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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Ao nos depararmos com o patrimônio paisagístico de cidades brasileiras, como Olinda e Ouro Preto, fica evidente a ideia de conjunto, resultando na integração dos traçados urbanos com as características biofísicas dos lugares


how to quote

OLIVEIRA, Marcelo Almeida. Da paisagem como jardim. Olinda e Ouro Preto. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 127.05, Vitruvius, dez. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.127/3697>.

Alguns núcleos classificados (tombados), fundados no período colonial, ainda conservam traços que merecem ser ressaltados, para melhor compreendermos a identidade que os individualiza e os torna tão especiais. Os respectivos patrimônios ainda mantêm uma estreita sintonia com a paisagem, fato observado através da morfologia e das tipologias existentes. Nesse sentido, reforçamos a importância de certas peculiaridades no desenho da cidade tradicional, destacando-se dentre elas: a presença marcante do espaço vazio, a constituição de espacialidades amenas, a implantação de referências arquitetônicas em locais de destaque, o favorecimento dos cultivos de subsistência através da manutenção das parcelas hortifrutícolas, o respeito pelas linhas dominantes do relevo. Esse modo de ocupar o solo contribui para impregnar os tecidos urbanos de valores culturais, humanos e simbólicos, os quais têm sido reduzidos nas últimas décadas, devido às construções aleatórias e clandestinas.

Ocupação aleatória e/ou clandestina em Ouro Preto, 2006.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Ocupação aleatória e/ou clandestina em Olinda, 2005.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Em linhas gerais, a paisagem da cidade colonial mostrava-se como um grande jardim ao olhar de seus habitantes. Os conjuntos urbanos normalmente encontravam-se organizados em sintonia com o relevo, na maioria das vezes coberto por uma massa de vegetação resultante da interação das parcelas hortifrutícolas. Algumas narrativas deixam transparecer o encantamento proporcionado por essa situação. O estudo iconográfico contribui para enfatizar a pujança desse aspecto, sobressaindo-se no material pesquisado a representação do núcleo de Olinda, inserido no manuscrito do Algemeen Rijksarchief, Haia, c.1630 (1). Esse desenho permite-nos ter uma noção da ambiência predominante no complexo edificado relativamente à disposição de elementos morfológicos, da estrutura fundiária e das tipologias de espaços abertos, informações notadas num outro registo, o de “Marin d’Olinda”, c.1630. Aproveitamos o exemplo de Olinda para ressaltar as memórias de Joan Nieuhof, Daniel Parish Kidder e Henry Koster (2).

“[...] A cidade de Olinda é construída sobre um outeiro: sua situação, observada do mar, é do mais agradável efeito. Igrejas e conventos que se elevam sobre os cimos e os flancos da colina, seus jardins e suas árvores, semeados aqui e além entre as casas, dão a mais alta ideia de sua beleza e extensão [...]” (3).

Antigo terraço de cultivo em Ouro Preto. Observa-se na proximidade, a presença da varanda, 2006.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Esta ideia edênica também foi tratada por Michel Parent (1967), consultor da UNESCO, ao defender a preservação do primitivo assentamento de Olinda, declarado “Patrimônio da Humanidade” em 1982. “[...] Olinda não é uma cidade, é um jardim transbordante de obras de arte, e que não cessa de polarizar e de perseguir a imaginação dos artistas” (4).

O emprego do vocábulo jardim para designar Olinda é bastante significativo. Tal entendimento, a nosso ver, reforça a condição de lugar aprazível, propício a novas experiências de ver o mundo, através dos sentidos, além do domínio da racionalidade. Para melhor compreendermos essa dimensão da paisagem, devemos reconhecer que determinados elementos, considerados leves são tão fundamentais quanto os componentes físicos da forma urbana. A ordem, na cidade colonial, observada a partir da integração entre a estrutura cultural e ecológica, ajuda-nos a perceber melhor essas particularidades, ligadas à dimensão sensitiva do espaço.

Vista panorâmica de Olinda. Em primeiro Plano, antigo conjunto jesuíta, atual Seminário Arquidiocesano, 2005.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Vista panorâmica de Ouro Preto, Solar das Lajes, 2006.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Sob esse aspecto, demonstramos que as parcelas hortifrutícolas inseridas no tecido urbano continuam sendo avaliadas, na essência, como jardins ou lugares amenos e secretos, por ampliarem a capacidade perceptiva dos seus fruidores, dotando-os de maior consciência em relação ao espaço que habitam, assim como descrito em relatos inaugurais.

A paisagem deve ser entendida, estudada, a partir de uma metodologia indutiva, o que necessariamente envolve a compreensão das relações e das inter-relações entre a estrutura cultural e a estrutura ecológica de um determinado lugar (5).

Os componentes da estrutura cultural referem-se aos sistemas antrópicos na paisagem. Normalmente, fundamentam-se em concepções estéticas, econômicas, sócio-culturais, relacionadas a valores próprios de uma época, que incidem na regulação de padrões de ocupação e uso do solo e na difusão de morfologias e tipologias específicas, concernentes ao modo de construir e habitar o espaço. Nas cidades coloniais, tais realizações estavam eminentemente vinculadas às particularidades biofísicas dos respectivos sítios, ou seja, havia uma continuidade da forma urbana no meio natural, a qual se mantinha em equilíbrio com o clima, a geologia, o relevo e o solo, de maneira correlata e interdependente, estabelecendo a base de um complexo ecológico.

Assim, entender as hortas, os pomares ou os jardins do tecido urbano não pode ser reduzido ao levantamento botânico das espécies vegetais que o compõem. É algo mais complexo. Essa questão abrange o estudo tanto dos componentes físicos (cor, dimensão, estrutura, textura, volume) quanto dos elementos leves (luz, odor, refrigério, sabor, sonoridade, tato, vista), que resultam da relação ou da inter-relação entre os componentes morfológicos do espaço (6).

Tratar da questão permite-nos estabelecer comentários e reflexões sobre a maneira como a grande maioria dos viajantes que percorreu o Brasil durante o século XIX se posicionava diante da dimensão qualitativa dos espaços abertos dos núcleos coloniais. Os estrangeiros, quando confrontados com a imensa mescla e variedade de elementos, inerentes aos lugares visitados, hesitavam em aceitar pacificamente a descoberta do “novo”, ou seja, dos códigos culturais ainda pouco assimilados. O contato com o mundo nativo, no geral, era acompanhado de controvérsias e estranhamentos.

Sob os olhares críticos e preconceituosos dos viajantes, observavam-se hortas, pomares ou jardins como lugares confusos, desordenados e, em algumas situações, exóticos. Quando as descrevem, as cenas observadas tornavam-se mais reais. Classificavam-se e enumeravam-se as espécies de valor alimentar, condimentar, medicinal e ornamental, evidenciando-se sempre aquelas que poderiam ser utilizadas como produtos econômicos. Raramente, na ótica dos naturalistas, referiam-se às parcelas hortifrutícolas como locais de destaque no conjunto dos povoados e das cidades. Eram normalmente avaliadas à distância. A visão era o principal sentido usado pelo observador perante a paisagem observada.

Porém era e continua sendo diferenciado o modo como os proprietários costumam interagir com a própria moradia. Basta dizer que alguns moradores dos lugares estudados ainda mantêm forte apego aos jardins, que permanecem como testemunhos de uma natureza fervilhante e patrimonial, o que nos ajuda a identificar antigos costumes e certos componentes morfológicos, facilitando-nos ainda a realização de comparações entre os conjuntos paisagísticos das cidades classificadas, minimamente protegidos e sujeitos a descaracterizações.

Tentaremos compreender principalmente como o clima, juntamente com as questões culturais, influencia nos aspectos leves da paisagem, assunto pouco estudado no âmbito dos núcleos classificados brasileiros, temática intrinsecamente associada à relação emotiva que alguns proprietários ou moradores possuem com esses lugares. Para isso, nos baseamos em noções desenvolvidas por Nuno Mendoça, em sua obra Para uma poética da paisagem: a ideia (1989), que trata da dimensão qualitativa e vivencial do espaço.

Clima

No domínio da cidade, entende-se o clima como resultado de múltiplos fatores, fortemente associados aos elementos morfológicos e ao tipo de material e revestimento das respectivas superfícies, e que acabam interferindo em diversos fenômenos, dentre eles: os efeitos de absorção, de armazenamento térmico e de reflexão da radiação solar, a trajetória e a velocidade dos ventos, a variação da composição atmosférica, da evaporação e da taxa de umidade relativa do ar (7).

Dentre os parâmetros fundamentais do clima, ressaltamos aqueles que se tornam evidentes no desenho de hortas, pomares ou jardins, o que nos permitem estabelecer analogias entre diferentes realidades. Em Portugal, salientamos que o espaço produtivo era moldado por sistema de rega concebido segundo traçado geométrico, resultando desse traçado canteiros estritamente regulares e proporcionais entre si (8). No Brasil, como lembra o Padre Fernão Cardim (c.1584), em seus apontamentos, o “céu” sempre fazia chover, justificando a pouca utilidade da fonte, do poço e do tanque, inseridos nos domínios da horta do Colégio Jesuíta de Olinda. No entanto, apesar da benevolência do clima local, tais recursos eram bem-vindos e necessários, sobretudo na estiagem, ajudando a manter as laranjeiras e os outros cultivos, especialmente a partir de sistemas hidráulicos menos aparentes, em subespaços menos geometrizados (9).

Nos primitivos núcleos de Olinda e Ouro Preto, também é possível observar, no interior do tecido urbano, a associação estabelecida entre o clima e a vegetação existente, fato que influencia fortemente a ideia de habitação nesses lugares. Assim, torna-se prudente comentar que os espaços abertos predominantes nos antigos assentamentos urbanos, tratados como quintais, apresentam significados bem próximos, mas com nuances distintas, explicitando a riqueza cultural existente num país com dimensões continentais como o Brasil.

De acordo com depoimentos colhidos em Ouro Preto, os quintais destinavam-se basicamente a atividades produtivas, podendo eventualmente proporcionar lazer aos utentes por meio do descanso ou da contemplação de vistas panorâmicas enriquecidas por aromas, sabores, sons, tatibilidades e outras qualidades fundamentais, normalmente observadas nesses recintos. Na maioria das vezes, esses locais mostravam-se como ambientes abertos e iluminados, onde as mínimas intervenções se justificavam, sobretudo, por razões prático-utilitárias, dentre elas, as de melhoria da qualidade do solo, com a constante reciclagem de matéria orgânica produzida “in loco”. Quanto à presença dos recursos hídricos, alguns quintais possuíam suas próprias bicas, fato associado à localização das moradias nas partes baixas de encostas ravinadas e às condições climáticas específicas da região.

Quanto aos quintais de Olinda, eles têm outro tipo de espacialidade, proporcionada pela disposição espontânea de fruteiras de grande porte no tecido urbano, minimizando as altas temperaturas. A vegetação que reveste trechos do primitivo núcleo acentua com exuberância a noção de conjunto paisagístico do lugar, criando a sensação de continuidade do tecido verde, observada de alguns mirantes, como os largos da Igreja de São Salvador do Mundo (a Sé de Olinda), da Igreja da Divina Graça (o antigo Colégio Jesuíta) e do Convento Franciscano de Nossa Senhora das Neves.

Esse aspecto constitui uma das características mais marcantes de Olinda, ainda vista como um extenso pomar, dada a contiguidade dos quintais, onde as copas das fruteiras permanecem imbricadas umas nas outras. Nesse conjunto, os quintais-pomares são constantemente valorizados pelas sensações de aprazibilidade e bem-estar, decorrentes principalmente do microclima proporcionado pela vegetação. Dentre os benefícios gerados pelas manchas verdes do lugar, sobressaem: maior absorção do som, aumento da taxa de evapotranspiração, que incide no declínio da temperatura na proximidade do solo, contenção das flutuações e dos fortes ventos, filtragem de poeira, redução da incidência solar nas edificações, uma vez que a capacidade refletiva da vegetação é mínima. Também destacamos o papel da vegetação na contenção de processos erosivos e no enriquecimento do solo orgânico no meio urbano (10).

Em suma, os pomares configuram lugares aromáticos, calmos, férteis, frescos e repousantes, propícios às descobertas e experiências, sendo com frequência considerados verdadeiros jardins, aspecto que igualmente abrange as hortas.

Aroma

Apreciar um jardim não se restringe ao domínio da visão, requer percebê-lo de outras maneiras, inclusive através dos odores, que lhe são peculiares. As aragens carregadas de aromas exalados de cada planta, por suas flores e frutos, e pela própria terra despertam em nós sensações que se transformam em imagens cognitivas e lembranças, arquivadas em nossa memória afetiva. O olfato é uma das portas de acesso ao entendimento da essência dos lugares habitados. Contribui para a compreensão do caráter mutável da paisagem, que varia ao longo do dia e durante os ciclos anuais (11).

Nos antigos núcleos de Olinda e Ouro Preto, com referência a esse ponto, não podemos deixar de comentar o prejuízo causado pela ocupação aleatória de antigas hortas e pomares, de onde provinham alguns dos principais registros olfativos que balizavam a vivência cotidiana de seus utentes. Esse tipo de ocupação, além de prejudicar a presença de componentes ecológicos na malha urbana, tem provocado uma gradativa mudança nos padrões da moradia, cada vez mais funcional e menos articulada com os espaços não edificados.

Esse aspecto é ressaltado pelo processo de descaracterização da forma urbana. Era frequente, em Ouro Preto, sentir o aroma da terra molhada, típico do espaço rural, que reforçava a ideia de conjunto em termos arquitetônico e paisagístico, e enfatizava a concepção de ordem, elementar, mutante e singela, relativa ao espaço como um todo. A atmosfera local, favorecida pela excessiva umidade do ar e pela temperatura amena durante grande parte do ano, facilitava a dispersão de odores, que particularizavam a ambiência da cidade. Os aromas também revelavam uma íntima ligação das hortas e dos pomares domésticos com as tradições populares. Citamos o hábito de ornar e perfumar os recintos das casas e das capelas e igrejas com ervas e flores aromáticas, revelando o forte elo existente entre as pessoas e o mundo da produção.

Em Olinda, as fragrâncias provenientes de cajueiros, colônias, jasmins, madressilvas, mangueiras e pitangueiras pontuavam com intensidade a vida de seus habitantes. O que singularizava a cidade de antes, hoje, constitui quase um resquício de memória, diante das transformações morfológicas ocorridas no desenho do lugar.

Os odores de flores e frutos, entretanto, continuam sendo exalados pela vegetação local, fazendo reviver lembranças, principalmente aquelas ligadas ao tempo da infância. As imagens olfativas são poderosas, podendo suscitar impressões, surpresas e sentimentos que celebram o amor, a felicidade, a interioridade, a intimidade, a paixão, a plenitude, a tranquilidade, ou seja, a vida.

Cor e Luz

Cada lugar apresenta suas próprias singularidades, que normalmente estão associadas a fatores biofísicos, sobretudo climáticos. No caso dos núcleos urbanos estudados, notamos a influência dos componentes naturais no caráter dos respectivos conjuntos. Considera-se o caráter a partir da constituição formal do lugar. É aquilo que o torna distinto de outros locais, favorecendo o reconhecimento por parte de seus habitantes. Assim, ressaltamos, dentre outros elementos essenciais da paisagem, a importância da cor e da luz, que concorre para a apreciação das mudanças atmosféricas ao longo do ano, dos ritmos da natureza e do tempo, enriquecendo a experiência cotidiana do homem, especialmente nos ambientes construídos predominantemente com a vegetação.

A luz, de acordo com Kevin Lynch, é “determinante” do caráter do espaço: “pode acentuar detalhes, ressaltar uma silhueta ou textura, ocultar ou revelar aspectos, contrair ou ampliar dimensões” (13). Desse modo, é notório que os moradores de Olinda, ao se expressarem sobre o antigo núcleo, destacam a luz azulada ou esverdeada do local, oriunda dos maciços vegetais, dos pomares e das múltiplas tonalidades do céu e do mar. A consciência desses detalhes permite-nos comentar o significado conferido aos elementos naturais que se mostram bastante dinâmicos e repletos de surpresas. Tal aspecto, encontra-se presente na produção cultural do lugar, na música, pintura e literatura, que retratam o conjunto classificado a partir do olhar poético.

Em Olinda, a luz predominante na paisagem é forte. Revela os contrastes, a textura e a plasticidade das formas da vegetação e dos edifícios que se acomodam sobre as ondulações do relevo. São traços pujantes. Servem para descrever o patrimônio local (14). Por sua vez, a luz em Ouro Preto, na maior parte do ano, é menos radiante. As cores da paisagem são tênues. O céu aparece quase sempre coberto por névoas e nuvens, devido à combinação da altitude, do clima e do relevo da região, o que reduz o alcance visual a partir de alguns pontos elevados da cidade (15).

Refrigério

No processo de adaptação do homem à natureza de cada sítio, foi notável sua capacidade e habilidade na materialização de estratégias que visavam à maior permanência nos espaços abertos. Nas cidades coloniais brasileiras, o sombreamento dos recintos domésticos era essencial, para que seus habitantes pudessem passar grande parte do dia fora de suas casas. Nesses domínios, valorizavam-se costumes, relativos ao hábito de tomar uma fresca, geralmente, sob a copa de arvoredos frondosos, sob a ramagem das latadas perfumadas ou sob a sombra refrescante das arquiteturas de prazer e das varandas das moradias urbanas ou rurais. Era patente o gosto pelo refrigério.

Tetos de sombra perfumada, Olinda, 2005.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Na paisagem de Olinda, o clima é um dos fatores biofísicos que mais condiciona o comportamento de seus habitantes. O sol queima, principalmente em determinados horários. Mesmo que o ar seja constantemente arrefecido por brisas marítimas, os efeitos destas não são facilmente percebidos, a não ser em lugares específicos, sob o coberto de grandes fruteiras, onde a sensação térmica, resultante da maior umidade relativa do ar, da menor temperatura e da maior velocidade do vento, é responsável pela sensação de bem-estar, com frequência comentada pelos habitantes desses lugares. Não é pois casual que as manchas verdes, no interior da malha edificada, tenham o aspecto de densos pomares, ainda mantidos em sequências contínuas e descontínuas em vários trechos da paisagem.

No entanto, a partir do reconhecimento de Olinda como “Patrimônio da Humanidade” (1982), observa-se o avanço da ocupação dos espaços abertos no primitivo núcleo, fenômeno relacionado tanto com a pressão do mercado imobiliário quanto com a demanda imposta pela “indústria” do carnaval e do turismo, um dos maiores vetores de crescimento da economia local. Nesse quadro, os novos moradores, orientados por conveniências e modismos, por vezes impróprios ao lugar, descaracterizam seu patrimônio (16). Diante desses fatos, destaca-se a postura de Armando de Holanda que defende a importância da preservação das tipologias tradicionais, sobretudo da arquitetura ancestral, compreendida a partir da noção do “construir frondoso” (17).

Este autor lida com referências associadas à bioclimática, tendo em vista a sensibilização de técnicos para a necessidade da adequação do projeto arquitetônico ao clima tropical, segundo o que chamou de “construir frondoso”, baseado na noção de “sombra aberta”, visando permitir o máximo possível de ventilação nas partes internas do edifício, através da permeabilidade às correntes de ar. Nesse sentido, a casa é concebida para manter o maior contato possível com o espaço envolvente. As varandas, que fazem parte da moradia popular de vertente luso-brasileira, são locais acolhedores e sensuais, facilitando a convivência do homem com os elementos etéreos e físicos dos jardins ou das hortas e dos pomares.

Esta teoria do “construir frondoso” encontramo-la de forma impressiva em muitos relatos de época. A continuidade dos fatos, observada durante nossa investigação, leva-nos a sublinhar não só o valor ecológico, bioclimático, mas também o valor cultural que as manchas umbrosas apresentam, em particular, no tecido da cidade de Olinda. É pois fundamental avaliar, inventariar e conservar tais espaços.

Daquelas dimensões nos fala Ambrósio Fernandes Brandão, no século XVII, ao referir-se à beleza dos pomares ou jardins no Brasil, levando-se em conta os atributos da vegetação (18). Em seus relatos, são marcantes a formosura das flores e dos frutos dos maracujazeiros, a suave fragrância dos curuás e a verdura das parreiras, produtivas duas a três vezes por ano, que revestiam as latadas e ampliavam as possibilidades de vivência ao ar livre. Esse artifício proporcionava prazer, definindo e delimitando subespaços por meio de planos horizontais que acentuavam o valor do ornamento na estrutura dos locais de cultivo. Representavam a síntese entre o aroma, a cor e a forma, reforçando a continuidade e a impressão de espontaneidade na organização das parcelas hortifrutícolas (19).

São vários os exemplos que abordam a importância das árvores frutíferas, conservadas como componentes essenciais das habitações urbanas, permitindo aos moradores o desfrute de aragens, comparadas a verdadeiros sopros de vida, especialmente em locais onde o clima costuma ser tórrido. Não é fortuito que as fruteiras sejam consideradas “deusas”, por quem convive com suas benesses diariamente. Ganharam esse status devido às múltiplas funções que lhes são atribuídas, como a de proporcionar abrigo aconchegante sob suas copas, que filtram luz e calor solar.

Quintais pomares de Olinda, 2005.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Ao considerarmos o tipo de vegetação disseminado, dizemos que é reflexo do gosto pela vivência ao ar livre. Tendência semelhante ocorre em Ouro Preto, porém adaptada às particularidades do clima tropical de altitude. Os espaços abertos acabam sendo mais iluminados e transparentes, pelo fato de os arbustos e as árvores terem copas menos compactas, permitindo maior permeabilidade à luz e à visão através de suas folhagens. Não sendo necessária tanta proteção contra a radiação solar, as espécies vegetais utilizadas promovem outro tipo de ambiência na trama de antigos jardins, nem por isso menos acolhedores e sensuais.

Antigos quintais de Ouro Preto, 2006.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

Sabor

Falar de sabor é promover um reencontro com a própria história. Essa temática está relacionada com os costumes e as tradições, referentes à aclimatação e à disseminação das espécies vegetais, exóticas e nativas, que constituíram a base das parcelas hortifrutícolas. A preferência por determinados alimentos, que varia de região para região, ajuda-nos a perceber diferenças e semelhanças entre os lugares. A literatura e a música registram momentos de puro deleite, associados à degustação das frutas, cultivadas, inclusive, nos quintais, o que faz parte do universo dos livros de Jorge Amado e das melodias de Alceu Valença (20).

As descobertas proporcionadas pelo paladar costumam impregnar a memória das pessoas. No mundo das lembranças cotidianas dos habitantes de Olinda e Ouro Preto, o tempo da infância é geralmente marcado por aventuras gustativas aos pés de densas e frondosas fruteiras, o que sempre transparece nas narrativas. Lidar com algumas dessas lembranças permite-nos compreender certas práticas do processo de dispersão de plantas por entre hortas e pomares.

Muitas espécies vegetais foram difundidas devido a suas qualidades medicinais e nutritivas, além de outros atributos da cultura vigente. Formalizaram-se espaços produtivos com a finalidade de suprir a subsistência de seus utentes, estimulando hábitos como intercâmbios de mudas e sementes, o que repercutia diretamente no incremento da biodiversidade no meio urbano. Percebemos como os desejos e as vontades dos moradores, aliados a modismos, influenciam a composição das parcelas hortifrutícolas.

Até hoje, é comum ver os moradores de Olinda presentearem-se com os frutos dos quintais, como: abacates, cajás, carambolas, cocos, fruta-pão, goiabas, jambos, mamão, mangas, pencas de bananas, pitangas, sapotis. São vistos como “frutos da integração”, pelo fato de serem desejados (21). Em Ouro Preto, a dispersão dos sabores é menos farta, sendo reservada sobretudo aos familiares. Algumas verduras (couve, ora-pro-nóbis, taioba), assim como certos frutos (ameixas, bananas, jabuticabas) ainda cumprem o papel de integração, estreitando laços de amizade. Contudo, observa-se um desapego cada vez maior em relação aos antigos costumes, reflexo do enfraquecimento de práticas ancestrais, ligadas à agricultura urbana.

Sonoridade

No mundo concentrado e múltiplo dos núcleos urbanos, a escuta de sonoridades constitui uma das experiências sensoriais mais significativas de interação do homem com o espaço que o envolve. Durante as investigações, observamos como os sons são importantes na criação das referências de lugar e tempo na memória dos habitantes. Nas cidades estudadas, em determinados períodos, como na primavera e no verão, a ambiência nas parcelas hortifrutícolas torna-se especialmente atrativa. Nesses locais, as florações e as frutificações, além de valorizar o espaço com os respectivos cromatismos, promovem eufonias oriundas da busca de alimentos por parte de animais, aves, crianças e insetos, situações enriquecidas pelo farfalhar de ramagens agitadas ao vento e, em alguns casos, pelo murmúrio de águas correntes, o que torna aprazível a vivência especialmente nos quintais.

Nesse universo, o canto dos pássaros está intrinsecamente associado à presença das hortas e dos pomares no tecido urbano, onde o alimento costuma ser farto. Essa temática serviu inclusive de inspiração para o preparo de manuscritos aquarelados relativos à iconografia do período Brasil-Colônia (22). No material observado, representaram-se certas aves em associação direta com algumas espécies vegetais, exóticas e nativas, alimentando-se de flores e frutos, destacando-se: a banana, o caju, o dendê, a fruta-do-conde, a goiaba, o mamão, a flor e o fruto do maracujazeiro.

Segundo Catherine Laroze, os jardins são tidos como ilhas de felicidade e plenitude (23), propícios à escuta dos segredos da vida, assim como acontece no interior das hortas e dos pomares de Olinda e Ouro Preto. Nesses recantos, o isolamento e a quietação são fundamentais para o estabelecimento do contato mais direto com a dimensão qualitativa do espaço, despertando-nos a consciência a respeito da continuidade e da totalidade da forma urbana. A percepção das sonoridades, juntamente com o aroma exalado de flores e frutos, dentre outros atributos das hortas e dos pomares, ajuda-nos a compreender a espacialidade da “urbe” colonial, que não deve ser entendida somente por meio de seus fragmentos ou dos edifícios preservados.

Considerações finais

Lidar com esse repertório de elementos contribui para uma melhor avaliação da forma urbana, além de facilitar o entendimento da espacialidade nas parcelas hortifrutícolas. Ressaltamos que, nas descrições dos moradores que elucidam a existência de vínculos com suas hortas, com os seus pomares ou jardins, a natureza apresenta-se viva e vivificante, sendo percebida a partir do amanho da terra ou mesmo através do contato com as florações e as frutificações. O invisível ganha corpo e revela outras dimensões dos complexos construídos.

Ver a dimensão ecológica, estética e patrimonial nas parcelas não-edificadas pressupõe que o observador reeduque o olhar. Não falamos de lugares excepcionais, grandiosos e monumentais, pelo contrário, estamos bem próximos daquilo que é tomado como banal e pertencente ao senso comum. Por esse motivo, as tipologias do tecido verde das cidades classificadas, mais particularmente de Olinda e Ouro Preto, não são compreendidas, na atualidade, como objetos dignos de proteção, principalmente por parte das instituições governamentais, responsáveis pela preservação patrimonial.

Jardim contíguo à ponte de Marília de Dirceu, Ouro Preto, 2006.
Foto Marcelo Almeida Oliveira

notas

1
“‘Imagem sem título [Planta de Olinda]’. Original manuscrito do Algemeen Rijksarchief, Haia”. In: REIS FILHO, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, Fapesp, 2000. p. 82, 331. Veja-se, no volume II, a figura n. 66.

“‘MARIN D’OLINDA de Pernambuco/ T’RECIF de PERNAMBVCO’. Ilustração do livro de Johannes de Laet (LAET-1644). Exemplar utilizado pertencente à Koninklijke Bibliotheek, Haia”, In: Idem, p. 78, 329. Veja-se, no volume II, a figura n. 65.

2
NIEUHOF, Joan. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil. São Paulo, Livraria Martins, Oficina da Empresa Gráfica da [Revista] dos Tribunais, 1951, p. 25-26. [Edição holandesa, 1682].

KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil (Províncias do Norte). Coleção Biblioteca Histórica Brasileira. São Paulo, Editora Livraria Martins, /s.d./. v. XII, p. 72, 74, 76, 96-99.

KOSTER, Henry, 1793-1820. Viagens ao nordeste do Brasil. 11ª edição. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, v. 1, 2002, p. 64, 85. [1ª edição Londres: Longman, Hurst, Rees, 1816].

3
Idem, v.1. p. 64.

4
PARENT, Michel. Dossiê IPHAN/UNESCO, Arquivo Noronha Santos, 1967. Apud: TIRAPELI, Percival. Conhecendo os Patrimônios da Humanidade no Brasil. São Paulo, Metalivros, 2001, p. 47.

5
Cf. MAGALHÃES, Manuela Raposo de. “Paisagem urbana e interface urbano-rural”, In: ABREU, Margarida Cancela de (coord.). Paisagem. Coleção Estudos 2. Lisboa, Direcção Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, 1994, p. 111-113.

6
Cf. LAROZE, Catherine. Une histoire sensuelle des jardins. France, Olivier Orban, 1990, p. 15-18.

Cf. MENDOÇA, Nuno José de Noronha. Para uma poética da paisagem: a idéia. Évora, Universidade de Évora, v. 1, 1989, p. 183-186. Dissertação apresentada à Universidade de Évora para obtenção do Grau de Doutor em Artes e Técnicas da Paisagem. (Texto policopiado).

7
Cf. BUSTOS ROMERO, Marta Adriana. A arquitetura bioclimática do espaço público. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 46-55.

8
CARAPINHA, Aurora da Conceição Parreira. “A arte da paisagem e dos jardins no Brasil colonial”, In: Colóquio luso-brasileiro de história da arte. Actas, 5. Faro, Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Departamento de História, Arqueologia e Património, 2002b, p. 35.

9
Cf. CARDIM, Fernão, Padre, 1548/1549-1625. Tratados da terra e gente do Brasil. Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 249-250.

10
BUSTOS ROMERO, Marta Adriana. A arquitetura bioclimática do espaço público. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 2001, p. 94-95.

11
Cf. LAROZE, Catherine. Op. cit., p. 18, 24, 34-35, 53.

12
NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius Loci. Paysage, Ambience, Architecture. Liége, Pierre Mardaga éditeur, 1981, p. 14. [Edição original: 1976].

13
LYNCH, Kevin. Planificación del sitio. Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1980, p. 172. [Primeira edição de 1977].

14
PENA FILHO, Carlos. “Olinda”, In: VILAÇA, Marcos Vinícios. Olinda, Olindíssima. Brasília, Fundação Nacional PróMemória, 1983, p. 21.

FREYRE, Gilberto. Olinda. 2º guia prático, histórico e sentimental de cidade brasileira. 4ª edição. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 16, 18.

15
Cf. MEIRELES, Cecília. “Cenário”, In: MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. 3ª edição. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1977, p. 57.

16
MOREIRA, André Renato Pina. Coordenador Adjunto do Programa Monumenta/BID, Arquitecto da Secretaria Municipal de Planejamento da cidade de Olinda. Entrevista sobre espaços abertos. Olinda, 2002.

17
HOLANDA, Armando de. Roteiro para construir no Nordeste. Arquitetura como lugar ameno nos trópicos ensolarados. Recife, Programa em Desenvolvimento Urbano da Faculdade de Arquitetura, UFPE, 1976, p. 9, 11, 15, 31, 33, 39, 42.

18
Cf. BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1997, p. 130. (Texto datado do segundo semestre de 1618).

19
Cf. CARAPINHA, Aurora da Conceição Parreira. Da essência do jardim português. Évora: Universidade de Évora, v. 1, 1995, p. 302, 304, 308, 311. Dissertação de Doutoramento em Arquitectura Paisagista e Arte dos Jardins, Ramo de Artes e Técnicas da Paisagem. (Texto policopiado).

20
BARRETO, Vicente; VALENÇA, Alceu. “Morena tropicana”, In: COSTA, Paloma Jorge Amado. As frutas de Jorge Amado ou o livro de delícias de Fadul Abdala. São Paulo, Companhia das letras, 1997, p. 7.

COSTA, Paloma Jorge Amado. Op. cit., 1997, p. 19-20.

21
MELO, Almeri Bezerra de. Director do Centro Inter-Universitário de Estudos da América Latina, África e Ásia, filósofo/sociólogo, morador da cidade classificada de Olinda. Entrevista sobre espaços abertos. Olinda, 2002.

22
Cf. AHU. Colecção Iconografia, 8 desenhos, E.D., Anónimo, “Frutos tropicais: ananás, bananeira, cajueiro, dendezeiro, fruteira do conde, goiabeira, mamoeiro, maracujazeiro”. /s.d./. Manuscritos aguarelados. 275 x 435 mm (dimensão média).

23
LAROZE, Catherine. Op. cit., p. 45-47, 51, 62.

sobre o autor

Arquiteto graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em Desenho Urbano pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Doutor em Arquitetura Paisagística pela Universidade de Évora – Portugal. Investigador do Centro de Estudos da População Economia e Sociedade – CEPESE/Portugal . Analista Ambiental do Instituto Estadual de Florestas – IEF/Minas Gerais/Brasil.

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