“Digo aos jovens arquitetos: tenham a sensibilidade de fazer com que seus edifícios tenham alguma coisa a dizer” (Vilanova Artigas) (1)
Projetar o século XX
Nascido em 1929 e formado em 1953, o tempo da vida do arquiteto coincide com algumas das principais inflexões que definiram a configuração sociocultural do país ao longo do século XX. O início de sua carreira profissional se confunde com a mudança de perspectivas que marca a passagem do otimismo desenvolvimentista à constatação da realidade de um país desigual, submerso em um processo descontrolado de urbanização e explosão demográfica. A divisão histórica que ilustra o câmbio, materializado na aparição de Brasília, influencia especialmente a construção da mirada crítica de um arquiteto que participa desde o princípio desta maneira renovada de entender o Brasil e a sua arquitetura, representada pelo surgimento da chamada Escola Paulista. Em suma, Fábio Penteado experimenta desde dentro a vultosa transformação de um país que abandona o campo em direção às cidades, que deixa atrás o “arcaísmo” rural e elege a “modernidade” industrial, que traslada seu centro nevrálgico do Rio de Janeiro a São Paulo.
O problema da expansão demográfica, observado desde o século XIX, atinge tal agudeza no século XX que controlá-lo passa a ser algo senão impossível, no mínimo improvável (2). Dentre a sorte de consequências desse fenômeno, além das questões de acomodação física e do atendimento às necessidades básicas desse novo contingente humano, somaram-se as preocupações com o impacto sociocultural que tais transformações traziam consigo, “Porque esa vertiginosidad significa que han sido proyectados a bocanadas sobre la historia montones y montones de hombres en ritmo tan acelerado que no era fácil saturarlos de la cultura tradicional” (3). É relevante atentar para os resultados desse evento ao redor do mundo, visivelmente mais perverso nos países e cidades do denominado Terceiro Mundo.
A obra do arquiteto tem na metrópole paulistana sua área de atuação e seu habitat natural, sendo a realidade desta cidade “palimpsesto” (4) o que potencializa sua significação. O crescimento tentacular, fruto do binômio industrialização/êxodo rural, converteu rapidamente uma cidade provinciana em centro do poder econômico e cultural do país (5), configurou um entramado urbano irracional e desprovido de espaços públicos significativos. A velocidade urbanizadora, associada às necessidades emergenciais dos novos habitantes, relegou os espaços urbanos de uso comum a um segundo plano na construção da cidade.
“Talvez, o maior papel dos arquitetos nesta nossa época, seja construir os novos espaços de encontro e convivência para as multidões das grandes cidades. De repente, o desenho dos edifícios quase perde o sentido, se o edifício, isolado na paisagem urbana, não comunicar a participação de todas as pessoas naquilo que possa representar o viver melhor. E, certamente, os ideais de bem estar e a paz terão de ser conquistados por toda a gente, também com a força e o poder da arte e da beleza” (6).
A multidão conformadora da realidade humana da cidade, subjugada a condições que impedem sua atuação como agente de mudanças, não logra alçar-se a uma posição acorde com sua importância na constituição da metrópole. Em sua obra, os espaços e as construções da cidade passam por um redimensionamento, a fim de acomodar fisicamente as massas humanas, respeitando sua dimensão individual.
A realidade é a matéria prima com a qual o arquiteto constrói sua proposta de arquitetura de transformação. A observação da cidade e de seus edifícios, e de como se estabelece a relação com seus habitantes, é um elemento fundamental na definição do projeto arquitetônico. O caos urbano, a velocidade dos automóveis e a vida acelerada das metrópoles modernas, aliados à inseguridade das ruas, criaram um novo ambiente urbano pouco favorável à vida comunitária nos espaços públicos, com o surgimento de lugares que se abrem mais para si mesmos e menos para a cidade. Ademais, o desequilíbrio entre os “incluídos” e os “excluídos” do sistema se reflete na constituição urbana, onde a existência de espaços públicos é escassa, seu uso tímido e inadequado, e por isso mesmo, em muitas ocasiões, marginal. Contra a socialização invertida que a metrópole impõe, os espaços sugeridos pelo arquiteto buscam emancipar o indivíduo através da desalienação e de sua afirmação coletiva (7).
A simplicidade, a diversidade de usos e a plena utilização dos edifícios é uma verdadeira obsessão de Penteado, calcada na realidade metropolitana de carência generalizada de serviços e espaços públicos, da falta de referências urbanas e da escassez de recursos destinados a este tipo de equipamento. As propostas para obras destinadas a instituições culturais demonstram essa preocupação de maneira clara, dada a dimensão de sua responsabilidade na formação de um povo livre e independente. Em um país onde uma formação intelectual ampla é acessível a muito poucos, a arquitetura deve assumir para si a tarefa de atrair a massa e familiarizá-la aos aspectos da arte e da ilustração, rompendo a barreira psicológica que caricaturiza a cultura como algo inatingível e restrito.
Arte, cultura e sociedade: (re) pensar a atividade teatral
A celebração da vida comunitária está na base mesma do surgimento do teatro. Na Grécia e Roma antigas a atividade teatral possuía um importante papel na esfera cotidiana, assumindo um caráter de manifestação cultural popular extremamente influente no contexto social. Não é até princípios do século XX, com a chegada das vanguardas, que se resgata a dimensão popular da arte teatral, agora impregnada de conteúdo político-ideológico. Os renovadores Erwin Piscator (1893-1966), Bertold Brecht (1898-1956) e Vladimir Maiakovski (1893-1930), em seu afã de doutrinar as massas proletárias, propõem os ambientes cotidianos – ruas, oficinas, fábricas, cervejarias – como cenários. Esta concepção perde terreno na Europa do pós Segunda Guerra, mas continua presente na América Latina, no Brasil especificamente no trabalho de Guarnieri e Boal à frente do Teatro de Arena de São Paulo, “um teatro pobre, muito próximo do público, e que apresentava problemas político-sociais” (8).
O desejo de romper o isolacionismo e buscar outras maneiras de se comunicar com um público mais amplo resgata o valor da cultura popular, e na busca de levar a arte ao povo surgem grupos como o MCP (Movimento de Cultura Popular), no Recife de princípios dos anos 60 e, logo após, o CPC (Centro de Cultura Popular), no Rio. Esses grupos se baseavam eminentemente em espetáculos teatrais e de dança, lugares onde “A popularidade de nossa arte consiste, por isso, em seu poder de popularizar não a obra ou o artista que a produz, mas o indivíduo que a recebe e em torná-lo, por fim, o autor politizado da polis” (9). Essa nova maneira de entender a arte é compartilhada pela arquitetura que também atualiza o conteúdo social de sua ação, principalmente através do grupo que surge em São Paulo a partir de mediados dos anos 50.
Porém, a arte teatral é, conforme interpreta Ortega y Gasset, antes de tudo “jogo”, algo que se situa fora dos ofícios “sérios” do homem, uma maneira de evadir-se de uma realidade que o escraviza (10). Essa relação ambivalente entre destino funcional e recreativo se soluciona na intenção de construir uma arte onde se projeta uma realidade não existente, o que não deixa de ser fantasia nem de ser projeto. O ócio é um direito humano que ao ser tantas vezes negado contribui para a distorção relacional e a histeria social características das metrópoles modernas. A obra de Fábio Penteado requer a função da cultura na sociedade e reconhece o direito ao ócio como um componente social que pode ser dirigido à construção de valores positivos para a coletividade.
Culturalizar o cotidiano
O Teatro de Piracicaba é representativo do surgimento de uma atitude em relação à concepção arquitetônica que marca e caracteriza o fazer projetual de Penteado durante toda sua trajetória. Nascida juntamente com algumas outras obras dos inícios da carreira profissional de Penteado, como o Hotel Praia do Peró, de 1958 e o Fórum de Araras, de 1960, esta atitude fundamenta o ato projetivo na análise relacional do indivíduo com a cidade, do usuário com o edifício, geralmente estabelecida em termos de enfrentamento e violência.
A imponência do Teatro Municipal, jóia e símbolo do neoclássico paulistano, desautoriza a aproximação do cidadão comum ao edifício-templo que alberga as atividades culturais. A arquitetura atrai o olhar, porém repele o contato; não sugere espontaneamente a apropriação do edifício pelo transeunte. “Faz uns 30, 35 anos atrás, eu li uma entrevista que dizia: de um lado a loja Mappin, do outro o Teatro Municipal. A loja Mappin era o local mais importante como ponto comercial, passava 1 milhão de pessoas por ali por dia. Nem 10% tinha entrado num teatro” (11).
Essa constatação leva ao inevitável questionamento e à subversão do projetar corrente, tratando o programa exigido de maneira inovadora ao criar novas soluções para problemas antigos e ao instituir outras necessidades à destinação funcional estrita. “Contra aquele teatro que só abre as portas na hora do espetáculo, um teatro que seja usado e tenha rentabilidade 24 horas por dia: se você usa o dinheiro público, deve garantir uma rentabilidade cultural, como se fosse o melhor negócio” (12).
Ao volume em bloco fechado, opção recorrente para este tipo de programa, contrapõe-se um edifício fluido e aberto ao espaço urbano. Através de uma poética relação de reciprocidade, o edifício e a praça se fundem de maneira a conduzir o passante a experimentar a arquitetura. A forma permeável, plasmada em curvas e suaves inclinações, estimula naturalmente a entrada e potencializa o uso do edifício, aberto como espaço público ininterruptamente. A composição espacial e volumétrica trabalha com beleza a fim de atingir o objetivo central: a plena utilização do artefato construído pela população da cidade.
Esse “passeio público” termina – ou recomeça – em um anfiteatro situado na cobertura, expandindo a possibilidade de utilização e coroando a obra com um símbolo da democratização da cultura, que ganha o espaço público. A formalização diferente e inesperada estabeleceria uma relação dialética especial com o entorno, dada em termos de contraste e reverência; ao mesmo tempo em que respeita a escala da cidade, apresenta-se como um potente marco arquitetônico localizado às margens do Rio Piracicaba.
Ao teatro de quinhentos lugares que previa o programa, vincula-se a ideia de espaço público de lazer, de ócio, de encontro. Os espaços e equipamentos de apoio – biblioteca, foyer, café – ganham autonomia ao abrirem-se para o exterior, permitindo seu funcionamento independentemente das funções teatrais e reforçam o uso público e diverso do espaço circundante. Internamente, o principal espaço teatral foi trabalhado habilmente de maneira a dirimir a sensação proibitiva da entrada ao confundir interior e exterior, teto e chão, cultura e espontaneidade. “Eu acho que esse encontro é uma forma de abrir direito de o sujeito entrar, ter vontade de entrar e se sentir bem entrando. Mas seria sempre isso: como é que você vai pensar os espaços de multidão? Aí entram os equipamentos que seriam os espaços de encontro” (13).
A projeção da cultura no espaço público materializa-se na obra como uma fusão entre essas duas dimensões. A interdependência entre elas emerge num edifício que “É teatro e é praça” (14). Mais que simultaneidade, compõe-se uma relação de reciprocidade que converte o teatro em praça e a praça em teatro. A proposta requer a união entre as dimensões cultural e popular para conferir sentido à arquitetura. A simplicidade espontânea e a busca de uma forma sugestiva e significativa refletem o cerne do projeto arquitetônico de Penteado.
Caminhar sobre o edifício, ocupar o “teto” da cidade significa colocar o humano no topo do sentido arquitetônico. O lugar do homem na construção da cidade e da cultura está “sobre” a cidade e a própria cultura, uma vez que ambas são suas representações. Como criaturas das quais se perdeu o controle, arquitetura e cultura passaram a amedrontar, a intimidar, a funcionarem de maneira inversa à sua verdadeira destinação. A arquitetura já não protege; afasta. A cultura não celebra a coletividade; exclui. A trágica realidade social e urbana das grandes cidades é resultado direto dessas distorções.
A proposta para um Teatro de Ópera em Campinas revela a essência do pensamento do arquiteto ao sintetizar seu entendimento do papel da arquitetura na transformação urbana e social através de uma obra de grande potência expressiva. Apresentado em concurso público, opção que marca outra característica da produção de Penteado, sendo classificado em segundo lugar, esse projeto precede e prepara a criação do Centro de Convivência Cultural de Campinas dois anos mais tarde (15).
O edifício, a ser implantado à margem da lagoa do Taquaral, situada no parque urbano mais importante da cidade, previa a acomodação de 1500 pessoas e contemplava ainda a criação de um teatro de comédia e arena. A argumentação geral do projeto se baseia na ambígua realidade de uma cidade interiorana que apresentava então um crescimento econômico e populacional importante e que já era, então, um prelúdio da metrópole atual. Como é habitual nas proposições de Penteado, a proposta extrapola os limites do edifício e trabalha com as escalas da cidade do presente e do futuro. Através da criação de um Parque do Teatro e da Música, revela-se a intenção de imprimir um caráter urbano por meio de um forte símbolo imagético-comunitário. O teatro procura o parque, que procura a cidade.
A proposta se resolve através da separação física entre os edifícios, criando uma triangulação de teatros independentes e conectados, que estabelecem um intenso diálogo entre si e com o entorno natural. A volumetria e a dimensão de cada um deles definem claramente a hierarquia, coloca o Teatro de Ópera como vértice ordenador da composição espacial, abarcando o teatro de comédia e um terceiro teatro ao ar livre implantado em meio à lagoa.
O Teatro de Ópera atende às necessidades tradicionais do programa, de requerimentos técnicos complexos, baseado na busca da espontaneidade. “coloquei o palco como se fosse uma pracinha, e você tinha as ruas onde as pessoas, num ponto determinado do espetáculo, se dirigem à pracinha como se se encontrassem. É de uma simplicidade quase infantil” (16). Essa busca de simplicidade encontra sua imagem metafórica no circo, síntese artística, festiva e popular, de onde retira também conceitos de organização espacial e formal. Misturar uma referência de conotações tão populares como a arte circense ao imaginário exclusivista que envolve a Ópera é novamente uma demonstração do desejo de apagar intuições proibitivas e ampliar o alcance da cultura. Esse convite ao público é reforçado pelo posicionamento de um acesso franco e aberto ao teatro, voltado ao principal caminho de chegada ao complexo teatral.
O Teatro de Comédia caracteriza-se pela flexibilidade e adaptabilidade de seu espaço a outras modalidades teatrais: além da comédia, acolhe espetáculos de arena, elisabetanos, integrais e clássicos. A conexão com o Teatro de Ópera seria feita através de uma passagem subterrânea onde estariam situados equipamentos e ambientes de serviços de apoio comuns. No teatro ao ar livre a “principal função é levar a arte do teatro e da música ao povo, de forma mais acessível” (17). O declive transforma-se em arquibancada ao encontrar a margem do lago onde está situada a “ilha” do teatro ao ar livre, elemento chave na composição da relação entre os dois teatros maiores, na configuração da grande praça que se forma entre eles e na fusão entre o construído e o natural.
Ao aproveitar-se da tensão entre o meio natural e o artificial, o projeto surge integralmente como solução paisagística, retirando dessa dicotomia seu argumento essencial. Essa relação semântica com a esfera da natureza proporciona uma formalização figurativa inclusiva que abre espaço a diversas interpretações – montanhas, vulcões, flor, tenda, circo, etc. –, estabelecendo um jogo lúdico entre os edifícios e os usuários. Esse jogo pertence, no entanto, à relação criada pelo contato entre a imaginação humana e a matéria, ou seja, a forma não busca uma caracterização definitiva; é autônoma em si mesma. “La forma tiene un sentido que le es propio, un valor intrínseco y particular que no hay que confundir con los atributos que se le añaden. Posee un significado y admite diversas acepciones” (18).
A natureza recriada, evocada e ordenada que configura o monumento, reorganiza também o entorno natural e cria um símbolo, um ponto referencial imageticamente forte e atrativo. A forma assimétrica e singular dos teatros, antípoda da expressividade contida da arquitetura paulista, permite a marcação dos acessos de maneira espontânea contribuindo para a percepção de um monumento accessível. Contemporâneo à criação de importantes Teatros de Ópera de repercussão importante – como os iconicamente poderosos Ópera de Sidney, de Jörn Utzon (1957) e Ópera de Berlin, de Hans Scharoun (1956-63), além do Teatro Nacional de Brasília, de Oscar Niemeyer, (1960) – o projeto reitera a opção do arquiteto por idear edifícios representativos no imaginário urbano e social. “A forma resultante de cada um dos dois teatros, é sempre motivada, por um projeto básico de funcionamento, mas nasceu de uma ideia pré-concebida e não simplesmente mecânica.” (19)
O grande complexo cultural transcende sua destinação funcional primária porque é parque, praça, símbolo urbano e comunitário. É, sobretudo, um amplo espaço público e de lazer que se pretende detentor de um símbolo urbano único no contexto da cidade, capaz de reunir os cidadãos em torno a seu significado.
A concepção do teatro popularizado por meio da subversão da hierarquia compositiva se materializa em urbanidade e humanidade na construção do Centro de Convivência Cultural de Campinas, de 1967/68. Encarregado pela Prefeitura da cidade a Penteado após a experiência do Teatro de Ópera, o novo terreno, situado no então tranquilo e horizontal bairro do Cambuí, sugeria outras conversas com o entorno, agora essencialmente urbano.
A implantação do edifício no grande terreno, formado pela anexação de uma antiga praça subjacente e pela interrupção da avenida que as separava, cria uma ampla praça que abriga em seu centro um grande edifício-escultura. Esse marco referencial transmite claramente através da forma as intenções do projeto e o ideário central do arquiteto. O Centro de Convivência Cultural de Campinas é praça pública, espaço de encontro comunitário e multitudinário, ponto de referência urbanístico e centro cultural aberto e espontâneo.
Penteado afirma que “Muitas vezes, o espaço que se abre para o encontro das pessoas, para o contato com as coisas da cultura e do teatro, é mais importante que o desenho do edifício” (20). O grande espaço de encontro alcançado em Campinas é fruto direto do desenho, através dele se materializa e se constitui em zona franca de convívio e cultura. O que o arquiteto parece querer dizer, com toda razão, é que o fim é mais importante que o meio; que a arquitetura e o desenho devem servir como instrumentos na construção dos espaços que representem e agreguem a sociedade.
O projeto resguarda a praça ao localizar sob quatro grandes volumes independentes as instalações teatrais constantes no programa. A intenção coloca sobre eles arquibancadas que configuram um teatro de arena ao ar livre, uma espécie de democracia construída. O desenho ergue na paisagem um conjunto arquitetônico escultural coroado por uma torre de iluminação à maneira de totem que se constituiu numa potente referência imagética da cidade.
O complexo se resume em um grande espaço que reconstitui a consciência espiritual e política do cidadão através da construção de um símbolo da sua liberdade. “O ato de perceber ultrapassa os sentidos e ganha a razão. É assim que se opera a metamorfose do sensorial, mudado em conhecimento. Este se alimenta da relação entre sujeito e objeto, relação em que este, permanecendo o que é e interagindo com o sujeito, contribui para que, nessa interação, o sujeito evolua. [...] É a vitória da individualidade, da individualidade forte que ultrapassa a barreira das práxis repetitivas e se instala em uma práxis liberadora” (21).
Penteado volta a subverter a hierarquia ao colocar em segundo plano a presença material do teatro principal de 500 lugares previsto pelo programa, ao perceber uma necessidade latente da cidadania e ao aproveitar a potencialidade urbanística do local, inicialmente oculta. Ao radicalizar a experiência de ocupar o teto da edificação, iniciada em Piracicaba, a experiência teatral se converte espontânea, dessacralizada. Na realidade, a presença de arquibancadas é um indicativo claro da presença humana na arquitetura, mesmo quando ela não existe. Uma arquibancada cheia representa a obra completa de humanidade; os degraus vazios clamam por sua presença.
Ao conjugar praça e teatro, a obra insere a cultura na rota do cotidiano, surpreende o transeunte com atividades várias e inesperadas, incita naturalmente à participação. Essa identificação popular instintiva, proporcionada pelo espaço e simbolismo da praça, permite e incentiva uma infinidade de usos, garantindo a desejada “rentabilidade social”. “Um espaço aberto para o encontro e o convívio, onde se pode ficar à vontade, vadiar, ler, descansar, namorar, assistir a espetáculos artísticos ou esportivos, participar de manifestações públicas...” (22).
Tal como no Teatro de Ópera, as formas que compõem o conjunto remetem a uma espécie de natureza geometrizada. Novamente a ideia de relevo, avivada pelas linhas à maneira de curvas de nível marcadas no piso, permeia certa percepção geográfica que aceita uma infinidade de interpretações subjetivas.
A praça-teatro externa desenvolve-se de maneira completamente autônoma em relação aos equipamentos interiores, de tal modo que se perde a referência de um quando se está no outro, tendo na praça circundante o elemento de comunhão entre si. Enquanto a praça aberta é monumental e eloquente, a parte interna é discreta desde as entradas ao nível da praça, incluindo-se o bar. A abertura escultural a partir do centro desdobra-se em coberturas periféricas acolhedoras que se voltam para as ruas circundantes. Além de propor uma nova interpretação programática, essa característica dá forma a um espaço com duas escalas marcadas e distintas, que convivem harmoniosamente bem com as atividades do cotidiano; acolhe tanto a dimensão comemorativa, cultural, multitudinária quanto à esfera comunitária, íntima, diária.
Internamente, a conexão entre os quatro volumes pelo subsolo configura um grande passeio público circular, pontuado ao longo de seu trajeto por espaços expositivos diversos. O posicionamento e a forma dos acessos sugerem a entrada e, ainda que fosse para pegar um atalho em seu caminho cotidiano, o cidadão se depararia com exposições ou outras atividades ao longo da passagem.
Apesar da beleza da concepção e do desenho, a realidade acabou por deturpar os ideais originais do projeto e obstaculizar o pleno alcance de seus objetivos. Além da patente má execução da obra, o arquiteto atribui a um erro de projeto a subutilização do espaço e afirma que errou quando não levou em consideração a explosão urbana que o entorno apresentaria. “Então, aquela proposta, ela errou quando não levou em conta que a cidade ia se transformar. Se tivesse feito um teatrinho estava lá, inexpressivo, mas estava lá” (23). A afirmação de Penteado revela uma dose de autocrítica somada à outra de descontentamento e decepção com o rumo trilhado pelas cidades brasileiras em geral. O tamanho e a ousadia da proposta são proporcionais à justa decepção do autor. A verticalização do entorno imediato oculta o conjunto e enfraquece sua mensagem, mas não a neutraliza, pois o Centro de Convivência segue sendo uma importante referência da cidade. A realidade truncou seus objetivos, obstruiu sua visibilidade, abafou seu poder simbólico, porém emoldurou sua condição de representante da sociabilidade oprimida da metrópole. “A cidade não completa a transição de uma lógica individual para o contexto amplo, acabando por ser o mecanismo de desfiguramento de todos os símbolos e de si própria. (...) Devemos considerar que o símbolo individualmente não pode transformar a cidade, se todos os demais objetos transformam o símbolo em ausência” (24).
Propor esses espaços significa, na realidade, propor uma cidade outra. Não que a arquitetura de Fábio Penteado queira negar a existência da metrópole, ou que reconheça nela um malefício inerente. Ao contrário, quer fazer aflorar a riqueza da vida diversa que ela contém, mas que se esconde sob a deturpação causada pela falta de planejamento, de oportunidades, de fruição, de humanidade, enfim. Por isso seu trabalho é feito para a metrópole, lugar das multidões, e somente nela encontra seu verdadeiro sentido.
A experiência de Penteado penetra na diversidade do campo de atuação do arquiteto, pouco explorada pela maioria, e deixa uma importante marca na história recente da arquitetura brasileira. Ademais de sua bela proposta arquitetônica, explorou o campo jornalístico como articulista de arquitetura e urbanismo, atuou politicamente pelos direitos da profissão junto ao IAB e lecionou na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Essas atuações paralelas expandiram o alcance de seu trabalho e de seu próprio entendimento dos problemas da arquitetura. Além da preferência por apresentar ideias em concursos, a maioria de seus projetos foram feitos em equipe, tendo como parceiros mais recorrentes a Aldo Calvo, Alfredo Paesani, César Sampedro, José Ribeiro, Luis A. Vallandro Keating, Teru Tamaki, Tito Lívio Frascino, entre muitos outros. (25)
notas
1
ARTIGAS, Vilanova. “A função social da arquitetura”. Aula para o concurso de professor titular da FAUUSP, em 28 de junho de 1984. In: Caminhos da arquitetura. 4ª edição. São Paulo, Cosac & Naify, 2004.
2
Segundo o IBGE, o Brasil começa o século XIX com 3.250.000 habitantes, chega a 1900 com 17.438.434 habitantes e atinge o ano 2000 com 169.799.170 habitantes.
3
ORTEGA Y GASSET. La rebelión de las masas. 44ª edição. Madrid, Alianza Editorial, 1997 (1ª edição, 1937), p. 117.
4
“A cidade de São Paulo é um palimpsesto – um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral.” TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. 3ª edição, São Paulo, Cosac Naify/Duas Cidades, 2004 (1ª edição, 1980), p.77.
5
Na virada do século XIX para o XX, segundo dados da Sempla, São Paulo possuía 238.820 habitantes, em 1950 a população era de 2.198.096 pessoas e em 2000 atingia a marca de 10.434.252, contando 17.878.703 considerando-se toda a região metropolitana.
6
PENTEADO, Fábio. Fábio Penteado. Ensaios de arquitetura. São Paulo, Empresa das Artes, 1998, escrito original de 1972.
7
“O indivíduo plenamente desenvolvido é o resultado de uma sociedade plenamente desenvolvida. A emancipação do indivíduo não é a emancipação da sociedade, mas a superação, pela sociedade, do risco de atomização, uma atomização que alcança o seu auge nos períodos de coletivização e cultura de massa”, HORKHEIMER, Max, 1974. Apud SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 7ª edição. São Paulo, Edusp, 2007 (1ª edição, 1987), p.102.
8
AMARAL, Aracy A. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira, 1930,1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. 3ª edição, São Paulo, Studio Nobel, 2003, p. 316.
9
MARTINS, Carlos Estevam. Anteprojeto do manifesto do CPC, 1979, citado por Aracy Amaral. Ibid., p.323.
10
USCATESCO, George. Teatro occidental contemporâneo. Madrid, Guadarrama, 1968, p. 44-45.
11
PENTEADO, Fábio. Entrevista concedida ao autor em janeiro 2008. A loja Mappin é o atual Shopping Ligth, situado a escassos metros do Municipal.
12
PENTEADO, Fábio,1998, p. 92.
13
Entrevista concedida ao autor, Janeiro 2008.
14
Id, loc. cit.
15
O projeto do Teatro de Ópera de Campinas foi premiado com a Grande Medalha de Ouro da I Quadrienal de Teatro de Praga, em 1967.
16
PENTEADO, Fábio. Entrevista concedida ao autor.
17
Id. Memorial do projeto.
18
FOCILLON, Henri. La vida de las formas y elogio de la mano. Xarait, 1983. (Ed. Original francesa, 1943), 2001, p. 11.
19
PENTEADO, Fábio. Entrevista concedida ao autor.
20
Id. Ensaios de arquitetura, p.100.
21
SANTOS, Milton, op. cit., p. 71
22
PENTEADO, loc. cit.
23
Id. Entrevista concedida ao autor.
24
ALEXANDRE, Isabel M. M.; BENTE, Richard Hugh. “A poética da verticalidade”, p. 11.
25
Fábio Moura Penteado desenvolveu mais de uma centena de projetos de arquitetura. Foi diretor da seção de Arquitetura e Urbanismo da revista de variedades Visão entre 1956 e 1962, onde escreveu cerca de 150 artigos, diretor responsável pelo periódico Arquiteto, de 1972 a 1977, além de participar da fundação da revista Projeto, na qual permaneceu como presidente de honra até 1996. Foi presidente do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) no biênio 1966-1968, membro do comitê executivo da UIA (União Internacional dos Arquitetos) de 1969 a 1975 e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie entre 1961 e 1964, quando foi expulso pelo regime militar.
sobre o autor
Ivo Renato Giroto é Arquiteto e Urbanista pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Pós-modernidade: composição e linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Master Oficial em Teoria e História da Arquitetura pela Universidad Politécnica de Cataluña (UPC). Doutorando em Teoria e História da Arquitetura pela Universidad Politécnica de Cataluña (UPC)