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architexts ISSN 1809-6298


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O autor traz uma discussão sobre o papel crucial que o tema dos jogos tem ocupado na cultura contemporânea; segundo José, jogo tem se transformado numa metáfora que sintetiza todo o nosso medo que o um mundo venha a ser totalmente dominado pela tecnologia


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CABRAL FILHO, José dos Santos. Horizontes intercambiantes ou a idéia de jogo como redenção. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 101.07, Vitruvius, out. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.101/106>.

A presença de jogos na cultura contemporânea

“A gente ainda está jogando?” Esta frase, simples e banal, ganha uma dimensão aterrorizante na última cena do filme eXistenZ do diretor canadense David Cronenberg: uma personagem perplexa, na iminência de ser assassinada, indaga ao potencial assassino se eles ainda estão dentro do ambiente digital de um jogo de realidade virtual. Esta cena representa bem o papel crucial que o tema dos jogos tem ocupado na cultura contemporânea. Considerando os filmes de ficção científica menos como um exercício de futurologia e mais como um sintoma de nossos medos atuais projetados no futuro, podemos facilmente ver como o jogo tem se transformado numa metáfora que sintetiza todo o nosso medo que o um mundo venha a ser totalmente dominado pela tecnologia. Matrix, eXistenZ e diversos outros filmes trazem em seu cerne este fantasma de que a tecnologia é um instrumento do mal e que a realidade não passa de um jogo high-tech do qual nós não temos consciência.

Na verdade, muito freqüentemente o destino humano tem sido encarado como parte de um ‘jogo divino’, onde Deus estaria brincando com o nosso futuro, articulando a trama de nossas vidas e fazendo a contabilidade de nossas escapulidas ou então atuando todo-poderoso, como que espetando agulhas sobre milhões de bonecos de vodu. A diferença fundamental no imaginário contemporâneo é que este lugar de poder não mais é ocupado por Deus, e sim por seres humanos, ou pior ainda, por máquinas e criaturas desenhadas pelo próprio Homem.

De qualquer forma, não é nenhuma surpresa notar que este atrelamento da idéia de terror ao conceito do jogo coincide exatamente com as recentes transformações ocorridas no universo da tecnologia computacional. O computador se transformou em algo mais do que uma ferramenta ubíqua que serve a qualquer propósito computacional abstrato e adquiriu uma absurda capacidade de descrição gráfica e sinestésica de nossos ambientes, ao mesmo tempo em que começa a reproduzir de forma convincente a sutileza de nossos sentidos corporais.

Esta possibilidade de se atingir uma simulação tecnológica completamente operacional daquilo que agora passamos a designar como ‘mundo real’, por mais remota e improvável que seja, traz à tona mais uma vez o velho dilema do livre arbítrio: até que ponto nossa vida é pré-determinada e qual é o espaço reservado à nossa criatividade dentro do roteiro divino. É neste contexto que o ato de jogar e brincar, atividades culturais arcaicas e aparentemente inocentes, se transformam nesta metáfora tendenciosa, onde o esmaecimento da linha que divide jogo e realidade se transforma numa sinistra ameaça (daí não ser surpresa a correlação freqüente da guerra pós-moderna com os videogames).

A natureza do jogo, seu papel cultural e as quatro categorias de jogos

A questão crucial nesta história é entender porque exatamente o jogo, e não uma outra atividade cultural, foi escolhido como suporte para esta encenação contemporânea da recorrente perplexidade humana diante dos mistérios do mundo natural. Sabemos por certo que existe uma convergência entre jogos e cultura, e que os princípios básicos dos jogos estão na base das nossas instituições sociais, como Huizinga (2) demonstrou. Ele não chega a propor que a cultura humana derive dos jogos, mas afirma que o ato de jogar é um elemento chave no estabelecimento inicial da cultura, e mais ainda, que continua a ser um elemento fundamental no desenvolvimento cultural. No entanto, é o sociólogo francês Roger Caillois (3) quem vai criar uma estrutura específica para abordar jogos e brincadeiras que pode nos ajudar a compreender um pouco mais a questão no contexto de nossa atualidade.

Caillois propõe quatro categorias onde, a princípio, todos os jogos/brincadeiras conhecidos se encaixariam:

jogos de acaso – aqueles onde o resultado final depende mais do “destino” do que propriamente da habilidade dos jogadores (jogos de dados, roletas, cara ou coroa, etc);

jogos de vertigem – aqueles que terminam por impor uma espécie de desordem ou desarranjo aos sentidos do corpo (brincar de roda, pular corda, dançar, etc.);

jogos de competição, onde os adversários são artificialmente considerados iguais no início do jogo e competem para mostrar sua superioridade (xadrez, futebol, golfe, etc.);

e jogos de simulação – aqueles nos quais os jogadores criam um universo imaginário e incorporam um personagem outro que não eles mesmos (teatro, brincar de casinha, etc.).

No entanto, os jogos não se encaixam em apenas uma categoria. Diversos jogos apresentam uma combinação entre diferentes tipos, embora eles sempre contenham um aspecto fundamental que se mostra proeminente. Estas quatro categorias podem facilmente ser estendidas para o campo de jogos computadorizados:

jogos de acaso – instrumentos de apostas são simulados no computador (dados, roletas, etc.);

jogos de vertigem – jogos que fazem uso de metáforas tais como labirinto e estórias de detetive, nos quais o jogador tem que “perseguir” uma tarefa através de caminhos tortuosos. Navegar e surfar são metáforas freqüentes para este tipo de jogo;

jogos de competição – os tradicionais jogos de luta e “atirar para matar”;

jogos de simulação – jogos que fazem uso de metáforas de cenários de desenvolvimento e gerenciamento, onde o jogador pode cultivar e gerenciar o desenvolvimento de um sistema tal qual uma cidade, uma civilização, ou mesmo uma criança como em alguns jogos japoneses.

Uma interpretação psicanalítica destas quatro categorias nos permite ter uma visão ainda mais clara do papel dos jogos na nossa cultura contemporânea. De acordo com a psicanálise, o jogo em geral é uma resposta a motivações oriundas do inconsciente e como tal, podem ter função similar à dos sonhos, atos falhos e ações similares. O psicólogo argentino Abadi (4) propõe uma correlação direta entre algumas categorias psicanalíticas e as categorias de Caillois: jogos de acaso simbolizariam o impulso de morte, já que representam uma aposta contra o destino; jogos de vertigem, por imprimirem aos sentidos um alto grau de desarranjo que culmina num êxtase, funcionam com a simbolização do intercurso sexual; já os jogos de competição seriam relacionados ao complexo de Édipo – o jogo de rivalidades entre pais e filhos, ou mesmo entre irmãos; jogos de simulação refeririam-se à construção da identidade, uma ocasião onde jogadores articulam e dão forma à sua própria identidade (5).

Se por um lado a classificação de Caillois organiza os jogos em uma estrutura mais legível, a leitura psicanalítica dos mesmos vai inseri-los no campo do desejo, quer dizer, no campo da linguagem, ou melhor ainda, para ser mais preciso, no campo da linguagem como o discurso de um sujeito desejante. Porém enquanto habitante da linguagem “o sujeito não é; ele se faz e se desfaz em uma complexa topologia onde o Outro e seu discurso estão incluídos” (6). Assim, com a convergência entre jogos e linguagem, unidos pelo presença subjacente do Outro, nós podemos parafrasear Julia Kristeva e considerar jogos como um “sistema significante no qual, através da demarcação, significação e comunicação, o jogador se faz e se desfaz a si mesmo”; em outras palavras, uma espécie de terreno de ensaio radical onde jogadores podem experimentar uma lúdica reinvenção deles mesmos.

Sob esta ótica, não é nenhuma surpresa que jogos em geral, e mais especificamente jogos de simulação, tenham adquirido tamanha proeminência em nosso “era eletrônica”. Ao que tudo indica, nós estamos passando por uma crise de identidade resultante do confronto com uma nova e estranha tecnologia, a qual é difícil de compreender devido ao fato de seu funcionamento se dar principalmente a um nível microscópico, e que traz à tona conceitos aparentemente paradoxais ou pouco familiares, tais como “realidade virtual” e ciberespaço (um espaço etéreo e quase mítico) (7). E é neste novo território tecnológico, neste paraíso agreste e desconfortável feito de simulações e clones, que a essência mesma da identidade humana, (a questão do livre arbítrio), parece estar sendo impiedosamente subjugada por jogos sem controle, já que nós parecemos incapazes de distinguir entre computadores como o Outro e computadores como um meio para o Outro.

Jogos como cenários para o diálogo entre determinismo e não determinismo

No entanto, a mesma metáfora dos jogos pode transformar este cenário e se tornar ela mesma uma ferramenta com a qual poderemos pensar nosso problema de identidade dentro do cotidiano tecnológico, já que o que está em questão em um jogo é sempre o problema do livre arbítrio. Todos os jogos são essencialmente uma moldura para a incerteza, permitindo a co-existência de determinismo e indeterminismo: jogos de acaso por definição incluem a idéia de indeterminação; jogos de vertigem lidam com a indeterminação através da indução de uma confusão incontrolável dos sentidos; jogos de competição incluem a indeterminação na imprevisibilidade das habilidades dos competidores; jogos de simulação apresentam um tipo particular de “intermitência” entre regra e indeterminação, onde o espaço vazio entre roteiro (regras) e a interpretação (jogo) provê um sentido de singularidade cada vez que se joga ou se performa.

Assim, se jogos e suas características probabilísticas forem colocados a trabalhar a nosso favor, isto poderá representar uma resposta para uma metáfora que há muito vem sendo buscada, uma base teórica que poderia permear a cultura contemporânea, permitindo a manutenção da idéia de criatividade num mundo pré-determinado tecnologicamente. Então a idéia da vida como um jogo, ao invés de inspirar medo, poderia servir como uma forma de escapar da falsa tirania das máquinas centradas em algoritmos lógicos, sem no entanto nos levar a cair no niilismo de uma recusa romântica da verdadeira era da informação. Exatamente por ser o computador baseado em algoritmos lógicos e coerentes, é que ele pode vir a ser o lugar ideal para o delicado e complexo diálogo entre determinismo e indeterminismo (8), especialmente se conjugados ao conceito de jogo. O computador deixaria de ser este monstruoso Outro (ou Big Brother) e poderia simplesmente se transformar em algo como um instrumento ético, ou seja, um meio tecnológico para tocarmos o Outro (9).

Então, talvez nos víssemos compelidos não simplesmente a reconstruir ou reformatar nossa identidade, mas seríamos chamados a experimentar e questionar a própria idéia de identidade. Através da exploração das ambigüidades e dos meandros implícitos no espaço que separa ‘vida’ e ‘jogo’, a idéia de identidade pode vir a ser algo que mais facilmente abarque o desconhecido, baseado no constante desafio da alteridade. Ao deixarmos o dever da coerência lógica ancorado em máquinas não desejantes (como Baudrillard (10) se refere aos computadores), nós nos veríamos liberados para perambular por novos e auspiciosos territórios. Desta forma, personalidade, gênero, raça, cor e outros aspectos que sempre foram associados com uma imagem ideal e imutável, podem se transformar em zonas livres para experimentações. Tomada como um campo aberto, a identidade pode vir a ser apenas uma nuance em uma multiplicidade de horizontes intercambiantes. De qualquer forma, como a liberdade nunca foi um lugar muito fácil de ser habitado, uma questão perturbadora logo vem à tona: será que esta nova possibilidade se mostrará menos aterrorizante que o atual estado de coisas?

notas

1
Tradução do artigo original em inglês, publicado na revista australiana M/C no seguinte endereço <http://www.media-culture.org.au/past_vol_3.html>.

2
HUIZINGA, J. Homo Ludens. Nova York, Roy Publishers, 1950, p. 46.

3
CAILLOIS, Roger. Man, Play, and Games. Nova York, Free Press, 1961.

4
ABADI, Mauricio. “Psychoanalysis of Playing”, in: Psychotherapy and Psychosomatics, n. 15, 1967, p. 85-93.

5
Idem, ibidem.

6
KRISTEVA, Julia. Language – The Unknown: An Initiation into Linguistics. Nova York, Columbia UP, 1989, p. 274.

7
WETHEIM, Margaret. The Pearly Gates of Cyberspace – A History of Space from Dante to the Internet. Londres, Virago, 2000, p. 18.

8
BIJL, Aart. Ourselves and Computers. Londres, Macmillan, 1995.

9
CABRAL FILHO, J. S; SZALAPAJ, P. “Otherness and Computers: Uniform Cyberspaces and Individual Cyberplaces”. The Journal of Design Sciences and Technology. Special Issue: Philosophy of Design and Information Technology, 4.1, 1995, p. 29-43.

10
BAUDRILLARD, Jean. The Transparency of Evil. Londres, Verso, 1993.

sobre o autor

José dos Santos Cabral Filho, arquiteto, mestre e PhD pela School of Architectural Studies - Sheffield University (Inglaterra). Professor Adjunto da Escola de Arquitetura da UFMG. Coordenador do LAGEAR – Laboratório Gráfico para a Experiência Arquitetônica (EAUMFG). Membro fundador do IBPA (Instituto Brasileiro de PerformanceArquitetura).

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