1. A divisão do trabalho na sociedade e no interior do processo de produção
Karl Marx (1983), ao analisar a evolução social do modo capitalista de produção, demonstra diversas formas e significados que o termo divisão do trabalho assume nas sociedades primitivas e nas capitalistas. Conforme aponta o autor, a divisão do trabalho na primeira difere em grau e substância da divisão do trabalho nesta última. No primeiro caso, a divisão do trabalho surge de forma espontânea no interior das comunidades primitivas:
“A lei que regula a divisão do trabalho na comunidade opera com a força irresistível de uma lei natural. Cada artesão particular, o ferreiro, o oleiro etc. realiza todas as operações pertinentes a seu ofício, de maneira tradicional, mas independente e sem reconhecer autoridade acima dele em sua oficina” (1).
Portanto, a divisão do trabalho nas sociedades primitivas era, em geral, fundada na diferenciação dos ofícios e não na divisão do trabalho dentro da oficina.
Marx cita as corporações de ofício da Idade Média para esclarecer como “a estrutura dos elementos econômicos fundamentais” (2) da organização corporativa impediam “a transformação de um mestre artesão em capitalista” (3). A limitação do número de aprendizes que o mestre artesão tinha que empregar, a venda de mercadorias e não do trabalho como mercadoria e, principalmente, a união indissolúvel entre o trabalhador e os seus meios de produção contribuíram para a defesa da corporação contra o capital mercantil.
Por sua vez, a divisão do trabalho na manufatura é contemporânea ao Capitalismo. Braverman define divisão do trabalho como “o parcelamento dos processos implicados na feitura do produto em numerosas operações executadas por diferentes trabalhadores” (4).
O autor entende que “a divisão do trabalho na produção começa com a análise do processo de trabalho”, ou seja, a divisão do processo de trabalho em seus elementos constituintes. Entretanto, esta primeira forma de parcelamento de trabalho foi e será prática comum “em todos os ramos e ofícios”. Ele esclarece que o mesmo trabalhador adota vários expedientes e recursos para o parcelamento de operações que permitam produzir maiores quantidades de mercadorias “com menos trabalho e maior economia de tempo” (5).
Um segundo passo nesta divisão do trabalho ocorre quando é atribuído a trabalhadores distintos, as diferentes operações. Braverman (1981) cita o conhecido exemplo dado por Adam Smith em seu livro A Riqueza das Nações – a organização parcelada do trabalho na fabricação de alfinetes.
“Um homem estica o arame, outro o retifica e um terceiro o corta; um quarto faz a ponta e um quinto prepara o topo para receber a cabeça; a cabeça exige duas ou três operações distintas: colocá-la é uma função peculiar, branquear os alfinetes é outra e até alinhá-los num papel é coisa separada; e o importante na fabricação de um alfinete é deste modo dividido em cerca de dezoito operações que, em algumas fábricas, são executadas por mãos diferentes, embora em outras o mesmo homem às vezes execute duas ou três delas” (6).
A divisão parcelada do trabalho representa várias vantagens para o capitalista: economia de tempo e aumento de produtividade, bem como aumento do controle gerencial. Entretanto, Braverman aponta outra vantagem que segundo ele merece um destaque maior: a desvalorização da força de trabalho. De acordo com o autor, Charles Babbage foi quem primeiro formulou claramente este princípio. Braverman revela o seu aspecto social:
“O princípio de Babbage é fundamental para a evolução da divisão do trabalho na sociedade capitalista. Ele exprime não um aspecto técnico da divisão do trabalho, mas seu aspecto social. Tanto quanto o trabalho pode ser dissociado, pode ser separado qual mais simples que o todo. Traduzido em termos de mercado, isto significa que a força de trabalho capaz de executar o processo pode ser comprada mais barato como elementos dissociados do que como capacidade integrada num só trabalhador” (7).
Segundo Braverman, a divisão do trabalho capitalista, ao fracionar a força de trabalho em “seus elementos mais simples” (pág. 80), desassocia-se “do conhecimento e preparo especial”. Outro aspecto subjacente na divisão horizontal do trabalho capitalista fica reforçado: a divisão vertical do trabalho (separação entre trabalho intelectual e manual):
“Toda a fase do processo de trabalho é divorciada, tão longe quanto possível, do conhecimento e preparo especial, e reduzida a simples trabalho. Nesse ínterim, as relativamente poucas pessoas para quem se reservam instrução e conhecimento são isentas tanto quanto possível da obrigação de simples trabalho” (8).
Feita esta distinção entre a divisão do trabalho nas sociedades primitivas e no interior do processo de produção capitalista, é necessário voltar à Marx para ressaltar que estas duas formas da divisão do trabalho – vertical e horizontal – se aperfeiçoaram nas sociedades capitalistas, tornando um pressuposto para o desenvolvimento da outra:
“Sendo a produção e a circulação de mercadorias condições fundamentais do modo de produção capitalista, a divisão manufatureira do trabalho, pressupõe que a divisão do trabalho na sociedade tenha atingido certo grau de desenvolvimento. Reciprocamente, a divisão manufatureira do trabalho, reagindo, desenvolve e multiplica a divisão social do trabalho” (9).
Pretende-se, neste trabalho, evidenciar as duas formas de inserção da divisão do trabalho na produção arquitetônica situadas em dois momentos distintos; o que a grosso modo corresponde ao que Marx denomina sociedades econômicas pré-capitalistas e capitalistas. Não há aqui nenhuma pretensão de traçar em detalhes a evolução da divisão do trabalho ao longo das diversas formações históricas, mas sim analisar a produção arquitetônica anterior ao modo capitalista de produção e no interior da sociedade capitalista.
2. A produção arquitetônica anterior ao modo capitalista de produção
Christopher Alexander (1969), em seu livro Ensayo sobre la Syntese da Forma recorre ao modo de produção de edificações de culturas primitivas para exemplificar o que ele define de coerência entre forma e contexto. Na busca pelas origens do “bom ajuste” entre estas duas entidades, Alexander revela as peculiaridades do modo pelo qual as culturas primitivas produzem arquitetura, sem arquiteto. Com relação à divisão do trabalho, várias particularidades ficam evidentes, entre elas, a não divisão do trabalho no interior da produção e, principalmente, o fato do membro da comunidade ser, ao mesmo tempo, o idealizador da forma, o construtor, o usuário e o mantenedor da construção.
Alexander (1969) realiza um exame detalhado da coerência formal das rústicas cabanas erguidas pelos índios africanos Mousgoum. O autor revela como os construtores destas cabanas modelam suas formas de acordo com as exigências do contexto no qual a comunidade indígena vive:
“Seja ou não por coincidência, o fato é que a forma hemisférica da choça proporciona a superfície mais eficaz para a passagem mínima de calor e mantém a interior toleravelmente bem protegido do calor do sol equatorial. Sua forma é mantida por uma série de nervuras verticais de reforço. Além de contribuir para suspender a estrutura principal, estas nervuras atuam também como canaletas para a água das chuvas e ao mesmo tempo são usadas pelo construtor da choça como degraus de acesso a parte superior do exterior durante a construção. Em vez de utilizar um andaime efêmero (a madeira é muito escassa), constrói o andaime como parte da estrutura. Mais além: meses depois, este “andaime” segue ali, quando o proprietário tem que subir para fazer reparações na sua choça. Os Mousgoum não puderam, a diferença de nós, permitir-se o luxo de considerar a manutenção como uma incomodidade que mais vale esquecer até que chegue o momento de chamar o construtor do lugar. Entre eles, a manutenção está nas mesmas mãos do próprio trabalhador da edificação e suas exigências contribuem tanto para modelar a forma como as da construção inicial” (10).
O primeiro aspecto do modo de produção primitivo que se faz evidente é a existência de “poderosas tradições” que resistem energicamente a mudanças. A rigidez da tradição permite de um lado que os construtores trabalhem “dentro de limitações categoricamente estabelecidas” (11). Suas ações são regidas pelas normas implícitas da tradição. Por outro lado, a tradição impede que alterações externas perturbem a integridade da forma estabelecida ao longo de anos de experimentações.
Um segundo aspecto do modo de produção das comunidades primitivas é a ação imediata do trabalhador frente a algum desajuste. O que permite isto é o fato do construtor ser o próprio proprietário. Ele conhece como ninguém suas necessidades e modela a forma para atender às exigências do dia-a-dia.
Alexander (1969) afirma que a tradição rígida e a ação imediata não são fatores contraditórios no interior do processo de produção, mas se completam porque atuam em esferas diferentes. Os rígidos princípios da tradição somente se afirmaram depois de um longo processo de paulatinas e pequenas adaptações da forma às exigências do contexto.
No âmbito da divisão do trabalho, há uma unidade no processo produtivo, pois cada membro da comunidade constrói sua própria morada, modelando a forma de acordo com os princípios implícitos da tradição e suas necessidades cotidianas.
O imediatismo do processo de produção – reação instantânea do construtor/morador diante de problemas de ordem prática – revela a natureza global do processo de trabalho. O membro da comunidade compreende em si todas as atividades de produção: concebe, constrói, mora e mantém sua própria morada. O conhecimento prático das particularidades de cada uma destas atividades qualifica o indivíduo a produzir uma forma mais ajustada ao contexto no qual habita.
A descrição realizada por Alexander (1969) do modo de ensino e apreensão dos ofícios da construção revela a união direta entre a atividade de construir e o ofício. Nas culturas primitivas a aprendizagem ocorre de forma direta. O aprendiz adquire o conhecimento do ofício mediante a experiência obtida durante o curso da ação, ou seja, construindo (12).
Portanto, a aprendizagem baseia-se em problemas que ocorrem no cotidiano de trabalho e não em princípios gerais formulados previamente. Além disto, o conhecimento é transmitido oralmente: “Não há relações escritas nem desenhos arquitetônicos” (13); e a forma é apreendida “mediante pura prática, através da imitação e da correção” (14).
O mesmo processo de aprendizagem observado nas culturas primitivas é encontrado nas corporações de ofício da Idade Média. Nas corporações há uma relação de hierarquia entre mestres e aprendizes que se desfaz quando o processo de aprendizagem chega ao fim. No entanto esta divisão do trabalho em nada se compara com a divisão entre conceber e executar que encontramos nas sociedades capitalistas:
“Um artesão, para dominar o saber e as regras de seu ofício, deve conviver com os mestres durante vários anos. Há divisão de trabalho no início, mas, ao cabo do processo de aprendizagem, eliminam-se as diferenças e a hierarquia. O saber, a forma de realizar o trabalho, através da convivência duradoura com os mestres, não se cristaliza numa hierarquia social fixa, mas é interiorizada por cada um dos artesãos-trabalhadores. A socialização no trabalho artesanal elimina as diferenças naturais (só existentes devido à diferença de idade ou tempo de aprendizagem), enquanto a divisão capitalista do trabalho naturaliza a divisão social entre mandantes e mandados, entre planejadores e executores” (15).
O trabalho de construção das catedrais góticas da Idade Média baseava-se na cooperação de várias corporações de ofícios. As corporações distinguiam-se entre si pela habilidade dos artesãos trabalharem um material em particular: a pedra, ou a madeira ou o vidro, etc. Neste caso a divisão do trabalho esta fundamentada no domínio do conhecimento empírico de cada artesão ao trabalhar determinado material. As diferentes denominações dos mestres artesãos evidenciam a divisão do trabalho baseado na técnica desenvolvida pelas corporações a fim de trabalhar cada material específico de uma construção: “o mestre-cavouqueiro, o mestre-cortador de pedras, o mestre-escultor, o mestre-encorregado da argamassa, o mestre-pedreiro, o mestre-capinteiro, o mestre-ferreiro, o mestre-telhador e o mestre-videiro” (16).
Constata-se que a organização do trabalho nas culturas pré-capitalistas baseia-se no artesanato e na unidade do processo de trabalho. Nilton Vargas (1979) confia a este último ponto o controle que o artesão detém de todo o processo de produção:
“A atividade do artesão pressupõe uma íntima união entre a atividade intelectual e a manual. O artesão conduz todas as fases de produção de um objeto, desde a concepção até sua execução final. Indubitavelmente, o seu trabalho é altamente qualificado. Toda a potencialidade e habilidade, tanto manual, quanto intelectual, são traduzidas na produção de um bem” (17).
De fato esta união entre a atividade intelectual e manual é pressuposto fundamental para o domínio do artesão sobre o processo de trabalho. E após anos de aprendizagem o trabalho do artesão torna-se altamente qualificado. No entanto, o exame cuidadoso do modo de trabalho empregado pelos artesãos permite destacar outras condições sociais e técnicas que contribuíram para a conservação da autonomia do trabalho. A propriedade dos meios de produção, a relação direta do artesão com a atividade de construir e as normas implícitas nas rígidas tradições ou nas corporações de ofício permitiram que o trabalhador obtivesse, através do tempo, controle total sobre o objeto a ser edificado.
Portanto, a prática arquitetônica anterior ao modo de produção capitalista, como em qualquer outro setor produtivo, caracteriza-se pela divisão do trabalho na sociedade em diferentes ofícios e pela união indissolúvel do trabalhador aos meios de produção.
3. A produção arquitetônica no interior do modo capitalista de produção
As origens da divisão do trabalho no interior da produção remontam ao período pré-capitalista de produção. A forma de organização particular deste período é denominada por Marx (1983) de cooperação simples. Pressuposto fundamental para origem do modo capitalista de produção, a cooperação simples caracteriza-se pela “forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes mas conexos” (18). Na visão de Marx, a cooperação simples distingue-se da cooperação nos moldes capitalista de produção principalmente pela forma de trabalho cativo e pela propriedade comum dos meios de produção:
“A cooperação no processo de trabalho que encontramos no início da civilização humana, nos povos caçadores ou, por exemplo na agricultura de comunidades indianas, fundamenta-se na propriedade comum dos meios de produção e na circunstância de o indivíduo isolado estar preso à tribo ou à comunidade como a abelha está presa à colmeia. Distingue-se da cooperação capitalista, sob dois aspectos. O emprego esporádico da cooperação em larga escala no mundo antigo, na Idade Média e nas colônias modernas, baseia-se em relações diretas de domínio e servidão, principalmente a escravatura. A cooperação capitalista, entretanto, pressupõe, de início, o assalariado livre que vende sua força de trabalho ao capital” (19).
Braverman (1981) aponta outros aspectos que caracterizam o modo de trabalho em cooperação simples, entre eles, o trabalho cativo, a mão de obra excedente, a tecnologia estacionária e o predomínio do valor de uso do artefato construído. O autor remete à atividade construtiva da antiguidade, da Idade Média e de algumas comunidades primitivas para ilustrar as origens da divisão do trabalho na produção, e acaba por revelar o pioneirismo deste setor produtivo:
“Esses predecessores, todavia, empreendiam, sob condições escravistas ou outras formas de trabalho cativo, tecnologia estacionária e ausência de necessidade capitalista de expandir cada unidade de capital empregado, e deste modo era marcadamente diferente da administração capitalista. As Pirâmides foram construídas com o trabalho excedente de uma população escrava, sem outro objetivo a não ser a maior glória dos faraós daquela época e seus sucessores. Estradas, aquedutos e canais foram construídos por sua utilidade militar ou civil e não, em geral, para obtenção de lucro” (20).
Algumas condições sociais são apontadas pelos autores para explicar o surgimento precoce do trabalho cooperativo na construção civil. Certamente o trabalho excedente da mão-de-obra escrava favoreceu a construção das gigantescas obras realizadas no mundo antigo. A natureza complexa de certas atividades produtivas, dentre elas a prática construtiva, também exerceu grande influência na origem deste modo produtivo.
“Se o processo de trabalho é complicado, a simples existência de um certo número de cooperadores permite repartir as diferentes operações entre os diferentes trabalhadores, de modo a serem executados simultaneamente, encurtando assim o tempo de trabalho necessário para a conclusão de todas as tarefas” (21).
No que se refere ao mundo antigo, o próprio Marx (22) já havia se encarregado de identificar “a poderosa força da cooperação simples” nas “obras gigantescas realizadas pelos antigos povos asiáticos, pelos egípcios, pelos etruscos etc.”:
“Ocorria antigamente que os estados orientais depois de custearem suas despesas civis e militares dispunham de um excedente de meios de subsistência que podiam utilizar para empreender obras magnificentes ou úteis. Seu comando sobre os braços de quase toda a população não agrícola e o domínio exclusivo do monarca e da classe sacerdotal sobre esse excedente proporcionavam-lhes os meios para construírem aqueles monumentos portentosos com que encheram o país... Para movimentar estátuas colossais e massa enormes cujo transporte causa espanto empregou-se de maneira pródiga e quase exclusivamente trabalho humano. Bastavam o número dos trabalhadores e a concentração de seus esforços. Também vemos possantes recifes de coral surgirem das profundezas do oceano e se ampliarem em ilhas formando terra firme, embora cada indivíduo que concorreu para a formação deles seja ínfimo, frágil e desprezível. Os trabalhadores não agrícolas de uma monarquia asiática tem muito pouco a trazer para as obras além de seus esforços físicos individuais, mas seu número é sua força e o poder de dirigir massas deu origem àquelas obras colossais. Foi a concentração das receitas de que vivem os trabalhadores, numa única mão ou em poucas mãos, que possibilitou esses empreendimentos” (23).
Segundo Marx (1983), a forma característica do processo de produção capitalista surge na manufatura, espécie particular de cooperação. Marx identifica duas formas de origem da manufatura:
"Nasce quando são concentrados numa oficina, sob o comando do mesmo capitalista, trabalhadores de ofícios diversos e independentes, por cujas mãos tem de passar um produto até seu acabamento final. (...)
Mas, a manufatura pode ter origem oposta. O mesmo capital reúne ao mesmo tempo na mesma oficina muitos trabalhadores que fazem a mesma coisa ou a mesma espécie de trabalho” (24).
No âmbito da atividade construtiva, a organização do trabalho se assemelha à primeira forma de manufatura. Ruy Gama (1986) afirma que a construção naval foi a precursora desta primeira forma de manufatura:
“Os estaleiros, como se sabe, eram manufaturas: reuniam no mesmo local numerosos artesãos de mesmo ou de diferentes ofícios, para fazerem obra comum. Admitindo que as condições fossem semelhantes às de outros estaleiros a que me referi, os artesãos nele trabalhavam fora do controle das corporações; assim sendo, os problemas técnicos podiam ser resolvidos em âmbito supraprofissional, definidos e globalizados pelas necessidades da empresa” (25).
O trabalhador livre, ou seja, fora do controle das corporações de ofício, foi um dos pressupostos para a consolidação da manufatura. No entanto, o desenvolvimento da ciência, e sua aplicação à produção, atuou de modo decisivo para a abolição da cooperação simples. Ruy Gama (1986) esclarece o papel da ciência, particularmente da Teoria da Resistência dos Materiais, na resolução “supraprofissional” dos problemas técnicos da produção de uma embarcação:
“Já o mesmo não ocorre com a Teoria da Resistência dos Materiais, fundada por Galileu e apresentada nos Discorsi e Dimonstrazioni Matematiche intorno a Due Nuorve Scienze, escrita na forma de diálogo e publicada pela primeira vez em Paris (1639).
Galileu foi conselheiro naval do arsenal de Veneza, grande estaleiro de construção naval e de máquinas, quando lecionava na Universidade de Pádua. (...)
As investigações de Galileu tinham essa marca: não se referiam aos materiais usados por cada uma das profissões envolvidas mas, teoricamente formuladas, inclusive pelo uso da linguagem matemática, ofereciam propostas de soluções genéricas, aplicáveis aos materiais utilizados nos diversos ofícios: a madeira dos carpinteiros, à pedra dos canteiros e pedreiros, às cordas dos cordoeiros.
Num certo sentido, a teoria de Galileu era antigeométrica. A geometria prática era, como vimos, parte do domínio secreto dos carpinteiros e canteiros, chave para a estereotomia. Mesmo quando a estereotomia se beneficia da teorização iniciada pela geometria projetiva de Desargues, a questão dos materiais é ainda essecialmente geométrica” (26).
Com a ajuda da ciência foi elaborado um conhecimento independente do saber do artesão e a atividade construtiva foi pioneira no emprego dos princípios da ciência voltados para a produção. Leonardo Benevolo (1976) aponta o fato histórico que marcou a origem da denominada “ciência das construções”:
“A ciência das construções, da maneira como é entendida hoje, estuda algumas consequências particulares das leis da mecânica e nasce, pode-se dizer, no momento em que essas leis são formuladas pela primeira vez, no século XVII; Galileu, em 1638, dedica parte de seus diálogos à discussão de problemas de estabilidade” (27).
Benevolo (1976) afirma que a aplicação dos princípios da ciência à produção “produziu uma separação entre engajamento teórico e prático, contribuindo para a desagregação da cultura tradicional...” (28). Bicca recorre à Serge Moscovici para evidenciar a necessidade dos arquitetos distinguirem o trabalho manual do intelectual, reivindicando a ruptura do seu trabalho com o saber-fazer das corporações:
“Em outros termos, esta categoria deve se distinguir também por um critério visível aos olhos da sociedade, critério que assegure o reconhecimento de sua arte como maior ou mesmo superior às outras artes. O único recurso que ela tem, para isto conseguir, é de se colocar como “liberal”, isto é, como tendo integrado na sua habilidade o pensamento teórico, fazer passar o seu trabalho por intelectual” (29).
A necessidade de definir os novos princípios da arquitetura da época e de opô-la às práticas adotadas pelos mestres-de-obras da Idade Média fez surgir tratados que expressavam as ideologias renascentistas. Bicca cita um trecho da obra de Alberti intitulada Tratado da Arquitetura, provavelmente escrita entre os anos de 1443 e 1452, onde pode-se perceber seu pensamento com relação ao trabalho manual:
“Antes de ir mais longe, creio que seria bastante útil dizer a quem reservo o nome de arquiteto; não vos apresentaria, certamente, um carpinteiro, pedindo-vos considerá-lo como igual a um homem profundamente instruído em outras ciências, mesmo que na verdade o homem que trabalhe com suas mãos seja o instrumento do arquiteto. Chamarei arquiteto aquele que, com uma razão e um método maravilhoso e preciso, sabe primeiramente dividir as coisas com seu espírito e inteligência, e em segundo lugar como associar com justeza, no curso do trabalho de construção, todos os materiais que, pelos movimentos dos pesos, pela reunião e a superposição dos corpos, podem servir eficaz e dignamente às necessidades do homem. E na realização dessa tarefa, ele terá necessidade do saber mais apurado e mais refinado” (30).
Sérgio Ferro (1982) destaca o papel do desenho no processo de abolição das corporações de ofício. Uma vez separadas, o desenho técnico realiza a mediação entre as atividades de conceber e executar e surge como ferramenta de representação do objeto concebido. Ferro (1982) demonstra como este recurso é empregado para a exteriorização do conhecimento prático e para a monopolização da informação:
“Da regulamentação da produção à sua organização, da mensuração externa à sistematização das operações – é nesta passagem que o desenho faz-se adotar como instrumento capital, momento em que se torna urgente definir as parcelas da produção com maior rigor. Questão de organização, portanto, que o generaliza como documento do trabalho. O objetivo de seu uso não é nem a qualidade do produto (as normas da corporação eram muito mais rígidas e detalhadas), nem sua constância (a ausência do desenho fazia, se fosse o caso, da cópia direta um método mais fiel). O que constrange a história do desenho é a divisão desigual do trabalho que avança – e seu outro pólo, o acordo a ser imposto aos componentes produzidos pelos trabalhos divididos” (31).
Tal como na Teoria da Resistência dos Materiais, a Geometria Descritiva e o Sistema Métrico Decimal formulam princípios gerais que pretendem ser aplicados em qualquer situação da atividade construtiva (Benévolo, 1976). O caráter genérico dos princípios teóricos é próprio das novas disciplinas. O avanço científico aliado às novas invenções tecnológicas marcou a passagem do mundo tradicional para o moderno. O período da Revolução Industrial correspondeu ao Iluminismo. A separação entre conhecimento teórico e prático promoveu a separação entre Arquitetura e Construção:
“Observa-se, com acuidade, que nesse período a arquitetura começa a destacar-se dos problemas da prática da construção; estes passam às mãos de uma categoria especial de pessoas, os engenheiros, enquanto que os arquitetos, perdido o contato com as exigências concretas da sociedade, refugiam-se em mundo de formas abstratas. Os dois fenômenos, portanto, seguem-se paralelamente, porém sem que se encontrem; pelo contrário, divergem cada vez mais entre si; produz-se, como diz Giedion, ‘a cisão entre a ciência e sua técnica, de um lado, e a arte, do outro, isto é, entre arquitetura e construção’” (32).
Esta divisão do trabalho perpetua até hoje “nas diversas formas econômicas da sociedade” (33). No entanto, ela não está baseada nas diferentes técnicas de se trabalhar os materiais como ocorre nas corporações de ofícios, e sim nas diferentes tecnologias que surgiram da associação da produção à ciência.
Portanto, ao contrário da divisão do trabalho nas sociedades primitivas, a divisão do trabalho nas sociedades capitalistas baseia-se na diferenciação das tecnologias. Ruy Gama (1986) esclarece que a passagem da técnica para a tecnologia não é uma questão de gradação. O autor, ao referir-se a Teoria da Resistência dos Materiais de Galileu, evidencia porque a tecnologia é contemporânea ao Capitalismo:
“Por tudo isso, pelo seu caráter teórico (e portanto generalizante), pelo seu conteúdo supradisciplinar (no sentido das disciplinas dos ofícios) e por sua vinculação histórica com a problemática da produção manufatureira, a Teoria da Resistência dos Materiais de Galileu inaugura, mesmo antes do batizado, uma das faces da tecnologia. Isso não acontece por acaso e nem simples consequência das ideias científicas que vieram do conjunto de acontecimentos chamados de Revolução Científica mas começa a nascer quando a teoria se une à prática em condições muito especiais dessa prática: o trabalho em cooperação nas manufaturas” (34).
Com o advento do modo capitalista de produção, novas práticas de organização do trabalho foram elaboradas. Os princípios das Teorias da Organização do Trabalho, mais especificamente a Teoria Clássica, tiveram como precursores Frederick W. Taylor e Henri Fayol. Os dois fundaram a Escola da Administração Científica que exprime as tentativas de aplicação sistemática da ciência aos problemas crescentes da gestão da produção. Apesar das falsas pretensões da Escola Científica (35) é interessante notar como os seus fundamentos reforçaram a divisão social.
Um dos fundamentos da Escola da Administração Científica é a divisão de trabalho entre a gerência e os trabalhadores. Taylor estabelece como princípio geral que:
“Em quase todas as artes mecânicas, a ciência que estuda a ação dos trabalhadores é tão vasta e complicada que o operário, ainda mais competente, é incapaz de compreender esta ciência, sem a orientação e auxílio de colaboradores e chefes, quer por falta de instrução, quer por capacidade mental insuficiente” (36).
A separação entre trabalho intelectual e trabalho manual já era prática comum no ambiente da organização industrial da época. Atualmente, é fácil verificar a difusão da divisão vertical do trabalho no meio de diversos grupos profissionais: quem concebe a ideia, não é aquele quem executa, ou quem dela se serve.
A consequência deste princípio para o processo de produção arquitetônico reside justamente nesta separação. O arquiteto enquanto a pessoa que concebe o desenho é destituído do conhecimento da prática. Ao contrário dos mestres-artesãos da Idade Média, o arquiteto não mais possui domínio sobre o seu objeto de concepção.
Outro princípio da Administração Científica é a especialização das tarefas, resultado da divisão horizontal do trabalho:
“Ao verificar que o trabalho pode ser melhor executado e de maneira mais econômica através da subdivisão de tarefas, chegou-se à conclusão de que o trabalho de cada pessoa deveria, tanto quanto possível, limitar-se à execução de uma única e simples tarefa predominante” (37).
E sua ideia básica é de que a eficiência do processo produtivo aumenta com a especialização: "quanto mais especializado for um operário, tanto maior será sua eficiência" (38).
Desde sua divulgação, a especialização vem sendo difundida e, sem dúvidas, ela têm suas vantagens: é permitido ao homem se aprofundar no problema. No entanto, quanto mais especializado se torna, menor o controle sobre o seu objeto de trabalho. Os efeitos da divisão do conhecimento somente podem ser amenizados pelo trabalhador coletivo.
Naturalmente, no processo de produção, a especialização resulta em conflitos de valores, consequência das diferentes maneiras que os profissionais relacionam com o objeto de interesse, cada um com seu próprio ponto de vista: "Diferentes participantes podem ter prioridades bastante diversas em qualquer ponto do processo" (39).
Outro princípio ordenado por Taylor é o pré-planejamento do processo de trabalho e têm como objetivo substituir "a improvisação e a atuação empírico-prática (dos operários), pelos métodos baseados em procedimentos científicos. Substitui a improvisação pela ciência, através do planejamento do método" (40).
“O trabalho do operário é completamente planejado pela direção, pelo menos, com um dia de antecedência, e cada homem recebe, na maioria dos casos, instruções escritas completas que minudenciam a tarefa de que é encarregado e também os meios usados para realizá-la. Na tarefa é especificado o que deve ser feito e também como fazê-lo, além do tempo exato concebido para a execução” (41).
“O tempo exato concebido para a execução”, ou as tentativas de impor uma nova disciplina para o trabalho, de modo a adaptá-lo às necessidades do capital, é amplamente abordada por Thompson (42). O historiador relata inúmeras situações de resistência e aceitação do conceito de tempo que prevaleceu na sociedade capitalista industrial nascente; e acaba por revelar que a transição da noção de “tempo orientado pelas tarefas” para a noção de “uso-econômico-do-tempo” não é uma simples exigência das mudanças na técnica de manufatura no processo de trabalho.
A exploração dos trabalhadores pelo capitalista é imposta não somente pelos mecanismos de organização e controle do ritmo de trabalho, mas também é, antes, internalizada pela retórica moral “tempo é dinheiro” proveniente da ética puritana, que desta forma reduz o conceito de ócio a tempo não produtivo.
“Por meio de tudo isso – pela divisão de trabalho, supervisão de trabalho, multas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro, pregações e ensino, supressão das feiras e dos esportes – formaram-se novos hábitos de trabalho e impôs-se uma nova disciplina de tempo. A mudança levou às vezes várias gerações para se concretizar [...], sendo possível duvidar até que ponto foi plenamente realizada: ritmos de trabalho irregulares foram perpetuados (e até institucionalizados) no século atual, especialmente em Londres e nos grandes portos” (43).
Veremos na próxima seção, que no âmbito da produção arquitetônica, o controle do ritmo de tempo de execução das atividades se mantém em bases manufatureiras. Ao contrário do que concebeu Ford para a linha de produção da indústria automobilística, a máquina não determina a disciplina do trabalho, o que confere particularidades a “indústria” da construção civil.
3.1. O estágio atual de evolução técnica e organizacional da construção civil
Segundo Marx (1983), a maquinaria é o próximo estágio da evolução histórica do modo de produção capitalista após a manufatura. A transformação da ferramenta manual em máquina tem como objetivo final produzir mais-valia relativa.
No início da revolução industrial a máquina toma o lugar somente da ferramenta manual, enquanto o homem, ou uma força natural que o substitui, continua exercendo a função de simples força motriz. No entanto, a produção mecanizada esbarra nas imperfeições de uma força motriz caracterizada por produzir movimentos não uniformes e descontínuos. Torna-se necessário, portanto, uma revolução técnica para que se possa obter uma produção independente dos limites da força humana ou natural. Uma força motriz, o motor, é então incorporada à máquina. E esta força motriz permite o funcionamento simultâneo de várias máquinas-ferramenta. Marx (1983) identifica duas formas distintas da máquina trabalhar em conjunto – a cooperação de muitas máquinas da mesma espécie e o sistema de máquinas. O sistema automático é uma forma mais desenvolvida da produção mecanizada, onde a tarefa do homem é apenas a de vigiar o funcionamento de todo o sistema.
Neste processo de substituição do instrumental de trabalho pela maquinaria, a técnica aliada à ciência desempenha papel fundamental e determinante na implantação de um novo modo de organização do trabalho – o trabalho cooperativo com máquinas.
No âmbito da atividade construtiva, Nilton Vargas (1979), ao realizar um estudo sobre a organização do trabalho na indústria da construção habitacional, vai demonstrar porque subsistem formas tão antigas de organização do trabalho nesse subsetor da indústria da construção a partir de uma reflexão sobre a estrutura econômica da sociedade e do nível de consciência e organização da classe trabalhadora. Aqui, nos interessa constatar o caráter manufatureiro da indústria da construção habitacional brasileira:
“Na construção, como vimos anteriormente, a separação entre a concepção e a execução é por demais antiga. Particularmente na construção habitacional, já se encontra também bastante marcada essa separação. Não existe nem a figura do artífice, como outrora, que se incumbia de alguns elementos decorativos ou de trabalhos delicados de cantaria e carpintaria. Pelo contrário, na construção habitacional o trabalho se encontra bastante parcelado. Os trabalhadores são executores de projetos que não sabem ler e onde a tradução é feita na sequência engenheiro-mestre-encarregado; a cada elo de transmissão de ordens o conhecimento vai se restringindo a partes menores da construção. A figura do “oficial” guarda somente uma semelhança terminológica com relação ao uso desta palavra na antiguidade. O seu trabalho encontra-se bastante desqualificado e parcelado, restando-lhe somente o conhecimento de uma pequena parte da obra. As instruções são-lhe dadas para que execute o trabalho exatamente como é determinado pelos seus superiores” (44).
O autor nega o argumento bastante comum de que a construção habitacional permanece em bases artesanais. Apesar de detectar alguns fatores que pertencem ao modo de produção artesanal como a forte presença do trabalho manual (presença marginal da máquina), a transmissão oral do conhecimento e a posse dos instrumentos de trabalho pelos operários. Vargas (1979) destaca outros que revelam a base manufatureira que estrutura o processo de trabalho na construção civil brasileira: separação entre concepção e execução, incorporação de um conhecimento técnico e científico independente do saber operário e especialização das tarefas.
Vargas (1979) finaliza seu raciocínio apontando a especificidade da forma moderna deste tipo de manufatura:
“Realmente, não obstante a ciência se faça presente na atividade de projeto e indícios de produtos industrializados marquem os meios de produção, o trabalho é ainda sedimentado sobre uma base estrutural da manufatura. A máquina ainda não incorporou a ferramenta do oficial de forma a desvencilhar-se das barreiras orgânicas que o trabalho manual impõe. A maioria do equipamento utilizado (guindaste e gruas) substituem a força muscular do operário, mas não suas habilidades” (45).
A não repetitividade do trabalho do operário é fruto de uma outra particularidade da construção civil. Vargas (1979) já havia apontado que “a construção habitacional (e a construção civil de maneira geral) depende da disponibilidade e das características dos terrenos disponíveis” (46). A “situação geográfica” do terreno aliado ao “tratamento que será dado ao solo” dificulta a padronização do trabalho do operário, bem como dos procedimentos de outros atores sociais envolvidos como o processo produtivo. O trabalho dos projetistas é típico: a cada terreno e cliente um novo projeto deve ser desenvolvido.
Em maior ou menor grau, a alta rotatividade de mão de obra não é exclusiva do trabalho do operário. Toda a equipe de produção, formada por engenheiros, mestre-de-obras, encarregados e operários, é renovada durante a obra e desfeita ao final desta. O registro de experiências anteriores fica comprometido e consequentemente os mesmos erros são cometidos na construção civil (47).
4. Consequências da separação entre concepção e execução para a produção arquitetônica atual
As consequências da divisão do trabalho para a produção arquitetônica atual residem justamente na separação: quem concebe a edificação, não é aquele quem executa e muito menos aquele quem usufrui e/ou mantém o artefato produzido. Outros aspectos da divisão do trabalho nas sociedades capitalistas ficam evidentes na produção arquitetônica:
a) Separação entre conhecimento teórico e saber prático.
A associação dos princípios da ciência à produção nos moldes capitalista promoveu o distanciamento entre o conhecimento teórico e o saber prático. No âmbito da produção arquitetônica esta separação se expressa pelo fato do projetista, enquanto o idealizador do objeto, ser parcialmente destituído do saber prático de execução, manutenção e uso do ambiente construído.
b) Separação temporal entre concepção, execução, uso e manutenção.
A separação temporal entre estas fases do processo de produção implica em uma restrição do conhecimento do projetista com relação aos condicionantes de uma situação futura. A atividade de projetar, neste sentido, é uma atividade de previsão. Os projetistas recorrem a várias estratégias na tentativa de aproximarem desta situação futura. Os projetistas de instalações, por exemplo, empregam coeficientes de segurança para preverem demandas futuras no consumo de determinado insumo. Os arquitetos simulam situações futuras no uso do espaço construído, com ou sem os recursos da informática.
No entanto, iremos perceber que a antecipação de situações futuras é necessidade primordial para o processo de projeto que se desenvolve em um meio dinâmico e incerto. Aqui, nos interessa compreender como a forma social distancia ainda mais as fases do processo de produção de um artefato qualquer. Já foi dito que o modo capitalista de produção atribui a indivíduos e grupos sociais distintos etapas diferentes do processo de produção. Veremos que esta capacidade de antecipação do projeto fica limitada frente às exigências e aos interesses de diferentes atores sociais envolvidos com o processo de produção.
c) Distância espacial entre concepção e execução.
Já foi visto que a construção de uma catedral gótica é resultado de um trabalho cooperativo, onde diferentes corporações de ofício trabalham juntas em um mesmo lugar. Presume-se que o conhecimento limitado de uma corporação com relação às particularidades das técnicas e materiais empregados por outra era remediado pelo contato imediato entre elas no canteiro de obras. Ou seja, verificado algum problema de incompatibilidade entre materiais, por exemplo, a questão era resolvida diretamente entre os artesãos.
Nas sociedades capitalistas e em alguns setores produtivos, onde indivíduos ou grupos sociais desempenham etapas distintas do processo de produção, a distância entre concepção e execução adquire uma nova característica: a separação espacial. Os profissionais concebem o artefato longe do local onde este é executado. Bicca (1984) esclarece as diferenças entre os dois modos de organização do trabalho e revela a distância espacial no âmbito da produção arquitetônica:
“A organização do trabalho corporativo, ligado à produção arquitetônica, não criou, nem mesmo exigiu, um instrumento (o projeto no caso) que pudesse substituir a presença direta do mestre no canteiro de obras, razão pela qual esta se fazia necessária e indispensável; o que explica, em muito, o fato de a loggia (sala no próprio canteiro) ser o local de trabalho privilegiado do mestre, sendo aí que muitas vezes ele desenhava e discutia os problemas com os companheiros e aprendizes do mesmo ofício, enquanto que mais tarde o arquiteto terá como seu local de trabalho o ateliê ou escritório, invariavelmente fora do canteiro. A uma nova organização/divisão do trabalho correspondeu, como sempre ocorre, uma nova organização/divisão dos espaços de trabalho” (48).
d) Distância temporal entre concepção e execução.
e) Especialização
Com relação à divisão horizontal do trabalho, sabe-se que a primeira cisão ocorreu entre a arquitetura e a construção. O arquiteto e o engenheiro foram as duas primeiras profissões que surgiram desta divisão. Atualmente verifica-se uma grande quantidade de especialistas atuando no processo de produção arquitetônico: arquitetos projetistas, arquitetos urbanistas, engenheiro calculista, engenheiro hidráulico, engenheiro elétrico, etc. Essa contínua divisão horizontal do trabalho permitiu o desenvolvimento do conhecimento especializado em determinadas tecnologias. Mas, por outro lado, este conhecimento limitou a visão de todo o processo de produção. Essa “desqualificação” do trabalho aqui deve ser entendida como uma perda de compreensão do todo. Na produção arquitetônica, o conhecimento especializado é revelado principalmente pela necessidade de se realizar a denominada “compatibilização” de projetos.
f) Desqualificação do trabalho.
A desqualificação do trabalhador no sentido vertical advém da separação entre trabalho intelectual e manual. No âmbito da atividade construtiva, Paulo Bicca (1984) afirma que concepção (“construir” na cabeça) e construção (mudança de formas nas matérias naturais) são dois momentos da produção arquitetônica que têm como suporte “a prática de indivíduos separados e distintos pelos trabalhos que realizam: o arquiteto se dedica à concepção e o trabalhador à construção” (49). O autor recorre ao canteiro de obras para validar sua afirmação, evidenciando assim a divisão vertical entre trabalho intelectual e manual no interior da produção arquitetônica.
- Incapacidade de prever situações futuras:
- Desconhecimento das particularidades de novas tecnologias:
f) Perda do controle sobre o processo de produção.
Antes da separação social do trabalho, o artesão detinha um controle total sobre o processo de produção. Já foi demonstrado que este controle era obtido através do saber prático adquirido em anos de aprendizagem nas corporações de ofício. Além disto, o artesão desempenhava todas as funções necessárias para a produção de uma edificação: concepção, execução, uso e manutenção.
Com o advento do capitalismo, o trabalhador perde este controle sobre o processo de trabalho. As funções atribuídas a diferentes trabalhadores e a consequente especialização advinda desta separação contribuíram para a perda de autonomia sobre o processo de trabalho.
Uma vez dividido, o trabalho torna-se necessariamente coletivo. Braverman (1981), ao discutir as origens da gerência, afirma que o trabalho cooperativo forneceu as condições necessárias para o surgimento de práticas administrativas, tais como a coordenação e a direção. Segundo o autor, o trabalho coletivo e a sua complexidade exigiram a implantação da função de gerência. O autor lembra que a prática do controle de numerosos trabalhadores antecede o modo capitalista de gerência. Entretanto, as relações de trabalho diferem em muito no modo primitivo e capitalista. No modo primitivo, a relação de subordinação era determinada pelo trabalho cativo. No modo capitalista, o “contrato de trabalho livre” possibilitou uma nova relação social entre o comprador e o vendedor da força de trabalho.
No início do capitalismo industrial prevaleciam os sistemas de subcontratação e produção domiciliar. Em pouco tempo esses sistemas não se mostraram apropriados devido aos constantes problemas de irregularidade da produção. Eles foram substituídos pelo trabalho assalariado e, assim, o modo especificamente capitalista de gerência tornou-se mais difundido. Esta nova relação de trabalho pressupõe “trabalhadores reunidos sob o mesmo teto” com o objetivo primeiro de impor-lhes “horas regulares de trabalho” (50). A forma de trabalho assalariado aliada à centralização do emprego, possibilitou que a gerência primitiva assumisse formas mais rígidas de controle:
“O capitalista, porém, lidando com o trabalho assalariado, que representa um custo para toda hora não produtiva, numa sequência de tecnologia rapidamente revolucionadora, para a qual seus próprios esforços necessariamente, contribuíram, e espicaçado pela necessidade de exibir um excedente e acumular capital, ensejou uma arte inteiramente nova de administrar, que mesmo em suas primitivas manifestações era muito mais completa, autoconsciente, esmerada e calculista do que a anterior” (51).
No âmbito da produção arquitetônica Sérgio Ferro (1979) relata os métodos coercitivos empregados no processo de habituação do trabalhador às novas condições de trabalho no setor da construção civil. O autor relata os recursos utilizados por Brunelleschi na construção da cúpula de Santa Maria dei Fiori, na Florença do séc. XV:
“Assim, diante de uma greve por aumento de salários (já extremamente diversificados), (Brunelleschi) importa operários não florentinos, conseguindo quebrá-la. E só aceita novamente os primeiros por salários inferiores aos que ocasionaram a greve (em outros termos, é feroz no zelo pela mais-valia absoluta). Ou ainda; preocupado com a perda de tempo e energia, instala no alto da cúpula uma cantina (“fordizada”, na concepção de Gramsci) evitando que os operários desçam para comer, beber, se reunir e conversar (reconhecemos a meta: a mais-valia relativa)” (52).
Paulo Bicca (1984) relaciona a origem da “arquitetura com arquiteto” com a divisão social do trabalho no interior do processo de produção arquitetônica. Para o autor, este grupo particular de assalariados, representantes das classes dominantes, isentam seus superiores, já liberados do trabalho manual, também das tarefas de controle direto da produção. No âmbito da produção arquitetônica, “Brunelleschi é um exemplo marcante deste tipo de intelectual criado pelo capitalismo nascente” (53). O controle da produção arquitetônica será confiado exclusivamente ao arquiteto. Este, separado socialmente dos trabalhadores manuais, faz emergir um novo processo de trabalho no canteiro de obras:
“Ele (o arquiteto) racionaliza as técnicas e os meios de produção da construção, quebra a continuidade da organização coletiva do canteiro tradicional e faz emergir impiedosamente o modelo atual da divisão do trabalho social” (54).
Os aspectos relacionados anteriormente são inerentes ao processo de produção arquitetônico socialmente dividido. Este tipo peculiar de manufatura, encontrada na organização da produção construtiva, promove o surgimento de peculiaridades que, obviamente, distinguem a atividade construtiva atual de outros setores produtivos. Os recursos organizacionais e técnicos empregados na prática ou propostos pela teoria reduzem as incompatibilidades, diferenças e conflitos advindos da separação social do trabalho, mas são incapazes de anulá-las.
notas
[Texto adaptado da dissertação de mestrado O processo de produção de um empreendimento imobiliário: uma discussão sobre a regulação da distância entre concepção e execução, sob orientação do professor Francisco de Paula Antunes Lima (Escola de Engenharia, UFMG, 2000)]
1
MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Abril Cultural, 1983. Vol. I/1 e I/2, p. 410.
2
Idem
3
Idem, p.411.
4
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 72.
5
Idem, p. 74.
6
SMITH, Adam. Apud BRAVERMAN, Harry. Op. cit., p. 75.
7
BRAVERMAN, Harry. Op. cit., p. 79.
8
Idem, p. 80.
9
MARX, Karl. Op. cit., p. 404-405.
10
ALEXANDER, Christopher. Ensayo sobre la síntesis de la forma. Buenos Aires, Ediciones Infinito, 1969, p. 36-37.
11
Idem, p. 43.
12
Idem, p. 38.
13
Idem
14
Idem, p. 41
15
LIMA, Francisco P. A. “Noções de organização do trabalho” In: OLIVEIRA, Chrysóstomo Rocha de (org.). Manual Prático de LER. Belo Horizonte, Editora Health, 1998. p. 174.
16
MACAULAY, David. Construção de uma Catedral. São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 13,
17
VARGAS, Nilton. Organização do trabalho e capital: um estudo da construção habitacional. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, COPPE, 1979. p. 35.
18
MARX, Karl. Op. cit., p. 374.
19
Idem, p. 383.
20
BRAVERMAN, Harry. Op. cit., p. 65.
21
MARX, Karl. Op. cit., p. 376.
22
Idem, p. 382.
23
JONES R. Apud MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, p. 382-383.
24
MARX, Karl. Op. cit., p. 386-388.
25
GAMA, Ruy. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo, Nobel/Editora da Universidade de São Paulo, 1986, p. 196.
26
Idem, p. 194-195.
27
BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo, Perspecitva, 1976, p. 37.
28
Idem, p. 37.
29
Moscovici, Serge. Apud BICCA, Paulo. O arquiteto: a máscara e a face. São Paulo, Projeto Editores Associados, 1984, p. 74.
30
GALLIMARD, Apud Bicca, Paulo, Op. cit., p. 74-75.
31
FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. São Paulo, São Paulo, Projeto Editores Associados, 1979, p. 63.
32
BENEVOLO, Leonardo. Op. cit., p. 62.
33
MARX, Karl. Op. cit., p. 422.
34
GAMA, Ruy. Op. cit., p. 197.
35
Braverman, ao destacar o importante papel que a gerência científica desempenha na organização do trabalho capitalista das modernas instituições, desfaz alguns entendimentos do senso comum sobre este movimento. O primeiro deles refere-se a noção de que o taylorismo pertence “à cadeia de desenvolvimento da tecnologia”. Braverman lembra que este movimento restringe-se ao desenvolvimento dos métodos e organização do trabalho qualquer que seja a natureza da tecnologia empregada. Um segundo ponto a ser destacado é a ideia de que Taylor propõe algo inteiramente novo na maneira de administrar uma instituição capitalista. Na verdade, o mérito de Taylor reside no fato de sintetizar ideias comumente praticadas no mundo da produção. Outra noção a ser desfeita, é o pretenso conceito de ciência dado a este movimento. Braverman explica que o objeto de investigação não é “o trabalho em geral, mas a adaptação do trabalho às necessidades do capital” (BRAVERMAN, Harry. Op. cit., p. 83).
36
TAYLOR, Frederick W. Princípios da Administração Científica. São Paulo, Atlas, 1970, p. 34.
37
CHIAVENATO, Idalberto. Teoria geral da administração. São Paulo, Mc Graw-Hill, 1987, p. 72.
38
Idem, p. 72.
39
BUCCIARELLI, Louis L. An ethnographic perspective on engineering design. Design Studies, 1988, p. 160.
40
CHIAVENATO, Idalberto. Op. cit., p. 78
41
Idem, p. 78.
42
THOMPSON, Edward Palmer. “O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo industrial” In: SILVA, Tomaz T. da (org.). Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
43
Idem, p. 298-297.
44
VARGAS, Nilton. Op. cit., p. 85.
45
Idem, p. 90.
46
Idem, p. 99.
47
RIBEIRO, Rodrigo M. O formal e o real: um estudo sobre a qualidade na construção civil. Tese de mestrado. Curso de Pós-Graduação em Engenharia de Produção. Belo Horizonte, UFMG, 1998.
48
BICCA, Paulo. Op. cit., p. 107.
49
Idem, p. 17.
50
Braverman, Harry. Op. cit., p. 66.
51
Idem, p. 66.
52
Ferro, Sérgio. Op. cit., p. 104. O autor comete um equívoco quanto à denominação dos recursos empregados por Brunelleschi, pois os dois se referem à mais-valia absoluta.
53
BICCA, Paulo. Op. cit., p. 73.
54
TAFURI, Manfredo, Apud Bicca, Paulo. Op. cit., p. 73.
sobre a autora
Viviane Zerlotini da Silva é engenheira arquiteta (UFMG). Mestre em engenharia de produção, área de concentração Dinâmicas dos Sistemas de Produção (UFMG). Professora Assistente do Departamento de Sistemas de Utilização da Escola de Design – UEMG. Pesquisadora do Centro de Design de Ambientes – Escola de Design – UEMG. Desenvolve pesquisas em edificações de interesse social. Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (UFMG), área de concentração Teoria, Produção e Experiência do Espaço