“A paz é o nome que os vencedores dão para o silêncio dos vencidos”
Walter Benjamin
Ao contrário do que sucede com a história dos vencedores, sobre a qual existem fortes vestígios da existência dos acontecimentos, com a história dos perdedores trais rastros são muito fracos. É necessária atenção para que seja possível perceber as suas existências, que praticamente não se manifestam em documentos oficiais, mas se expõem principalmente através de outras fontes de informação, que por sua fragilidade tendem a desaparecer. Walter Benjamin afirma que é tarefa do historiador explorar essas ruínas da história para descobrir as suas potencialidades, para expor aqueles acontecimentos que existiram mas não persistiram; ou aqueles fatos que poderiam ter existido, mas que se frustraram.
Este artigo pretende contar uma história que se apaga. Toma-se como ponto de partida dessa história o projeto arquitetônico e urbanístico realizado por Lina Bo Bardi para a Cooperativa de Camurupim, situada em Propriá (Sergipe), na margem do rio São Francisco (1975-1976). Há muito material gráfico sobre esse projeto, principalmente propostas para a implantação de um núcleo urbano-rural, para a realização da sua infra-estrutura e para a execução das suas casas. Embora existam todos esses documentos relativos à Cooperativa de Camurupim, tal projeto não é realizado. A partir dessa constatação, formulam-se algumas perguntas: Por que é proposto? Quais são as soluções que adota, e por quais motivos? Por que não é executado? Considera-se que tanto a sua proposta de execução quanto a sua derradeira inexecução são significativas: podem evidenciar tais destroços da história apontados por Walter Benjamin.
O projeto de Lina Bo Bardi para a Cooperativa de Camurupim insere-se no contexto dos conflitos rurais ocorridos durante a ditadura (1). Entre meados dos anos 60 e 70, o governo autoritário brasileiro adota uma postura desenvolvimentista que tem muitas implicações para os trabalhadores do campo. No que se refere ao local do projeto de Lina Bo Bardi, tal atitude governamental de prover o país com infra-estruturas e procedimentos “modernos” tem resultados diretos.
O governo realiza grandes empreendimentos para a exploração dos recursos energéticos do país, visando a sua utilização para o desenvolvimento do capitalismo nacional e estrangeiro. Diversas usinas hidrelétricas são construídas no território nacional, e algumas delas na Bahia. Durante os anos 70 são feitas duas usinas no território baiano: Paulo Afonso (1972-1979) e Sobradinho (1973-1979). A execução dessas usinas diz respeito à “imposição de um modelo de desenvolvimento agro-industrial que interioriza o capital no campo e visa universalizar e homogeneizar todo o espaço físico e social em bases de um processo determinado a partir de fora, em função de interesses externos e internos associados, sob o patrocínio direto ou indireto do poder público” (2).
Com a realização dessas hidrelétricas acontece uma mudança significativa no regime natural do rio São Francisco. A produção agrícola nas suas margens é diretamente influenciada por essa alteração: partes do rio tornam-se permanentemente inundadas enquanto outras deixam de receber água nos períodos de cheias. Grande parte da população de trabalhadores rurais do baixo São Francisco é afetada por isso, sobretudo aquela que produz arroz nas suas margens. O governo elabora uma proposta que deve – ao menos supostamente – controlar os fluxos do rio e auxiliar os trabalhadores rurais implicados. O Estado brasileiro assume uma atitude de agente civilizador, que deve trazer a modernização ao interior brasileiro. Tal proposta, entretanto, oculta outras intenções governamentais: controlar a mobilização dos trabalhadores do baixo São Francisco, e impulsionar a expansão do capitalismo na região. E encobre também as reivindicações contrárias a esse processo, executado de um modo autoritário, sem muitas possibilidades de reação.
O projeto de Lina Bo Bardi insere-se nesse plano governamental. Para promover e executar as suas propostas o governo federal institui em 1974 a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco – CODEVASF. A empresa realiza um plano para a região do baixo São Francisco onde está situada a Cooperativa de Camurupim. Para elaborar estudos para viabilização e efetivação dos seus planos a CODEVASF prolonga um contrato já existente como a ELECTROCONSULT – ELC – empresa brasileira que tem como acionária a empresa de mesmo nome italiana (3). A ELC é responsável pela contratação de Lina Bo Bardi.
Mas a Cooperativa de Camurupim implanta-se antes do aparecimento da CODEVASF, através da intervenção da Igreja e da mobilização dos trabalhadores rurais. No início da década de 70 a situação de muitos trabalhadores rurais sergipanos é dramática. No baixo São Francisco a concentração das terras em poder de poucos é intensa, e muitos trabalhadores têm que aceitar cultivá-las como meeiros na produção de arroz, apesar das precárias condições impostas pelos proprietários rurais. Essa circunstância de “gritante injustiça social” (4) faz com que determinados integrantes da Igreja católica se movimentem para combatê-la. Assim a atuação de diversos padres na região aponta para a necessidade de extrair os trabalhadores rurais da exploração à qual estão submetidos. Essa vontade de transformação da realidade rural é que orienta o Padre Domingos Puljiz a estabelecer a Cooperativa de Camurupim. A intenção é conseguir que os trabalhadores consigam a propriedade das suas terras e organizá-los para que atuem através do cooperativismo (5).
Em 1967 é comprada a primeira porção de terra, denominada Camurupim. Nos anos seguintes são obtidas outras terras, sendo que a mais importante denomina-se Cabo Verde (6). O trabalho coletivista é ampliado, possibilitando a fundação da Cooperativa de Camurupim em 1971. A sua área de atuação expande-se em diversos povoados com escassa infra-estrutura urbana, nos quais as condições das habitações são precárias (7). A partir de 1972 a cooperativa utiliza a infra-estrutura existente de Cabo Verde para fixar a sua sede e reunir os associados dispersos nos diversos povoados da região. Instalam-se equipamentos destinados a essa finalidade (edifício administrativo, escolar e religioso), outros para armazenar a produção da Cooperativa, uma fábrica de sementes de arroz e um curral para o gado. (8)
Essa situação não persiste por muito tempo. Em 17 de março de 1975 o presidente Ernesto Geisel assina um decreto que declara de utilidade pública e interesse social terras de várzea do São Francisco, que podem ser desapropriadas através da CODEVASF (9). Assim, através de uma medida autoritária, a CODEVASF assume o controle sobre as terras das várzeas do baixo São Francisco. Paralelamente às desapropriações, o governo planeja um projeto de irrigação para a área, que supostamente deve permitir a devolução da população às suas terras, mas com uma infra-estrutura produtiva conveniente. Assim, muitos trabalhadores rurais têm que aceitar as desapropriações e “modernizações” forçadas pelo governo federal.
Entretanto, tais processos realizados pela CODEVASF não acontecem sem conflitos: “essa intervenção repercutiu diretamente sobre as cooperativas de trabalhadores para as quais a atuação da igreja havia contribuído, tirando-lhes toda a autonomia, além de criar novos empecilhos para a regularização das suas terras.”(10) Inicialmente a Igreja apóia as iniciativas da CODEVASF, mas progressivamente percebe as suas limitações (11).
Atualmente a CODEVASF compreende que “a desapropriação foi considerada necessária para o ordenamento do espaço produtivo” e “uma ação indispensável para a implantação da infra-estrutura física do perímetro agrícola, considerada mais democrática e fator de produção fundamental para embasar a promoção de um processo de desenvolvimento” (12). Entretanto, consegue perceber algumas limitações do seu projeto, de certa forma reconhecendo a sua dimensão autoritária: “porque as ações derivavam de empresas estatais fortes e centralizadoras que não contemplavam o planejamento participativo.” (13) Mas durante a sua intervenção na região, a empresa pública não faz considerações críticas sobre sua atuação.
Existe uma resistência por parte dos integrantes da Cooperativa de Camurupim para aceitar a presença da CODEVASF. Para negociar uma solução para os conflitos, a empresa envia uma comissão ao local, para discutir as condições de desapropriação e integração dos trabalhadores na área do perímetro irrigado. Os representantes da comissão escrevem um relatório que pretende “comprovar a desastrosa situação da Cooperativa, minada por divergências administrativas, desarticulada por inconseqüentes manobras da Igreja, governada por grupos familiares e sufocada pelo peso de intermináveis compromissos financeiros.”(14) Ao longo de todo o texto os autores apontam a incapacidade dos trabalhadores rurais para organizar a Cooperativa e assinalam a influência negativa da Igreja. E completam: “A CODEVASF apareceu com a solução para seus problemas, mas raízes centenárias e o medo ao desconhecido foram mais fortes que a verdade” (15).
Não há como saber exatamente como está a situação da Cooperativa de Camurupim quando a CODEVASF começa a sua intervenção (16). Embora efetivamente a Cooperativa encontre dificuldades de todos os tipos para se estabelecer (secas, limitações de créditos) e aconteçam conflitos internos, prevalece entre os seus participantes a vontade de preservar a sua autonomia. Mas essa lhes é extraída.
A CODEVASF também se manifesta quanto ao estabelecimento de uma infra-estrutura adequada para a fixação dos integrantes da Cooperativa. Já no final de 1976, a comissão exprime que não existe necessidade de concentrar a sua população em núcleos urbanos: “ponderou a comissão que [as vilas existentes eram eletrificadas e] os associados moravam em casas em bom estado. Que melhor era conservá-los onde estavam melhorando as condições locais” (17). Não são fornecidas maiores explicações sobre o assunto. Mas o fato é que não se faz referência nessa ocasião a qualquer projeto de realização de núcleos urbanos, nem à proposta de Lina Bo Bardi.
Entretanto, tal proposta existe. As primeiras referências às datas existentes nos estudos de Lina Bo Bardi indicam que sua intervenção começa pouco antes que a ELC assine o termo aditivo que vincula suas atividades à CODEVASF (18). Embora não haja nenhuma referência direta à arquiteta nos documentos da ELC, é possível encontrar pistas da sua participação tanto no texto quanto no projeto de implantação para um núcleo urbano-rural para a Cooperativa de Camurupim.
A ELC elabora um relatório sobre a viabilidade técnica e econômica do “Projeto de Desenvolvimento Integrado da Cooperativa de Camurupim” (19). Dentro deste projeto indica-se a necessidade de implementar infra-estrutura econômica (rede viária, elétrica, desmatamento e sistematização das terras) e infra-estrutura social (um ou dois centros urbano-rurais) para sua efetivação (20). Entretanto, devido às limitações financeiras e físicas considera-se que somente um núcleo deva ser construído em um primeiro momento. A ELC justifica a necessidade do estabelecimento desses núcleos: “Atualmente as famílias agrícolas e não agrícolas residentes estão dispersas na área ou concentradas em pequenas aldeias. [...] Inúmeros estudos sobre a colonização, indicam que a dispersão espacial dos assentamentos e a multiplicidade de centros de serviços básicos, [tornam] praticamente inviável a prestação de alguns deles. Os mesmos estudos e as experiências obtidas em várias e diversificadas experiências de colonização, indicam que só os assentamentos de tipo concentrado para residência e serviços são viáveis, [...] para que se mantenha uma relação favorável entre os níveis de serviços e distância dos assentamentos” (21).
Lina Bo Bardi é chamada para realizar o projeto de um dos centros urbano-rurais através de uma indicação de um acionista da ELC cuja esposa trabalha no MASP (22). Não é possível estabelecer com precisão como acontecem os seus contatos com os funcionários da ELC ou com os integrantes da Cooperativa de Camurupim (23). Entretanto, através dos seus estudos conseguem-se algumas informações importantes. Entre outubro e novembro de 1975 a arquiteta está em Recife e encontra-se com um representante da ELC, o engenheiro Múcio Pessoa (24). Em novembro do mesmo ano Lina Bo Bardi está em Propriá, mas não se sabe exatamente quanto tempo permanece (25). Esboços realizados em São Paulo no final de 1976 apontam que o projeto ainda está sendo realizado. Entretanto, documentos da ELC assinalam que em 1977 o projeto encerra-se, sem que o centro urbano-rural esteja realizado.
Mas quais são as possíveis motivações que permitem a contratação de Lina Bo Bardi? Há que se considerar que durante os anos 50 e 60 a arquiteta realiza poucos projetos, mas alguns deles têm muita visibilidade, como é o caso do MASP. Entretanto, sua experiência com projetos urbanos é escassa. Pode-se dizer que até os anos 70, sua única aproximação a propostas com esse caráter é o Conjunto de Itamambuca (Ubatuba, 1965), projeto não construído (26). Assim, sua prática com urbanismo não parece ser determinante para a sua seleção para realizar o projeto. Mas há que se assinalar um ponto que pode ser importante para a sua contratação: a sua experiência no nordeste brasileiro, mais especificamente na Bahia. A arquiteta desloca-se para Salvador em 1958 e a partir dessa época estabelece uma intensa atividade na cidade (27). Além do seu trabalho relacionado com a instalação de uma escola e de museus na capital baiana, Lina Bo Bardi ocupa-se da restauração de um antigo complexo agro-industrial do século XVI, destinado a abrigar a Escola de Desenho Industrial e Artesanato e o Museu de Arte Popular. Embora não existam documentos que o confirmem, é possível que essa experiência em Salvador tenha sido levada em consideração pela ELC no momento da sua contratação.
Mas certamente para Lina Bo Bardi o trabalho na Bahia é determinante para sua aceitação da incumbência em Sergipe. Durante o período que a arquiteta está na Bahia, sua atuação conflui com outras forças políticas, sociais e culturais existentes tanto no Estado como no País, que apontam para a superação de tendências conservadoras e para a efetivação de um processo de desenvolvimento nacional (28). No Brasil diversas ações políticas se efetivam através de diferentes grupos sociais, com intervenções na cidade ou no campo. Assim, através da participação de entidades como a União Nacional dos Estudantes – UNE, as Ligas Camponesas, ou a Juventude Agrária Católica – JAC, fomentam-se as discussões sobre a promoção do desenvolvimento do país. O governo federal também tem uma atuação que visa especificamente a redução das desigualdades regionais e o desenvolvimento do nordeste brasileiro. A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE é o órgão governamental responsável pelo gerenciamento desse processo. No trabalho que realiza na Bahia, Lina Bo Bardi também assume seu papel nessa ação, atuando em diversas frentes para a promoção do desenvolvimento do nordeste, agindo a partir das potencialidades disponíveis na região. Neste caso, torna-se evidente que, ao menos no final dos anos 50 e início dos anos 60, Lina Bo Bardi engaja-se nesse processo “desenvolvimentista”, acreditando na sua capacidade de transformação da realidade (29). E certamente a proposta para o núcleo urbano-rural de Camurupim oferece-lhe uma importante possibilidade para expandir sua atuação para outros pontos do nordeste.
Embora não existam informações exatas, a partir dos textos e desenhos (30) existentes é possível acompanhar o desenvolvimento do projeto (31). Mas pergunta-se: como as condições naturais, sociais e econômicas interferem no projeto? É possível detectar através do projeto um posicionamento de Lina Bo Bardi diante da situação da Cooperativa de Camurupim? Por que o projeto não é construído?
Através das suas anotações observa-se que a arquiteta recebe orientações sobre as condições gerais do projeto, sua localização, sua dimensão e sua população prevista (32). Suas notas apontam para a definição conceitual do projeto: relacionar a sua implantação às condições naturais e sociais existentes (33). Todos os textos e desenhos posteriores tentam estabelecer a relação mais proveitosa possível entre esses dois aspectos. O projeto define-se também a partir de uma conexão que se considera importante: a do centro urbano-rural com a casa, do público com o privado.
Por um lado, a arquiteta procura compreender as características naturais do assentamento, sua topografia, sua insolação e sua relação com os fluxos do rio. Sua proposta pretende aceitar essas características. Por outro lado, Lina Bo Bardi também trata de entender como sua intervenção pode preservar ou modificar o caráter social existente, tanto no domínio público quanto no privado. Assim, o processo projetual se estabelece em permanente indagação sobre esses dois domínios e seus possíveis contatos, afetando a concepção do núcleo.
Com relação à definição dos lotes, parte-se de uma dúvida: é efetivamente necessária a separação entre a propriedade rural e a urbana? Para Lina Bo Bardi há uma contradição nessa exclusão, já que considera inevitável que nos lotes urbanos os habitantes preservem as suas atividades rurais. Em um texto indica uma possível solução para o problema, com a execução de lotes urbanos, mas com determinadas características rurais, com local tanto para a casa como para criação de animais e cultivos de subsistência (34). Outros pontos também são importantes para a definição dos lotes, como a distância entre a propriedade e os locais de trabalho e estudo dos seus habitantes, uma vez que a circulação é feita preferencialmente a pé ou de jegue.
Esses pontos manifestam-se em duas soluções exploradas no decorrer do processo projetual. A primeira segue uma conformação de lotes circulares e a segunda de lotes retangulares. Parece prevalecer a última opção, uma vez que é a que consta nos documentos da ELC.
Na série dos esboços circulares, os lotes se adaptam à topografia existente e acomodam tanto a casa como o local para criação e cultivo (35). Para Lina Bo Bardi essa proposta consegue superar a contradição apresentada anteriormente: “Atenção! O lote é urbano (30X100). O lote circular profeta os limites e reconstitui um tipo não urbano” (36). A solução circular também apresenta outra característica importante, constituindo áreas comuns entre os lotes, propiciando maior contato social entre os habitantes. Na série dos desenhos retangulares, os lotes também se ajustam ao terreno, mas não há maiores indicações quanto às suas características. Sua conformação, entretanto, exclui a existência da pequena área de convívio público que se conforma entre quatro lotes circulares.
A definição da circulação é imprecisa nos esquemas circulares, e mais precisa nos retangulares. Em ambos os casos a sua orientação segue a delimitação das curvas do terreno. Entretanto, o estabelecimento dos diferentes fluxos é mais evidente no segundo estudo: aparecem as ruas principais, as ruas secundárias e as ruas de acesso aos lotes com retornos, fixando uma transição entre as vias mais públicas e as mais privadas (37).
Outro ponto fundamental da definição do projeto são os ambientes públicos. Tanto no plano circular como no retangular existe a intenção de estabelecer uma grande praça no cume da colina, concentrando os principais equipamentos públicos do centro urbano-rural. Tal praça situada no topo do terreno estabelece uma importante relação com o contexto do centro urbano-rural: possibilita que seja observada desde as terras baixas e também permite a sua observação (38). Mas entre os planos dos lotes retangulares aparecem também outras praças, que Lina Bo Bardi denomina de “terreiros” (39). São três pracinhas de uso dos habitantes vizinhos (com árvores, bancos e chafarizes) destinadas a promover o convívio social. No projeto entregue à ELC tais pracinhas recebem centros de serviço de primeiro grau, enquanto a praça central tem um centro de serviço de segundo grau – com os principais serviços comunitários e os edifícios necessários para o funcionamento da Cooperativa de Camurupim (40).
Existem condições que determinam a localização do núcleo urbano-rural estabelecidas pela ELC, que são justificadas no texto (41). Entretanto, é importante observar que ao fixar-se uma nova implantação para o centro comunitário, desconsidera-se a existência da sua antiga sede, localizada em Cabo Verde. No decorrer do relatório se faz simplesmente menção às edificações localizadas nessa área, considerando que é possível a manutenção de algumas delas para produção, estocagem e distribuição de produtos agrícolas (42). Entretanto, em nenhum momento, nem nos textos e nem nos desenhos, existe uma referência ao caráter emblemático de Cabo Verde como núcleo da antiga Cooperativa de Camurupim, possuidora de edifícios referenciais para a comunidade, como a sua sede, a capela ou a escola. Essa negação pode indicar também a desvalorização de todo o trabalho desenvolvido anteriormente pelos integrantes da Cooperativa de Camurupim.
Nos esboços de Lina Bo Bardi também não há nenhuma referência à Cabo Verde. Não é possível compreender essa ausência. Tendo-se em conta a trajetória profissional da arquiteta, é improvável que ela desconsidere a existência do núcleo anterior, sabendo da sua importância simbólica (43). Assim, acredita-se que a falta de referências à Cabo Verde possa dever-se mais às condições colocadas pela ELC e CODEVASF do que por opção da arquiteta (44).
O relatório da ELC também explica os conceitos que orientam a realização dos projetos residenciais (45): “1) Construir residências perfeitamente [...] coerentes com as condições climáticas da região, respeitando as tradições e a cultura das habitações locais em particular, e do Nordeste em geral; 2) Baratear dentro dos limites possíveis, o investimento inicial nas residências, naturalmente sem comprometer o conforto, funcionalidade, estabilidade e durabilidade da construção, de maneira que a aquisição da residência não venha a representar para o morador um ônus pesado e de longa duração, que poderia frustrar material e psicologicamente a aspiração ao melhoramento das suas condições de vida e de sua família; 3) Utilizar de maneira mais ampla possível, técnicas e materiais de construção de origem local [...]; 4) Projetar as residências de tipo padronizado” (46).
Assim, a atenção às condições naturais e sociais também deve orientar a concepção das habitações. Através dos estudos de Lina Bo Bardi pode-se observar que se realiza um exame dessas circunstâncias. Para tanto, a arquiteta estabelece uma investigação sobre os hábitos, gostos e anseios dos seus habitantes. No roteiro para a sua pesquisa de campo formula várias perguntas sobre os modos de vida das pessoas, além dos seus gostos e atividades (47).
Embora não existam anotações que apontem respostas para essas perguntas, existem desenhos. Esses representam as informações que Lina Bo Bardi consegue a partir do seu questionário. Em um dos seus esboços a arquiteta sintetiza os resultados das suas pesquisas, apontando as características de uma casa-tipo em Camurupim: varanda, salão-dormitório central, dormitório do casal no centro seguido pela cozinha. Assinala também os materiais que são utilizados recorrentemente: taipa, telha sobre estrutura de galhos, piso de terra batida... E também algumas orientações sobre os hábitos das pessoas, como a existência da mesa na cozinha, do fogão a carvão, de bacia para lavar pratos e panelas e de prateleiras para guardar esses utensílios.
A partir dessas constatações Lina Bo Bardi executa a sua proposta para as habitações, destinadas a uma “família-tipo” (pais, 5 filhos e criança recém-nascida). Existem duas soluções preponderantes e ambas seguem tanto as referências tipológicas existentes como as soluções materiais e técnicas disponíveis.
No processo criativo da casa-tipo A, Lina Bo Bardi modifica a definição da planta do salão-dormitório transformando-a em octogonal. Ao proceder assim, a arquiteta elabora uma solução formal engenhosa para separar o ambiente noturno do diurno, estabelecendo dormitórios perimetrais para as crianças, e uma área de convívio central para a família. Em todos os ambientes da casa é possível notar soluções que se adaptam aos hábitos locais. A arquiteta utiliza inclusive um vocabulário sertanejo para explicar algumas soluções que adota, como quando indica a existência de caritós na casa. Com relação às soluções estruturais e materiais, propõe a utilização tanto dos recursos como das experiências construtivas existentes no local.
Existem algumas alternativas intermediárias entre o tipo A e o tipo B que são explorados no transcorrer do processo projetual, que modificam as características do salão-dormitório. Na casa-tipo B, Lina Bo Bardi utiliza um recurso semelhante da casa-tipo A para dividir os ambientes noturnos e diurnos, mas acaba conformando pequenos dormitórios e preservando o seu formato retangular tradicional. Tal como acontece na casa-tipo A, as técnicas construtivas e os materiais escolhidos são apropriados às condições locais.
Mas existe uma outra tipologia (tipo C) que aparece na proposta e que escapa dos esquemas anteriores. Preserva-se uma área de convívio, mas essa se encontra na parte central da casa, de onde se distribuem todos os cômodos. Os equipamentos existentes nos esboços anteriores parecem que ainda existem, mas não estão devidamente indicados. Um desenho assinala que esse tipo de moradia deve situar-se em áreas alagadiças. Um esquema externo da casa aponta a intenção da arquiteta de elevá-la do solo através de pilares de madeira ancorados em bases de cimento, de inserir plantas nas suas paredes e de vedar as janelas com treliças.
Lina Bo Bardi parece consciente das limitações de recursos dos habitantes de Camurupim, que mesmo retirados forçosamente das suas antigas casas devem enfrentar os custos das suas novas moradias. Assim, pretende proporcionar condições para que as habitações sejam executáveis. Por um lado, sugere que tanto a casa como seu mobiliário sejam realizados através da auto-ajuda e da inter-ajuda. Por outro lado, recomenda que alguns elementos das habitações sejam feitos a partir de esquemas pré-moldados, como paredes, portas e janelas. Tal proposta tem uma relação direta com o procedimento utilizado por Acácio Gil Borsói em Cajueiro Seco (Jaboatão – Pernambuco, 1963), que é conhecido por Lina Bo Bardi (48). Nesse projeto para a transferência de um grupo invasor para outro local da cidade, Borsói pretende utilizar os conhecimentos e a capacidade de trabalho da população local (49). Assim, visa racionalizar o sistema construtivo de pau-a-pique, sistematizando a fabricação das suas partes. Essas medidas pretendem possibilitar que os próprios habitantes utilizem esse recurso para a realização das suas casas, ampliando as suas possibilidades de efetivamente conseguirem um acesso à habitação. Tal projeto é parcialmente executado e destruído durante o regime militar.
Pode-se dizer que as casas de tipo A e tipo B seguem rigorosamente as preposições orientadoras definidas no memorial projetual. Mesmo que essas habitações utilizem uma série de estratégias e elementos utilizados recorrentemente em outros projetos de Lina Bo Bardi (concepções que buscam uma conformação geométrica coerente; que usam varandas circundadas por troncos de madeira, cobertura de sapé; portas e janelas feitas com treliças de madeira; calhas que lançam águas formando chafarizes), o resultado expressa uma adaptação às técnicas, materiais e à linguagem arquitetônica existente no baixo São Francisco.
Já a outra tipologia não manifesta diretamente essas relações com o contexto. Tanto a organização do programa, sua conformação formal e espacial não remetem a essa situação específica, mas a outros projetos de Lina Bo Bardi. É notória a relação que essa tipologia estabelece com projetos como a casa Valéria Cirell (1958), a Casa na praia (1958) e as casas do Conjunto de Itamambuca (1965). Nesses projetos a organização do programa parte sempre de uma mesma base quadrangular, que orienta geometricamente a distribuição de todos os ambientes das casas. Acaba conformando-se uma base reguladora que contribui para o estabelecimento de um esquema formal e espacial recorrente. E assim como acontece nas casas de tipo A e B, na casa de tipo C também aparecem os mesmos elementos mencionados anteriormente. Desta forma, estabelece-se uma memória projetual cuja aplicação independe de uma situação específica.
Nas anotações e esboços de Lina Bo Bardi não existem muitas pistas quanto ao seu posicionamento quanto à passagem da autonomia para a dependência da Cooperativa de Camurupim. Entretanto, aparecem algumas observações que demonstram uma atitude crítica com relação ao projeto governamental.
A primeira crítica está em um texto no qual Lina Bo Bardi examina as características do sistema de desenvolvimento agrícola da cooperativa. E o divide da seguinte maneira: “1)Planejamento agrícola; 2) Infra-estrutura industrial para agricultura [...] 3) Outros serviços necessários à sobrevivência: escolas, serviços, comércio, etc.” E faz uma observação sobre as tais infra-estruturas concedidas pelo governo, que demonstra a sua inquietação quanto ao futuro da cooperativa – e que de certa forma diz respeito também ao seu passado: “Forças em geral fornecidas pelo governo no começo que as retira depois provocando o fracasso da comunidade” (50).
A segunda crítica insere-se em um esquema que assinala a vinculação de Lina Bo Bardi com as aspirações dos integrantes da Cooperativa de Camurupim. Demonstra uma atitude respeitosa da arquiteta diante dos anseios da população. Uma postura que não corresponde exatamente com aquela adota pela ELC, e muito menos com aquela tomada pela CODEVASF. Lina Bo Bardi aborda um tema considerado fundamental pela população e assimilado por ela: “O Dr. Muzio do ELC de Recife acha que a casa não é importante. Pela pesquisa feita é importantíssima. Daria a eles confiança. Eles estão desanimados. Eles pedem como um sonho máximo casa de tijolos. [...] Eles acham a casa muito importante” (51).
Essa atenção à casa também se manifesta no decorrer de toda a atividade profissional de Lina Bo Bardi. A casa sempre é vista como fator fundamental para dignificar a vida humana. E deve estar disponível para toda a população, tanto para pobres quanto para ricos. Entretanto, embora sua maior motivação seja projetar para os primeiros, a arquiteta praticamente só tem a oportunidade de projetar para os segundos (52). Mas expõe o seu descontentamento quanto ao assunto: “Eu tenho certas inibições arquitetônicas: Tenho horror a projetar casas para madames, onde entra aquela conversa insípida em torno da discussão de como vai ser a piscina, as cortinas. [...] Gostaria muito de fazer casas populares. Tenho diversos estudos pessoais nesse sentido, mas por enquanto parece que não há possibilidade” (53).
Embora não se possa saber exatamente o que ocorre com a Cooperativa de Camurupim, sabe-se que o projeto para a sua comunidade urbano-rural nunca é executado. A ELC e a CODEVASF realizam somente parte da proposta de irrigação e mantém os integrantes da nova cooperativa habitando em casas humildes, localizadas em povoados precários e dispersos. Assim, acredita-se que o projeto para a Comunidade de Camurupim não se realize principalmente devido à desorganização e ao desinteresse da CODEVASF. E, provavelmente, devido a uma posição governamental estratégica de manter os integrantes da cooperativa afastados, evitando sua estruturação como uma comunidade integrada e participativa.
Toda a força de transformação estrutural da realidade social e econômica nordestina e brasileira expressa pela organização da Cooperativa de Camurupim é assim detida e devidamente controlada pelas forças da ditadura brasileira. Os únicos rastros desta história de resistência só podem ser encontrados com persistência. E com muita atenção.
Lina Bo Bardi fornece algumas dessas pistas, já que a arquiteta percebe e expõe as suas potencialidades: “Eu estive fazendo um trabalho na beira do rio São Francisco, na comunidade de Camurupim. Eu vi lá coisas maravilhosas, desde o trabalho de trança dos pescadores até certos móveis que são feitos utilizando-se somente sarrafos justapostos, parece um trabalho japonês. Isso não é nem artesanato nem coisa nostálgica, é coisa do povo, é um convite a um grande levantamento nacional para se pesquisar as nossas verdadeiras necessidades” (54).
Considera-se que a execução e a final inexecução do projeto de Lina Bo Bardi representem essa situação de tensão existente na beira do baixo São Francisco. O núcleo urbano-rural proposto pela arquiteta capta as potencialidades transformadoras existentes e também as tentativas de detê-las. O projeto de Lina Bo Bardi representa assim uma tentativa de mediação entre essas forças internas e externas, procurando preservar o vigor da comunidade, adaptando-a às novas circunstâncias.
Mas a tensão detectada por Lina Bo Bardi permanece existente. O projeto para a Cooperativa de Camurupim é abortado, e nenhuma outra solução aos conflitos no campo é implementada. Os antigos cooperativados seguem no abandono e na miséria, calados diante da voz dos vencedores. E provavelmente assim seguirão, principalmente caso não sejam escutados neste momento tão importante na vida do baixo São Francisco: o da proposta para a sua transposição (55).
notas
1
Sobre o assunto, ver LOPES, Eliano. História dos movimentos sociais no campo em Sergipe: uma abordagem preliminar. Brasília, Fundação Joaquim Nabuco. Disponível em: <www.fundaj.gov.br>. Acesso em abril de 2008.
2
BONFIM, Juarez. Movimentos sociais de trabalhadores no Rio São Francisco. Barcelona: Scripta Nova. Disponível em: www.ub.es/geocrit/sn-45-30.htm. Acesso em abril de 2008.
3
Durante a primeira etapa do contrato (1971-1974), embora sejam os anos mais repressivos da ditadura, estabelece-se uma colaboração entre a Cooperativa de Camurupim e determinadas Instituições governamentais. Celebra-se um contrato entre o Governo do Estado de Sergipe através da SUDAP e a ELC para a elaboração de um “Projeto de desenvolvimento rural integrado para a Cooperativa de Camurupim”, que conta com o apoio financeiro da SUDENE. Em 25/11/1975 efetiva-se um termo aditivo de contrato que vincula a ELC às atividades da CODEVASF. O projeto da ELC para a Cooperativa de Camurupim ocorre entre 1974-1977. SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT. Desenvolvimento rural integrado da Cooperativa de Camurupim e da Várzea do Cotinguiba. Aracaju, s/n, p. 1.1.
4
Entrevista com Remy Gauvin, 2008. Alguns religiosos que participam da realização das cooperativas na região foram entrevistados em 2008: Domingos Puljiz, Gerard Olivier e Remy Gauvin. O (ex) padre Domingos Puljiz deixa a Cooperativa de Camurupim aproximadamente no final de 1975 e muda-se para Planaltina DF, onde tem atualmente uma pequena propriedade de produtos cítricos.
5
Segundo os estatutos da Cooperativa, essa deveria “comprar e repassar a terra para os associados em forma de assentamento dirigido, venda em comum da produção cooperada e compra de gêneros e artigos para o abastecimento dos seus associados”. CODEVASF. Projeto de Irrigação Propriá. Avaliação Ex-Post. Brasília, s/n, 1990, p. 65.
6
Terras obtidas pela Cooperativa de Camurupim: 1. “Camurupim” (Propriá – 15/09/1971) – doação da Diocese de Propriá. 2. “Santa Maria” (Neópolis e Propriá – 29/10/1971) – recursos da Miseror. 3. “Cabo Verde” (Propriá - 22/06/1972) – empréstimo do Banco do Brasil. (CODEVASF. Camurupim: levantamento, diagnóstico e preposições. Aracaju, s/n, s/d., p. 68-76). O total de terras pertencentes à Cooperativa de Camurupim é de 1860 ha, englobando as grandes e as pequenas propriedades.
7
A área da atuação da Cooperativa expande-se entre os povoados dos municípios de Propriá, Neópolis e Japoatã. CODEVASF (s/d). Op. cit., p. 03.
8
Entrevista com Remy Gauvin, 2008, s./p.
9
As áreas atingidas pelas desapropriações da CODEVASF são: Propriá, Cotinguiba, Pindoba e Betume.
10
ARRUTI, José Maurício. A produção da alteridade: o toré como código das conversões missionárias e indígenas. Coimbra, VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, p. 10. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel47/JoseArruti.pdf. Acesso em abril de 2008.
11
Arruti argumenta: “o valor das desapropriações foi considerado injusto e mesmo insuficiente para permitir a reconstrução da vida de pessoas deslocadas; houve um aumento instantâneo do desemprego e da migração; [...] a população ribeirinha ficou sem trabalho e sem peixe, base da sua alimentação; o treinamento dos assentados no sistema de irrigação foi falho; problemas de engenharia levaram ao rompimento do dique e a perda de produção dos assentados. [...] O assentamento não atingiu igualmente a todos os assentados porque a CODEVASF estabeleceu requisitos discriminatórios para a concessão das reparações, como por exemplo, o nível de escolaridade dos trabalhadores.” ARRUTI (2004). Op. cit., p.10.
12
CODEVASF (1990). Op. cit., p. 46.
13
Documentos da CODEVASF assinalam que o seu objetivo era “alavancar o desenvolvimento da irrigação. Assumir seu papel de promotora de desenvolvimento no baixo São Francisco, preconizando a distribuição dos seus benefícios à população afetada e gerando, na prática, uma reforma agrária, com uma significativa distribuição de terras, em forma de lotes-familiares.” CODEVASF (1990). Op. cit., p.32 E prossegue, “assim, para atingir o objetivo preconizado de aumento de produtividade, era necessária [a] indução de mudança tecnológica de cultivo, uma atuação intensiva de assistência técnica, um razoável incremento de equipamentos e outras alterações, e, o mais importante, embora não claramente explicitado: era prevista uma necessária mudança no comportamento social do agricultor.” CODEVASF(1990). Op. cit., p.40-42 No que diz respeito às limitações do projeto, afirma: “A desapropriação gerou grande reação dos proprietários e agricultores não proprietários, principalmente porque não foi realizado nenhum trabalho de esclarecimento junto à população objeto, ou seja, junto aos que viriam ser beneficiados pelo projeto, aliando-se a este fato a expectativa dos valores a serem pagos aos desapropriados, e ainda devido ao fato desta representar uma ruptura significativa com a estrutura de comando na região, notadamente econômica. [...] Por ocasião do assentamento dos parceleiros, detectou-se que potencialmente o número de lotes a ser definido era em quantidade inferior ao número de proprietários e ocupantes que existiam anteriormente à atuação da CODEVASF.” CODEVASF (1990). Op. cit., p. 47 E prossegue: “CODEVASF utilizou os poderes a ela conferidos mas não cuidou da questão social dos meeiros que perderam acesso imediato ao meio de produção, muitas vezes seu único meio de subsistência”. CODEVASF (1990). Op. cit., p. 48.
14
CODEVASF (s/d). Op. cit., p. 01.
15
A Comissão é encarregada em 23/11/1976 de formular um relatório para integrar a Cooperativa de Camurupim nos moldes cooperativistas da CODEVASF. No mencionado relatório a comissão aponta: “Sabíamos que a tarefa era gigantesca, pois os reflexos da desapropriação de outras áreas (Betume, etc.), choque de interesses (Igreja, governo, membros da cooperativa), agravamento da situação se faziam sentir no trabalho de campo. O coroamento deste complexo de fatores, não se fez esperar quando a coletividade se prejudicou com a decisão que tomou, de não aceitar a proposição da CODEVASF que era o resumo dos seus anseios” CODEVASF (s/d). Op. cit., p. 09. Existe uma lacuna de informações quanto ao desfecho da intervenção dessa comissão. Porque embora os associados não aceitem as condições propostas pela CODEVASF, o fato é que essa compra as suas terras e executa, ao menos parcialmente, o seu projeto.
16
O padre Domingos Puljiz, responsável pela iniciação dos trabalhos da Cooperativa a abandona aproximadamente no final de 1975. Quando a comissão chega para realizar a sua avaliação, o padre já não está presente. Depoimentos de alguns dos integrantes contrariam a argumentação da CODEVASF quanto ao papel do padre, afirmando sua importância para estruturar a cooperativa e formar suas lideranças, necessárias para a sua organização. Entretanto, entrevista com o Sr. Ananias Santos indica que efetivamente quando a CODEVASF chega e também devido à ausência de Domingos Puljiz, acontecem vários confrontos entre os integrantes da cooperativa quanto à distribuição da sua propriedade, revelando que a mentalidade cooperativista não está fixada. Entrevista com Ananias Santos, 2008, s./p.
17
São realizadas diversas reuniões entre os integrantes da CODEVASF, da ELC e Cooperativa de Camurupim. Entretanto, nunca é mencionado o projeto de Lina Bo Bardi. CODEVASF (s/d). Op. cit., p. 18.
18
18/12/1973 – Contrato entre SUDAP, SUDENE e ELC para elaboração do “Projeto de Desenvolvimento Integrado” da Cooperativa de Camurupim. 25 /11/1975 – Termo aditivo de contrato que vincula a ELC à CODEVASF. 1977 – fim do contrato. O “Projeto de Perímetro Irrigado” assume as seguintes características: parcelas de terra individuais com distribuição que pretende otimizar a atividade produtiva. Assentamento de 380 famílias, 180 cooperados e mais 105 pequenos e médios proprietários englobados na área, compondo 75% do total de residentes existentes.
19
Em dito relatório a ELC avalia os aspectos físicos, sociais e econômicos do local e elabora sua proposta de viabilização.
20
Nota do relatório aponta que “a falta dessas inversões constitui hoje o estrangulamento básico das atividades produtivas da Cooperativa de Camurupim e das áreas vizinhas.” SUDAP/ELC-ELECTROCONSULT. Desenvolvimento rural integrado da Cooperativa de Camurupim e da Várzea do Cotinguiba. Aracaju, s/n, s/d. p. 9.2.
21
SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT. (s/d). Op. cit., p. 9.3.
22
Entrevista com Maurizio Raffaelli, engenheiro da ELC, em 2008, s./p.
23
Segundo informações de Marcelo Suzuki é possível que existam correspondências trocadas entre Lina Bo Bardi e a ELC sobre o projeto para a Cooperativa de Camurupim. Entretanto, durante a realização desta pesquisa, foi impossível consultar os arquivos do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, devido à reforma das suas dependências.
24
Múcio Souto Maior Pessoa, engenheiro agrônomo da ELC responsável pela infra-estrutura dos serviços básicos e assentamentos rurais do “Projeto Rural Integrado da Cooperativa de Camurupim”.
25
Andréa Siqueira afirma que Lina Bo Bardi permanece dois meses em Propriá realizando pesquisas sobre as condições sociais e econômicas dos habitantes da Cooperativa de Camurupim. SIQUEIRA, Andréa Carvalho. Aspiração à realidade na trajetória de Lina Bo Bardi, da Itália ao Brasil. Barcelona, tese doutoral, ETSAB-UCP, 2004, p. 223.
26
Embora Lina Bo Bardi manifeste grande interesse em seus textos sobre assuntos urbanos, a arquiteta tem poucas oportunidades de realizar projetos com esse caráter. Tanto no seu projeto para a reurbanização do Vale do Anhangabaú (São Paulo – 1981) quanto no projeto para a recuperação do Centro Histórico de Salvador (1986), fica evidente que a sua concepção de intervenção urbana parte não só de uma estrutura física determinada (composta por trama urbana e elementos arquitetônicos), mas principalmente da apropriação que os cidadãos fazem dessa base. Essa percepção é fundamental para a determinação do projeto em questão.
27
Lina Bo Bardi chega a Salvador em 1958. Inicialmente vem à cidade convidada por Diógenes Rebouças para proferir conferências e ensinar Filosofia e Teoria da Arquitetura na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia. No ano seguinte é convidada pelo Governo do Estado para dirigir o Museu de Arte da Bahia.
28
Esse assunto é tratado com detalhamento em ROSSETTI, Eduardo P. “Tensão moderno/ popular em Lina Bo Bardi: nexos de arquitetura”. Arquitextos 032, Texto Especial 165. São Paulo, Portal Vitruvius, jan. 2003 <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp165.asp>. Acesso em julho de 2008.
29
Assim como outros arquitetos modernistas, Lina Bo Bardi inicialmente considera que o “progresso” tem potencialidades transformadoras. Mas o Brasil lhe traz novamente a amarga experiência de vivenciar os seus descaminhos... Com o Golpe Militar de 1964 todas as potencialidades nacionais são asfixiadas, assim como a vigorosa esperança da arquiteta. Ao longo dos anos Lina Bo Bardi aprende a driblar esse sentimento, mas sua fé no progresso da humanidade já se encontra irremediavelmente abalada.
30
No relatório da ELC existem alguns itens que se referem diretamente ao centro urbano-rural. Embora não esteja definida a autoria do texto, considera-se provável que tenha sido escrito por Lina Bo Bardi. Em primeiro lugar o texto é um memorial descritivo que corresponde exatamente ao projeto entregue pela arquiteta à ELC e apresentado no relatório. Em segundo lugar, o texto possui vários erros de português e algumas grafias incorretas que remetem ao idioma italiano. Com relação à parte gráfica, existem muitos esboços sobre a Cooperativa de Camurupim no Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi. Entretanto, tais esboços encontram-se desorganizados e a maior parte deles não está datada, dificultando o estabelecimento de uma ordem de realização do projeto.
31
Embora se trate de um projeto não construído, considera-se que seu exame possa trazer importantes contribuições em dois âmbitos distintos. Por um lado, tal como já foi mencionado, a própria impossibilidade da sua realização pode manifestar as ausências de uma história que, caso não seja explorada, tende a ser silenciada. Por outro lado, embora irrealizado, o projeto também pode assinalar presenças. Tanto dos agentes que o vivenciaram, como da própria arquiteta e da sua arquitetura. No último caso, a análise projetual pode apontar a procedimentos específicos ou recorrentes, e auxiliar na compreensão não só dos métodos utilizados pela arquiteta, mas também no entendimento da sua arquitetura.
32
Referências existentes tanto nos textos como nos desenhos apontam que a intenção é que o núcleo urbano-rural receba em um primeiro estágio cerca de 300 famílias agrícolas e cerca de 100 famílias não agrícolas. Prevê-se também uma área para extensões futuras. SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d). Op. cit., p. 9.9-9.10.
33
“O conceito básico para o planejamento deste centro urbano-rural, foi o respeito da natureza da zona evitando por quanto possível modificações drásticas na paisagem e integrando obras e estruturas ao habitante característico da região.” SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d), Op. cit., 9.7.
34
BARDI, Lina Bo. Anotações sobre a Cooperativa de Camurupim. s/n, s/d-a.
35
Os lotes de 3000m2 devem permitir que “cada colono, além da residência, possa desenvolver atividades que empreguem mão-de-obra complementar da família, como horta, pomar doméstico misto, crias de animais de pequeno porte, etc.” SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d), Op. cit., 9.9-9.10.
36
BARDI, Lina. Apud FERRAZ, Marcelo (Org). Lina Bo Bardi. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p. 203.
37
“As áreas principais de acesso estão previstas com passagem para máquinas agrícolas, espaço central para tráfego e duas passagens para pedestres. [...] As estradas secundárias e o anel [...] que rodeiam a área central comunitária, estão previstas com espaço central de tráfego e passagens laterais para pedestres. [...] As ruas de acesso, quando não desembocam nas estradas principais ou secundárias, acabam com pequenos retornos. Estão também previstas pequenas praças, para acesso aos lotes e para encontro e descanso dos moradores limítrofes, com bancas, pequenos chafarizes.” SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d). Op. cit., 9.7-9.8.
38
“O projeto [...] é do tipo terraços e envolvimento com área coletiva principal e dos serviços institucionais, localizada na sumidade da colina. [...] Este tipo de marcação permite vista contínua sobre o vale do rio São Francisco e das lavouras da área do projeto, o que é psicologicamente importante para a comunidade”. SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d). Op.cit., 9.8
39
BARDI, Lina Bo. Anotações sobre a Cooperativa de Camurupim. s/n, s/d-b.
40
O relatório da ELC explica detalhadamente quais são os serviços de apoio à produção que devem estar situados na grande área do anel central: “Estará localizada a sede na Nova Cooperativa, incluindo escritórios, centro social, centro de treinamento de mão-de obra, unidades industriais e de beneficiamento primário, parque de máquinas agrícolas, oficina de manutenção e reparos de máquinas e equipamentos, centro principal de distribuição de materiais e insumos para a produção agrícola, centro principal de estocagem de produção destinadas ao mercado.” [...] “Serão também instalados na mesma área, os principais serviços comunitários, como: escola primária, posto médico e de puericultura, agências de correio e de banco, mercado e lojas para abastecimento da população, quadra de esportes, serviços religiosos, etc.” SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d). Op.cit., 9.10
41
Ver SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d). Op.cit., 9.6-9.7.
42
Ver SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d). Op.cit., 9.10.
43
Tal interpretação baseia-se no constante interesse que a arquiteta demonstra em seus textos e projetos por pré-existências. Mesmo quando Lina Bo Bardi manifesta restrições ao valor arquitetônico e urbanístico de determinadas pré-existências, constantemente existe uma preocupação em preservá-las. Nesses casos, o valor histórico ou antropológico é o que prevalece. No caso do Sesc-Pompéia, por exemplo, a arquiteta aponta a necessidade de preservar seus valores arquitetônicos e históricos, mas também considera imprescindível a manutenção da apropriação humana existente na antiga fábrica de tambores.
44
Caso Lina Bo Bardi tenha efetivamente permanecido dois meses em Propriá é improvável que não tenha conhecido a sede da Cooperativa de Camurupim instalada em Cabo Verde.
45
Também não existem referências quanto a autoria desse texto, mas considera-se que possa ser de Lina Bo Bardi, já que descreve com bastante precisão o seu projeto.
46
SUDAP; ELC-ELECTROCONSULT (s/d). Op. cit., 9.11-9.12.
47
BARDI, Lina Bo. Camurupim. Anotações sobre a Cooperativa de Camurupim. s/n, s/d-c.
48
BARDI, Lina Bo. “Ao limite da casa popular”. Mirante das Artes, n. 2, 1967.
49
Ver BORSÓI, Acácio. Arquitetura como manifesto. Gráfica Santa Marta, Recife, 2006.
50
BARDI, Lina Bo. Camurupim. Anotações sobre a Cooperativa de Camurupim. s/n, s/d-d.
51
Ver: figura 8.
52
Embora Lina Bo Bardi faça outras propostas para habitações populares, praticamente nenhuma delas chega a ser efetivamente realizada e utilizada. A primeira delas, para as Casas Econômicas (1951), é mais uma experimentação plástica, técnica e material que não tem uma aplicação prática; o projeto piloto para o Centro Histórico de Salvador que se realiza na Ladeira da Misericórdia é a proposta mais concretizada, uma vez que chegou a ser construída, mas não devidamente ocupada.
53
BARDI, Lina Bo. Tenho (certas) inibições arquitetônicas... São Paulo: s/n, s/d-e.
54
BARDI, Lina. Apud FERRAZ, Marcelo (Org.). Op. cit., p. 203.
55
Agradeço a Domingos Puljiz, Gerard Olivier e Remy Gauvin pelas entrevistas. Sou grata também a Roberto Vitorino, Reginaldo e Elza. Agradeço principalmente o apoio de Janes Jorge, que também explorou os rastros da Cooperativa de Camurupim.
sobre o autor
Ana Carolina Bierrenbach, arquiteta e urbanista (Mackenzie) e historiadora (USP), mestre (PPGAU-UFBa) e doutora (ETSAB-UPC), atualmente realiza pós-doutorado (PPGAU-UFBa), com apoio da FAPESB.