamos habituados a trilhar.
A tridimensionalidade no design gráfico
A partir da década de 1970, a imagem impressa já revela a influência da imagem televisiva. Um sinal ilustrativo da preocupação em incorporar a terceira dimensão é o selo comemorativo do Sesquicentenário da Independência, projetado por Aloísio Magalhães em 1971 (é curioso notar sua semelhança com o desenho da dupla hélice). As duas datas, situadas em planos distintos, são ligadas por linhas sinuosas. Desse modo, o designer conseguiu reunir em um mesmo desenho profundidade e movimento.
O sinal mais importante dessa década é o símbolo da Globo, projetado por Hans Donner em 1974-5. Não por acaso, trata-se de uma rede de televisão – afinal, é ela o motor das principais transformações que estavam ocorrendo na cultura visual. Além da sugestão de volume, o que o distingue é o fato de ser um sinal que já nasce de olho nas possibilidades oferecidas pela animação eletrônica. Nesse aspecto, as vinhetas da Globo são um exemplo da natureza tridimensional da imagem televisiva: o símbolo passeia pela tela em todas as direções, flutuando livremente em um espaço de profundidade ilimitada. Definitivamente, o papel não era mais o começo e o fim de todos os sinais.
A bidimensionalidade na arquitetura
O design ambiental é o encontro do design com a arquitetura. E, por incrível que possa parecer, a produção cotidiana de arquitetura padece de um mal crônico: a hegemonia da bidimensionalidade. Isso mesmo, justamente a arquitetura, tridimensional por natureza, carrega um raciocínio ancorado na bidimensionalidade (essa observação não vale para os grandes mestres; Niemeyer, por exemplo, com sua arquitetura de raiz escultórica, passa longe desse perigo).
Qual a origem desse mal? Papel, lapiseira, régua T e esquadros são réus nesse tribunal. De instrumentos de desenho técnico eles tornaram-se instrumentos de concepção. Foi o bastante: os edifícios passaram a ser formados pela justaposição de elevações, pensadas cada uma delas como um problema bidimensional. É claro que há outras condicionantes envolvidas: custo, tecnologia, padrões urbanísticos, padrões estéticos, e por aí afora. Mas lá atrás, no começo da cadeia, atuando diretamente na concepção, estão os famigerados instrumentos de desenho técnico.
Um contraponto exemplar dessa tendência é Frank Gehry, o arquiteto do Guggenheim Bilbao. Ele costuma iniciar a concepção de seus projetos por meio de modelos toscos de papelão, presos de qualquer jeito com fita adesiva. Trata-se de uma espécie de “croqui tridimensional”. Só depois de definidos os rumos do projeto é que se inicia a etapa do desenho técnico, utilizando os instrumentos específicos para tal finalidade. Esse modo de trabalhar cria condições muito mais favoráveis ao surgimento de projetos que efetivamente são volumes no espaço do que se a concepção estivesse presa desde o início à régua T e aos esquadros.
A volumetrização da gráfica ambiental
Em virtude de sua relação estreita com a arquitetura, não surpreende que a gráfica ambiental também fosse marcada pelo raciocínio bidimensional. Novamente, é bom ressalvar que há outras variáveis envolvidas na questão. Normalmente, um sinal plano é produzido com menos dificuldade do que um sinal volumétrico, exige menos tecnologia, tem menor custo etc. No entanto, limitar-se a esses fatores é permanecer na superfície do problema. O que precisava avançar não eram as técnicas de produção das peças, mas sim o pensamento projetual capaz de propô-las. Os hábitos nos obrigavam a pensar em termos de duas dimensões, não de três. O que estava faltando era a compreensão que Pauling teve sobre a estrutura espacial da proteína. Seguindo a mesma linha de raciocínio, se um sinal existe no espaço, o mais natural é que sua estrutura seja espacial.
Na página ao lado, um exemplo de volumetrização na gráfica ambiental, entre tantos outros que poderiam ser citados. As testeiras dos postos Shell constituem uma seqüência que vai do plano ao volume. Não há grande diferença tecnológica entre a primeira e a quarta (ainda que esta última já esteja em outro patamar projetual, incorporando a luz no desenho da peça). O grande salto é mesmo o da compreensão de que estruturas espaciais não precisam ser planas, como os instrumentos do desenho técnico com que eram projetadas nos induzia a pensar. Examinando a primeira e a última fotografia, temos um retrato eloqüente da passagem do tempo.
Caminho sem volta
Lembremos novamente do brilhante salto de Linus Pauling. É impressionante pensarmos que a simples passagem de um modelo interpretativo bidimensional para um tridimensional tenha sido capaz de deflagrar uma poderosa cadeia de descobertas: em menos de dez anos, a estrutura do DNA estava compreendida; em 50 anos, animais estavam sendo clonados. Não tenha dúvida: na ciência e no design, a tridimensionalidade veio para ficar.
notas
1
Artigo publicado originalmente em MELO, Chico Homem de. Signofobia. Coleção Textos de Design. São Paulo, Rosari, 2005, p. 18-25.
2
Fato citado de passagem por Mônica Teixeira. TEIXEIRA, Mônica. O projeto genoma humano. Coleção Folha Explica. São Paulo, Publifolha, 2000.
sobre o autor
Chico Homem de Melo é designer, arquiteto, mestre e doutor pela FAUUSP, professor de programação visual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, diretor da Homem de Melo & Troia Design e um dos fundadores da ADG – Associação dos Designers Gráficos.