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architexts ISSN 1809-6298


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Neste artigo, Evelyn Furquim Werneck Lima analisa dois edifícios teatrais em São Paulo, com propostas inusitadas em edificações pré-existentes: o Teatro Oficina de Lina Bo Bardi e Edson Elito e o SESC da Pompéia de Lina Bo Bardi


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LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Por uma revolução da arquitetura teatral:. O Oficina e o SESC da Pompéia. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 101.01, Vitruvius, out. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.101/100>.

Neste artigo foram analisados dois edifícios teatrais em São Paulo, com propostas inusitadas em edificações pré-existentes. No Teatro Oficina, – reconstruído segundo projeto de Lina Bo Bardi e de Edson Elito –, prevaleceu um espaço cênico unificado, baseado nos conceitos de “rua” e de “passagem”. No teatro do Sesc da Pompéia, o espaço foi transformado numa semi-arena, com as arquibancadas em faces diametralmente opostas ao retângulo que constitui o palco, possibilitando melhor intercomunicação entre cena e auditório (1).

O teatro, nos anos 1980, não deveria apresentar mais uma ruptura radical entre sala e cena, pois os novos paradigmas investigados no início do século pregavam um teatro mais participativo, com a valorização da cena aberta. Além dos teóricos das vanguardas, já desde 1960, Jacquot e Bablet ressaltavam que o teatro queria ser mais inclusivo do ponto de vista social (2). O conceito de um teatro do povo que difundisse a cultura incluindo camadas sempre excluídas orientou o traçado tanto do Sesc da Pompéia, quanto do Oficina.

Não que todos os encenadores e teóricos do teatro sejam unânimes, pois o próprio Peter Brook que mantém uma companhia teatral num espaço à italiana alegou que:

“Eu desconfio das generalizações sobre a natureza do teatro. Quando me dizem, por exemplo, que o enquadramento da cena é um obstáculo a um contato verdadeiro entre ator e auditório, quando me explicam, em detalhes e de uma maneira teoricamente impecável, como um fato absoluto, que este enquadramento separa a cena da sala, eu simplesmente me recuso a crer. Eu vi atores dentro de um quadro de cena dourado, no estilo rococó, em relação direta e íntima com cada espectador das poltronas da orquestra às galerias” (3).

Obviamente o diretor inglês refere-se à qualidade do teatro encenado e não ao espaço no qual é encenado. Relata que viu atores atuando em teatros do tipo “arena” que permaneciam separados e distantes. Afirma, porém, que teve um total envolvimento quando, em outra ocasião, apesar de sentado “durante quatro horas, espremido entre cinqüenta pessoas, num galpão em Hamburgo”, participou da representação de uma maneira tão íntima que parecia “fazer parte da vida dos personagens” (4). Brook alegou na ocasião que não tirava nenhuma conclusão desta experiência exultante.

Em que pesem às inúmeras discussões sobre o que seria ideal, a nova arquitetura de teatros seguiria a tendência de englobar sala e cena num mesmo espaço contíguo. A relação ator/espectador deve ser face a face. Retiram-se os traços da cena ilusionista. As formas que inspiram esta arquitetura derivam dos lugares teatrais da antiguidade clássica, nos quais as arquibancadas cercavam o local circular da cena (orquestra). Vitruvius descreveu em De Architectura as normas para o edifício e formas cênicas na Roma do século I A.C. Este teatro continha uma cena arquitetônica total que cercava o palco, o espectador, o anfiteatro, e a paisagem. Embora desenvolvida a partir do teatro grego, a arquitetura do teatro romano enfatizava a mais a questão da visibilidade. Vitruvius descreve o auditório como sendo semicircular e coroado por uma colunata, envolvendo a cena (5).

Não havia nenhuma cortina separando a audiência dos atores, e nenhuma iluminação submergindo os espectadores na escuridão enquanto se realçava o palco. Mais tarde, o teatro elisabetano, os teatros de Palladio e de Scamozzi e os teatros do Oriente inspirariam uma arquitetura teatral mais inclusiva, após o longo predomínio da tradicional cena à italiana. O século XX retomaria as investigações e discussões sobre o lugar teatral (6).

Lina Bo Bardi utilizava diversos territórios da cultura como laboratórios, no sentido de desenvolver seus conceitos artísticos. No que se refere aos estudos do espaço, foi arquiteta, cenógrafa, artista plástica, designer de móveis, curadora e organizadora de inúmeras exposições. Ao estender sua prática profissional, direcionava o olhar às expressões cênicas capazes de instigar o indivíduo, tornando possível vincular os diversos recursos de organização espacial de uma maneira que incitasse o espectador a sair do lugar comum e a atribuir outros enquadramentos às diversas representações espaciais.

Estudar a arquitetura de teatros de Lina implica alinhavar distintos estudos plásticos que permitem expressões artísticas singulares para as relações espaciais. Se houve uma formação racionalista, aos poucos esta se embebe de outras expressões artísticas do século XX. A sua metodologia quebra “a quarta-parede” saindo de uma “moldura” pré-estabelecida e parte para o cotidiano sob a forma de ação. Mas, seus projetos destinados ao teatro denotam intensa sensibilidade acerca da vivência humana, possivelmente por seu passado numa Itália muito sofrida em meio a bombardeios e misérias (7).

O Teatro Oficina: espaço de lutas e resistência

O antigo Teatro Novos Comediantes funcionava num imóvel construído nos anos 1920 na rua Jaceguay, número 520, e foi alugado em 1958, por um grupo de estudantes de Direito, entre eles José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi que ali instalaram uma companhia teatral. Para adequar o espaço à concepção teatral do novo grupo foi elaborada uma reforma de autoria do arquiteto Joaquim Guedes, que “criou um teatro tipo sanduíche, com duas platéias frente a frente separadas pelo palco central”. Este projeto perdurou até o incêndio que destruiu totalmente o teatro em 1966 (8).

Intelectuais e artistas buscaram recursos para a reconstrução do teatro. Em 1967, os arquitetos Flavio Império e Rodrigo Lefèvre projetaram uma extensa arquibancada de concreto com acessos laterais em meio nível e um palco italiano, onde um círculo central era movido por um mecanismo giratório, inspirado no Total Theater de Walter Gropius. Em 1983, tombado pelo CONDEPHAAT como bem cultural pela significação do uso do imóvel no processo de transformação no teatro brasileiro, o prédio foi desapropriado pelo governo estadual e Lina e Marcelo Susuki fizeram uma primeira proposta para uma nova reforma. No entanto, tal projeto não progrediu. Para a efetiva concretização da atual forma deste espaço teatral – o terceiro projeto do teatro do Grupo Oficina – trabalharam arduamente Lina e Edson Elito, a partir de 1982. Este último relata que,

“Quando iniciamos o projeto e durante toda a sua concepção, Lina e eu procuramos concretizar as propostas cênica e espacial de Zé Celso. Houve um saudável e por vezes complexo, processo de integração de diferenças culturais e estéticas: de um lado nós arquitetos e nossa formação modernista, os conceitos de limpeza formal, pureza de elementos, less is more, racionalismo construtivo, ascetismo e do outro, o teatro de Zé Celso, com o simbolismo, a iconoclastia, o barroco, a antropofagia, o sentido, a emoção e o desejo de contato físico, entre atores e platéia, o te-ato” (9).

Lina projetou o Oficina como uma rua, iniciando-se na rua Jaceguay, atravessando o muro ao norte (que até agora faz do Teatro, um beco sem saída), em direção à rua Japurá. Pode-se considerar o teatro como um espaço ecológico. Uma grande caixa cênica, onde atores, platéia e técnicos estão em contato direto. Apenas as espessas e pesadas alvenarias em tijolo maciço abrigam a noção de Tea-to ou “arte que abraça o espectador”, tão bem interpretada por pela arquiteta (10). A razão primeira desta rua central é a da entrada do ar, a ventilação, a energia eólica, para o interior do espaço, numa abordagem antropológica. O confronto entre a passagem de um Espaço Interior para um Espaço Exterior constitui realmente a noção e a operação de manipulação do Espaço mais importante para o homem, “desde os primeiros tempos pré-históricos em que a sociedade nem mesmo existia” (11).

Além do “Beco”, Lina havia projetado toda parede norte com esquadrias envidraçadas abertas sobre a cidade, para o estacionamento do Baú da Felicidade, do Grupo Silvio Santos. Segundo José Celso, em 1989, exatamente nos dias de queda do Muro de Berlim, “quando os atores viajavam, o Grupo Silvio Santos levantou um enorme Muro, fechando as paredes já levantadas, com aberturas de Janelas-Portas e a pequena janela já tombada” (12).

A reforma implicou a demolição de todas as paredes internas do prédio, sendo utilizadas peças de concreto para sustentação e para o contraventamento das altas paredes de tijolos, nas quais permanecem os arcos plenos que compõem o aparelhamento das alvenarias da antiga edificação dos anos 1920. Peças metálicas suportam as novas coberturas bem como os mezzaninos superpostos ao fundo. É também metálica a estrutura que garante a estabilidade das galerias laterais por meio de tubos desmontáveis. Sobre a estrutura metálica foi projetada uma abóbada de aço deslizante que permite a comunicação com uma área verde.

Uma faixa de terra coberta por pranchas de madeira laminada conforma o “palco-passarela”, denotando o sentido de “rua” e de “passagem”, e, na metade do caminho entre o acesso e o fundo do terreno, os arquitetos conceberam uma “cachoeira” composta por sete tubos aparentes que deságuam num espelho d’água, renovado por mecanismo de re-circulação. Vale lembrar que a água era um elemento bastante utilizado nas arquiteturas de Lina, possivelmente remetendo aos orixás do candomblé.

A vegetação exuberante de nosso país, o ar, a luz, os sons que representam a natureza, o mundo natural que ela tanto admirava na obra do arquiteto catalão Antoni Gaudi transparecem na arquitetura do teatro (13). Lina também aplica o conceito investigado por Teixeira Coelho, que entende como os orientais que “aquele punhado de cascalho, as duas ou três pedras em seu jardim e uma ou outra planta não são "amostras" da natureza (reduções do natural) com as quais eles tentam de alguma forma se consolar, mas, sim, são a própria natureza, a proporcionar-lhe todas as sensações de que tem necessidade em relação ao espaço natural” (14).

Segundo Lina, “do ponto de vista da arquitetura, o Oficina vai procurar a verdadeira significação do teatro – sua estrutura Física e Táctil, sua Não-abstração – que o diferencia profundamente do cinema e da tevê, permitindo ao mesmo tempo o uso total desses meios” (15). Elaborou um projeto brechtiniano e não-ilusionista, revelando ao público todos os recursos técnicos de que dispunha para a encenação. Credito a localização dos equipamentos de iluminação cênica, de som, de controles eletrônicos ao fundo do teatro num dos níveis de mezzanino ao seu profundo conhecimento das teorias do surrealista Artaud. Paralelamente, foram previstas captação e distribuição de imagens de vídeo para todo o teatro, numa busca de possibilitar ações simultâneas em diferentes lugares do espaço cênico. Tanto Artaud quanto Brecht queriam que o público participasse da vida representada em cena.

A proposta arquitetônica incita o espectador a percorrer o espaço do teatro durante o espetáculo, sugerindo uma recepção da cena que difere da forma tradicional, além de propiciar pontos de vista diversos do mesmo. Esse espaço concentra algumas definições de arte para Lina – que considero essencialmente tropicalista-, uma vez que permite a liberdade de escolha do espectador para transitar durante os espetáculos. Na verdade, a arquiteta tira as coisas do seu lugar comum, gerando releituras a partir de elementos presentes na vida. Essa arquitetura absorve questões do cotidiano e dos usos populares que facilitam decifrar os sentidos do espaço. Priorizando as necessidades emocionais do indivíduo, a arquiteta rompe as fronteiras entre a imaginação e a razão, tal como proposto por Helio Oiticica e pelo diretor teatral José Celso, que também estimulam a participação ativa do fruidor na obra, bem como as relações entre a mente e o corpo.

Permitindo ao espectador uma visão do espetáculo simultânea à da cidade, o vidro na parede do teatro que fica de frente para uma parte de uma das arquibancadas revela o viaduto do Minhocão, provocando no espectador a capacidade de estar fora do espaço teatral, ainda que permanecendo dentro dele. Portanto, o espaço do Oficina se opõe ao espaço dramático tradicional, caracteristicamente metafórico. A arquiteta induz o espectador a interagir com a realidade urbana e com a cena por meio da parede envidraçada. A pele cristalina permite que a cidade penetre no teatro, aproximando-o do espaço do cotidiano.

Nesse sentido, o espectador não pode se esquecer da presença de um acontecimento ficcional devido a uma arquitetura que destrói a ilusão de realidade, porém, enfatiza que o espetáculo ao qual o espectador está assistindo, o integra ao mundo que está logo ali fora. O espaço – com um vão no meio cercado por arquibancadas remete ao Sambódromo idealizado por Oscar Niemeyer –, com sua forma longitudinal de passagem, trazendo à tona alguns dos cânones da cultura brasileira: o desfile, as procissões e as paradas, rituais que desde os tempos coloniais permeiam a vida urbana no Brasil.

A permanência da antiga fachada inexpressiva e cinzenta deve-se provavelmente à intenção de possibilitar ao espectador que passe por um verdadeiro “rito de passagem” ao atravessar da rua para o interior mágico. Na transparência do espaço cênico contínuo, destacam-se as estruturas tubulares que sustentam as galerias e que foram pintadas de “azul arara”, conforme especificado por Lina (16).

José Celso, já em 1999, portanto sete anos após a morte da artista, conclui que:

“Oficina é o que resistiu da história humana teatral, urbanística e arquitetônica deste lugar do Bexiga na Jaceguay, é um nada (...) e o que este nada preenche e esvazia como sua expansão e contração natural:a necessidade de uma arquitetura virando teatro, que vira urbanismo que chega na construção de uma Ágora, de uma praça pública. Arqueologia urbana, não é Lina?” (17).

O projeto para o Teatro Oficina deveria varar literalmente as paredes do fundo, desembocando em uma praça pública que o ligasse ao outro lado da rua, ao vale do Anhangabaú. A idéia era de criar uma via de passagem potencializada considerando a predominância de percursos à pé do bairro do Bexiga, um dos mais antigos da cidade de São Paulo. Lina procura integrar este pequeno teatro à escala, às características e à diversidade daquele bairro de classe operária. Acreditava, no futuro em ampliar o teatro para toda a quadra. Previa a derrubada do muro dos fundos assim como a da área envidraçada, porque vislumbrava no projeto “uma experiência germinal de uma outra cidade”, que se integraria sob a forma de um teatro-estádio público. Acreditava transformar o mundo em que o ser humano atua historicamente de forma não linear e com constantes possibilidades de mudança, sempre ampliando a participação das classes trabalhadoras.

A obra plástica de Lina manifesta-se com suas obras e seus escritos contra uma arquitetura heróica e universal, mas, também contra a idéia de desenvolvimento associado ao progresso que desde os anos 1950 invadiu o Brasil, tendo como imagem emblemática a promessa de uma nova capital para o país. Enfrentava, portanto, o colonialismo cultural, que caminhava junto ao interesse mercantil da economia urbana (18).

Sua visão de mundo é antagônica à proposta do projeto do Shopping Center que ainda poderá ser construído pelo Grupo Silvio Santos. Sua atitude é diametralmente oposta à outra, que com seus 55.000 metros quadrados de teatros, salas de cinema multiplex, parques e restaurantes temáticos, distribuídos em oito andares sufocariam não apenas o Teatro Oficina, como achatariam a diversidade dos inúmeros pontos de lazer, restauração e cultura que hoje integram o bairro paulista do Bexiga (19).

Uma análise mais aprofundada da dinâmica das relações que envolvem a produção cultural implica um estudo sociológico das estruturas sociais que dizem respeito à ação humana no mercado dos bens simbólicos. Segundo Pierre Bourdieu, estas relações estão em campo que abrange outros poderes além do da consagração, pois o posicionamento dos produtores, no campo de um determinado tipo de produção envolve relações de poder que extrapolam a perspectiva exclusivamente cultural (20).

Ao patrimônio de uma cidade – o próprio Teatro Oficina, tombado pela relevância cultural e política, bem como ao teatro-estádio sugerido por Lina na mesma quadra como um espaço aberto ao público, os detentores do poder econômico vão contrapor uma proposta imobiliária de grande porte que certamente esmagará o tradicional teatro.

Tanto a proposta para o centro comercial, quanto para o novo edifício teatral parecem-me representar um conflito urbano face à história de lutas e resistências do Teatro Oficina. Este teatro e o grupo teatral que revolucionou a história do teatro, para além de sua arquitetura, representam um processo de trabalho, um movimento cultural que se renova e que reflete um caminho para o teatro brasileiro, no qual as formas abertas permitem uma pluralidade de usos.

O teatro SESC Fábrica da Pompéia: uma proposta inusitada

O modo como Lina Bo Bardi interveio numa antiga fábrica, incitando os funcionários atendidos pelo Serviço Social do Comércio a um novo imaginário, no qual formas e cores retiram o indivíduo da rotina cotidiana, do dia a dia de trabalho repetitivo, transporta-nos a um mundo de sonhos e de fruição.

Inserido nos galpões de tijolos aparentes da antiga Fábrica da Pompéia, o teatro é capaz de causar surpresa a um olhar menos habituado às transformações dos espaços. Para a arquiteta, o projeto tinha que ser coerente com o conceito de comunicação e com a sua visão de arquitetura: construir um palco para a cidadania cultural exercida na sua forma mais plena. O foyer foi criado em numa rua intermediária entre dois blocos da ex-fábrica, coberto por telhas de vidro e fechado por treliças aparentes.

A análise do espaço em questão demonstrou que o teatro foi projetado com duas platéias em lados opostos e com balcões em balanço que também se prolongam pelas laterais em toda a extensão do teatro . Percebe-se neste teatro, um dos muitos projetados por Lina, que a arquitetura é uma das formas de comunicação com o público, pois, em sua formação na européia seguia certamente o que afirma Giulio Carlo Argan, “tutto ciò che rientra nell´ambito immenso della comunicazione visiva è oggetto di analisi, di progettazione” (21). Portanto, não apenas os espetáculos no palco, mas também a arquitetura deveria despertar a capacidade dos espectadores vivenciarem o espaço teatral, como comprova o esboço inicial do projeto.

No formato de palco que criou para o Teatro do Sesc da Pompéia, Lina segue as observações de Jean–Jacques Roubine em relação ao que já estava ocorrendo no teatro francês nos anos 1940, quando, referindo-se ao trabalho de Jean Vilar, afirma que:

“Vilar se empenhou em eliminar tudo aquilo que contribuía ainda para transformar o palco em caixinha mágica. Eliminou o pano de boca, de modo que antes do início da sessão o espectador podia ver o palco nu, iluminado pela mesma luz que a sala. O local mágico retomava assim um aspecto familiar e concreto. Exibia-se como uma pista, uma área de representação, um ambiente funcional de um trabalho do qual nasceria o espetáculo. Coerentes com esse espírito, as mutações do espaço cênico faziam-se muitas vezes às vistas do público” (22).

Na eterna discussão que cerca os estudos do espaço teatral desde a Antiguidade, a dialética balança entre o palco envolvido pelos espectadores, mais original e dionisíaco – que talvez ofereça maiores possibilidades para as experimentações cênicas – e o palco italiano – mais clássico e cartesiano, além de mais característico da tipologia monumental. Para Étienne Souriau, o teatro oscila entre esses dois pólos contrários – a esfera e o cubo –, nunca deixando um extremo ser completamente triunfante. Historicamente, cada vez que um princípio estava em vias de levar longe demais seu triunfo, logo o princípio adverso surgia como um bem desejável, pois é dessa “competição” que vive o teatro (23).

No espaço cênico do Teatro Sesc Pompéia há uma transformação que poetiza, comunica e modifica o cotidiano, tornando possível reconhecer o exercício totalizador da sobreposição do “fazer” arquitetônico aliando estética com comprometimento social. Lina busca um espaço lúdico transportando o espectador a um irreal reconhecível. O “fazer” no teatro, seus trabalhos com o Teatro Oficina e com José Celso, as pesquisas sobre Brecht, os elementos cênicos criados, os figurinos, tudo isso contribuiu para o desejo da materialização de um real imaginário, constituindo uma verdadeira poética arquitetônica. Percebi o sentido poético do espaço criado pelo contato entre o ambiente e o seu usuário suscitando os seus diversos sentidos, numa inteiração perfeita, onde espectadores e atores partilham a cena (24). Considero, portanto, que a arquiteta fez uso do palco “esférico”, apesar da base retangular, visto que não há como criar ilusionismo com platéias que desnudam o palco em todas as suas dimensões.

Lina defendia a teoria de que o teatro é a vida, e que uma cena ‘aberta’ e despojada pode oferecer ao espectador a possibilidade de “inventar” e participar do “ato existencial” que representa o espetáculo teatral.

No Teatro SESC Pompéia a capacidade de criação e de propor estímulos à reinvenção do cotidiano se apresenta aos homens com uma significativa liberdade. Lina incitava à estranheza e ao desconforto para que, através desses sentimentos, distanciasse e envolvesse os espectadores. Segundo a arquiteta, como a cultura brasileira não possui o “culto ao belo” na mesma proporção que as culturas das elites européias, ela explorou o “feio” no Teatro do SESC muito mais por sua capacidade de comunicar sua mensagem do que por sua estética. Trabalho e lazer se sobrepõem numa mesma concepção remetendo não apenas a uma cena, mas a diversas delas, muitas vezes expressas nos seus habilidosos croquis aquarelados (25).

Ao projetar o teatro, a arquiteta critica diretamente a sociedade de consumo, deixando sem estofamento as cadeiras de madeira situadas nas arquibancadas de concreto. Outra estratégia inovadora foi utilizar a distorção visual que a forma retangular do palco-sanduíche propõe aos espectadores, conferindo um aspecto cenográfico deformado.

Utilizando a arquitetura como uma linguagem, Lina estabelece com o público uma comunicação clara de que não se propõe a projetar um teatro convencional. Sua concepção de “arquitetura pobre” apresenta-se vinculada à proposta estética de honestidade estrutural, deixando sem revestimentos as paredes em concreto e se identificando também com a noção de “teatro pobre” que caracteriza a estética de Brecht, empregada com maestria nos espetáculos nos quais atuou como cenógrafa (26).

Entre arquiteturas e cenografias, Lina comprova que abraçando estas duas práticas artísticas e dando ainda mais consistência ao que se imagina ser um teatro de liberdade, ela inventa a própria arquitetura da liberdade. Liberdade do encenador, liberdade do ator e do cenógrafo, mas, principalmente a liberdade do público.

Aspectos singulares

Numa das aquarelas que ilustram o anteprojeto para o Teatro Oficina –, Lina Bo Bardi propõe ventilações por meio de buracos na alvenaria. Ao lado de três destes buracos, ela escreve: "Guerra de España", deixando clara sua revolta contra o autoritarismo e contra o capitalismo. Estes buracos permanecem como um ícone da arquitetura bobardiana e também foram empregados quando estava sendo construído o bloco esportivo do Sesc. Além de ícones contra a guerra, estes buracos pré-históricos das cavernas, sem vidro nem esquadrias, permitem uma ventilação permanente, interligando Espaço Construído com Espaço Não Construído (27).

Tanto na recuperação da fábrica da Pompéia, quanto na adaptação do antigo prédio para o Teatro Oficina, quanto no projeto do Centro Histórico, empreendido em 1989, não importa à arquiteta recuperar apenas a história dos edifícios, mas também “a memória do lugar”, do passado recente do país, de uma memória pessoal que se mescla, involuntariamente, à memória coletiva.

No projeto inusitado de restauração da antiga fábrica de tambores dos Irmãos Mauser – atual SESC da Pompéia-, a arquiteta recuperou a memória da própria condição do trabalhador, no qual o devaneio poético segue estabelecendo imagens reconhecíveis e criadas pelo olho do observador. E neste espaço de lazer não poderia faltar um espaço teatral. Utilizando conceitos de arte povera, inspirados na vida do homem simples, Lina criticou o papel das profissões que lidam com o espaço nas artes, questionando o condicionamento equivocado a um ideal de “belo”, identificado exclusivamente na dicotomia forma-função, conforme pregavam os teóricos da Bauhaus, liderados por Walter Gropius.

Na arquitetura dos dois espaços teatrais investigados, Lina promove uma ruptura com os critérios que regem as leis do mercado, idealizando ambientes próprios à circulação e consagração para sua produção artística. Trazendo ao Brasil uma bagagem cultural e uma vivência politizada e voltada para as questões sociais, lançou seu olhar estrangeiro às artes e à cultura popular do Brasil.

Apesar de sua erudição, a arquiteta fugiu dos códigos específicos de uma produção erudita valorizada em seu círculo de origem. Derrubando preconceitos, fez de sua própria formação o seu método de criação, determinando com maestria espaços arquitetônicos que revelam o potencial transgressor de sua arte, como atestam os teatros aqui analisados.

notas

1
Em recente pesquisa discuti a qualidade da “relação sala-cena”, analisando desde o Teatro Olímpico de Vicenza, projetado por Andréa Palladio em 1580, até a obra da Cidade da Música do Rio de Janeiro, concebida pelo arquiteto francês Christian de Portzamparc, ainda em construção na Barra da Tijuca – Rio de Janeiro. Ao longo de quatro séculos, ainda subsistem espaços teatrais projetados à italiana (LIMA & CARDOSO, 2006).

2
BABLET, Denis et JACQUOT, Jean. Le Lieu Théatral Dans La Société Moderne. Paris: Éditions C.N.S.R., 1961, p.10.

3
Brook, apud BABLET & JACQUOT. op. cit., p.11

4
Ibidem, p. 12.

5
No teatro romano, o auditório ou cávea, semicircular, estava ligado à construção cênica como uma estrutura única, sendo necessária a existência de estruturas de sustentação em arcos plenos de diferentes alturas que suportavam as arquibancadas, visto que diversamente do teatro grego, estas não eram escavadas nas encostas.

6
LIMA, Evelyn Furquim Werneck; CARDOSO, Ricardo J. B. Arquitetura e teatro. Edifícios teatrais de Andréa Palladio a Christian de Portzamparc. Relatório Científico. CNPq/ UNIRIO, 2006, p. 17-34.

7
Arquiteta pela Universidade de Roma em 1939, Achilina Bo muda-se mais tarde para Milão, para trabalhar com Gió Ponti, arquiteto e editor da revista Domus, na qual escreveria inúmeros artigos. Seu escritório foi destruído por um bombardeio. Ao final da guerra, viaja por toda a Itália escrevendo sobre as questões sociais e participando intensamente da reconstrução da vida campesina. Já casada, transfere-se para o Brasil em 1946.

8
BARDI, Lina Bo, ELITO, Edson; CORRÊA, José Celso Martinez. Teatro Oficina. Lisboa: Editora Blau, 1999, p. 5.

9
Ibidem, p. 6.

10
Na época da idealização do edifício teatral do Grupo Oficina, José Celso criou o conceito te-ato que pretendia uma integração total do espectador com o teatro.

11
TEIXEIRA COELHO, Netto, José. A construção do sentido na arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1984, p. 30.

12
Declaração de José Celso. CORRÊA, José Celso Martinez. “O buraco mais embaixo do Oficina – acorde Silvio Santos!” <www.teatroficina.com.br/menus/45/posts/83>. Acesso em 03 novembro de 2007.

13
A relação da obra de Lina com a obra de Gaudi é explicada pela arquiteta, que se impressiona com as formas da natureza utilizadas de maneira expressionista.

14
TEIXEIRA COELHO, Netto, José. Op. cit., p. 57.

15
BARDI, Lina Bo, ELITO, Edson & CORREA, Jose Celso Martinez. op. cit., 1999, p. 3.

16
Atualmente os tubulares estão pintados com tinta dourada.

17
BARDI, Lina Bo, ELITO, Edson & CORREA, Jose Celso Martinez. op. cit., 1999, p. 27.

18
Cf. OLIVEIRA, Olívia de. Lina Bo Bardi. Sutis substâncias da arquitetura. São Paulo: Romano Guerra/Gustavo Gili, 2006, p. 18.

19
Marcelo Ferraz – amigo e antigo colaborador de Lina –, descreve um novo projeto de sua autoria para a área do estacionamento do Baú da Felicidade, onde propõe um shopping e um edifício teatral com 2000 poltronas, que poderá eventualmente vir a ser interligado ao Teatro Oficina, do qual distará, se edificado, apenas sete metros. Ver FERRAZ, Marcelo. “Olho sobre o Bexiga”, Arquitextos, n. 087. São Paulo, Portal Vitruvius, ago. 2007 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq087/arq087_00.asp>. Acesso em 28 set. 2007.

20
BOURDIEU, Pierre. A economia da trocas simbólicas. Trad. Sergio Miceli. São Paulo. Perspectiva, 1987, p. 106.

21
ARGAN, Giulio Carlo. L´Arte Moderna. 1770-1990. Firenze: Sansoni, 1984, p. 333.

22
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 97.

23
Cf. SOURIAU, Etienne. “O cubo e a esfera”. Tradução de Redondo Junior. In: O teatro e sua estética. Lisboa, Arcádia, 1964, p. 31-48.

24
Cf. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

25
Os croquis e aquarelas de Lina Bo Bardi apresentam-se como verdadeiras obras de arte, onde transparecem os pensamentos e o raciocínio de uma mente de grande poder de transmissão de idéias através dos mecanismos da linguagem plástica.

26
Ver texto sobre as cenografias de Lina em LIMA, Evelyn Furquim Werneck. O espaço cênico de Lina Bo Bardi: uma poética antropológica e surrealista. ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte, v. 9, n. 15, jul.-dez 2007, Uberlândia, Edufu/CNPq/Capes, p. 16-28.

27
Cf. TEIXEIRA COELHO, Netto, José. Op. cit., p. 48 e p. 56.

Veja os desenhos maiores

sobre o autor

Evelyn Furquim Werneck Lima, professora Associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Centro de Letras e Artes. Pesquisadora do CNPq. Pesquisadora da CAPES em estágio pós-doutoral (Paris X-EHESS). Autora, entre outros livros, de Das Vanguardas à tradição (2006), Arquitetura do Espetáculo (2000), Avenida Presidente Vargas: uma drástica cirurgia (1990 e 1995).

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