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architexts ISSN 1809-6298

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Housing by People (1976), de John Turner, apresenta uma comparação entre a habitação social produzida em série e os assentamentos informais. O presente artigo toma como referência a tipologia identificada por John Turner para analisar um caso particular


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AGUIAR, Douglas. Revisitando Turner. Habitação Social e os Desafios da Cidade Contemporânea. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 127.07, Vitruvius, dez. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.127/3701>.

As situações relatadas no que segue contêm elementos que sugerem, senão integralmente pelo menos em boa parte, uma defasagem, já histórica, entre aquilo que se conhece tradicionalmente como habitação social e aquilo que os usuários desse tipo de habitação de fato necessitariam para levar adiante adequadamente seus projetos de vida, especialmente no que se refere à tendência atual de trabalhar em casa. As situações abordadas mostram que a habitação social hoje produzida institucionalmente ainda difere pouco da casa operária produzida ao longo do século passado, e herda muito das características da casa operária inglesa do final do Século XIX destinada ao operariado fabril. O artigo mostra, apesar da precariedade do meio, o modo criativo como os moradores da favela exercitam a capacidade de se organizarem espacialmente de modo espontâneo. Desde o ponto de vista da acomodação do corpo ao espaço os resultados práticos desse tipo de organização parece ter desempenho bastante superior aquele dos espaços projetados via institucional, seja por governos seja por organizações não-governamentais, para essas mesmas pessoas; conjuntos, núcleos e cohabs. Assim como demonstrou Turner, nosso trabalho sustenta que o tema da habitação social ainda permanece como aquela incomoda pedrinha no sapato dos arquitetos. Ainda que estejamos avançando a passos largos nas tecnologias e nos materiais, no que diz respeito à espacialidade – entendida esta como acomodação adequada do corpo(s) ao(s) espaço(s) – ainda temos muito a aprender com os modos de vida nascidos da informalidade.

O método de estudo se utiliza de uma combinação articulada de plantas baixas, resultantes de levantamentos nos locais pesquisados, e fotos. A performance das atividades desde o ponto de vista do desempenho do corpo é o parâmetro utilizado na avaliação das diferentes situações observadas. A comparação entre os diferentes casos evidencia a dificuldade dos espaços dos núcleos habitacionais projetados em acomodar os modos de vida praticados na faixa da pobreza.

Recapitulando fundamentos

É oportuno que de início recapitulemos alguns fundamentos do pensamento do arquiteto inglês, especialmente aqueles que Turner considera como “os três requerimentos universais da habitação – acesso, abrigo e propriedade” (1). O tema do acesso estabelece naturalmente a necessária e indispensável ponte entre as disciplinas da habitação e do urbanismo ou, de modo mais apropriado, a indispensável condição de posicionamento da casa dentro da cidade, especialmente quando se trata de casa para população de baixa renda cuja localização está em geral estreitamente vinculada à geração de renda. Turner se vale aí da noção de equifinalidade, tomada da área de sistemas: “[...] equifinalidade e variedade de escolha são essenciais à liberdade e a cultura genuínas; sem elas as necessidades das pessoas não podem ser satisfeitas [...] equifinalidade quer dizer multiplicidade de rotas para um mesmo fim e interdependente variedade de caminhos, modos e fins [...] o número de rotas e combinações entre dois pontos quaisquer varia de um, em um sistema autoritário, até um grande número, em um sistema democrático” (2). Mais adiante Turner especifica essa preocupação com a condição de acesso: “as necessidades vitais da maioria das pessoas não podem ser medidas apenas através do arranjo de compartimentos e janelas, mas sim pelo grau de acessibilidade a amigos, a parentes e a suas fontes de renda, situações que essencialmente demandam flexibilidade” (3). Não custa lembrar que essa condição de localização é ainda hoje freqüentemente ignorada quando se trata de projetos habitacionais produzidos pelo poder público. E na mão contrária quando se trata de situações geradas na informalidade as pessoas sabem muito bem onde é conveniente posicionar o seu barraco ou promover uma invasão.

Já a condição de abrigo, a segunda na lista de Turner, pode ser vista de dois modos. O primeiro deles se refere a técnicas de construção. O segundo quanto à espacialidade e, sobretudo, ao modo como essa é capaz ou não de contemplar as atividades rotineiras do morador. A pesquisa de Turner, assim como a pesquisa objeto do presente estudo, revelam em ambos os aspectos discrepâncias entre o espaço informal e o espaço projetado por arquitetos. Turner sugere aí que “a vida das estruturas habitacionais tem mais a ver com as instituições humanas que com as tecnologias de construção” (4), focando o argumento na cultura, nos hábitos, na interpretação contemporânea do programa, centrada basicamente no corpo e na atividade (5), e independente da tecnologia de construção, tema ainda hoje predominante nesse campo de estudo e, em geral, omitindo a variedade de tecnologias presentes nas favelas. O terceiro requerimento se refere à propriedade, tema bastante controverso visto que atualmente muito do que é produzido como habitação social é repassado ao morador, conforme veremos mais adiante, através de estatutos que tendem a impedir que esse morador exerça plenamente o direito de propriedade.

Afinidade tipológica

Em nossa incursão pela favela nos deparamos naturalmente com aquilo que Turner identificou um dia como sendo o supportive shack ou, numa tradução interpretada, o barraco amigo. Encontramos também ali com uma comunidade de catadores, do mesmo modo como, Turner em seu estudo encontrou como exemplo dessa situação o shack de uma pepenadora, uma catadora. Nesse contexto informal viemos a nos deparar, com freqüência, com o assim denominado lote familiar, do mesmo modo como Turner um dia identificou a communal household de Dona E. Do mesmo modo viemos a perceber que grande parte das moradias localizadas, tanto nas favelas quanto nos núcleos de habitação social por nós estudados vem passando por um processo de desenvolvimento contínuo, fenômeno esse então identificado por Turner na progressive development house. Mais adiante, nossas observações realizadas no Núcleo Progresso em Porto Alegre mostram, conforme veremos mais adiante, características sócio-espaciais em muito similares àquelas então observadas por Turner no Conjunto Habitacional Vicente Guerreiro, na Cidade do México, por ele classificado como the modern standard house ou ainda, sugestivamente, the oppressive house. E assim foi que, partindo para nossa área de estudo desarmados quanto a categorias de análise, fomos aos poucos nos dando conta, ao longo do percurso adotado, de que os tipos habitacionais lá identificados coincidiam literalmente com aqueles identificados por Turner no México, trinta anos antes.

Passeio pela periferia

Tomamos, para a realização desse estudo, um conjunto de casos localizados em situação urbana aproximadamente comum a todos, uma mesma área da cidade de Porto Alegre, uma ex-área industrial hoje quase que inteiramente desativada, majoritariamente degradada e que abriga diferentes padrões ou tipos de urbanização (6). Ali estão as Vilas Tio Zeca, loteamento irregular sobre área invadida, o Nucleo Progresso, habitação social produzida recentemente pela Prefeitura, e o Núcleo Mario Quintana, também produzido pela Prefeitura e transformado ao longo dos anos pela ação dos moradores. Na linha sugerida por Turner, os casos selecionados incluem situações de surgimento espontâneo e situações planejadas. O trabalho se vale de uma técnica de observação e avaliação baseada na qualidade da experiência espacial, ou seja, da relação entre espaço e corpo em movimento (7). Plantas, fotos relacionadas a essas e depoimentos de moradores são utilizados como matéria prima no procedimento de análise. Desse modo o artigo mostra, através de um passeio arquitetônico pela periferia, espacial e social, um quadro, um ponto de vista, necessariamente parcial, da situação da habitação social urbana hoje em nosso meio. Ainda que parcial a visão aqui apresentada descreve situações típicas e aspectos das mesmas que são, muitos deles, generalizáveis, comuns a diferentes situações da habitação social em diferentes regiões do país e, provavelmente, do mundo.

Abrigo pós-industrial

Nosso passeio começa pela Vila Tio Zeca. Trata-se de uma favela muito precária, com muitos barracos de chapa metálica e lata, e que abrigam, muitos deles, uma população de catadores e triadores de lixo. O mapa abaixo mostra nossas rotas através do assentamento Observamos ali a atividade de triagem sendo realizada de diferentes modos e em locais de dimensões variadas, especialmente na parte da favela mais próxima a uma avenida onde muitas moradias têm seu espaço adaptado a essa atividade. A casa de Dona J. é uma delas, dentre outras tantas inventariadas (nomes de moradores constantes do material fotográfico são fictícios). O local tem, à primeira vista, uma aparência pouco agradável. A rigor, mal se poderia utilizar o termo casa para defini-lo. As presenças do cavalo e do lixo seco predominam. Os compartimentos domésticos, sala/cozinha e um quarto, comparecem como pano de fundo. Dona J. circula com desenvoltura e bom humor entre esses dois mundos. Nosso registro em planta mostra a mesa de triagem ocupando o espaço central, uma varanda de três por sete metros (fig.1). Ali Dona J. e o filho, que cata no centro da cidade no turno da tarde, fazem a triagem. A despeito da precariedade da construção o espaço da varanda é amplo, e se comunica, através de portas e uma passagem em sua parede de fundo, com três outros compartimentos; o primeiro, com aproximadamente vinte metros quadrados, acumula as funções de sala, cozinha e quarto, e é ocupado por Dona J., o marido e o filho. Outro é ocupado pelo cavalo e um terceiro é a casa da N., filha de Dona J.. Em meio à varanda o lixo seco recém chegado vai sendo acomodado em volta da mesa enquanto o lixo classificado é depositado no perímetro do terreno. Dona Judite trabalha com papel, plástico e ferro; e tem uma renda de duzentos reais por mês. A caminhada pela Vila Tio Zeca nos conduz naturalmente ao relato de Turner sobre uma família que é abrigada pela madrinha, uma catadora, que veio a essa eles propiciar o o ingresso nesse modo de vida. Turner assim relata o supportive shack: “esse abrigo, materialmente tão pobre, é extremamente bem localizado, o modo de locação também é bastante conveniente dando a eles segurança e também a liberdade de poder mudar-se repentinamente; e a moradia em si fornece o essencial a um custo mínimo” (8). Nossa caminhada pela Vila Tio Zeca mostra, trinta anos após, que aquela realidade não fez mais que se multiplicar pelas periferias do planeta.

Fig. 1 Casa de Dona Judite.
Levantamento Marta Fiedler e Luisa Fiengelbanum

O lote comunitário

Verificamos com freqüência na Vila Tio Zeca a apropriação de terrenos maiores por famílias ampliadas; casas de parentes e agregados compartilhando de um mesmo lote, freqüentemente em torno a um pátio comum (9). Exemplo desse tipo de ocupação ocorre com a família de Dona L. Ela e o marido trabalham com triagem de lixo em um galpão, localizado em outra parte da vila. O lote onde vivem abriga, além da sua, mais três casas, duas pertencentes aos filhos e uma ao neto. Além das casas o lote abriga ainda um estábulo com duas vacas, algumas galinhas e um cercado com uma horta. A disposição das casas gerou dois pátios, um frontal e outro de fundos, que funcionam ao modo de espaços urbanos de caráter semipúblico. Dona L. e família vivem naquilo que Turner já identificava como uma communal household: “o terreno de 260 m² permitiu que uma comunidade, de 19 pessoas com renda instável, vivesse com relativo conforto e segurança. O processo foi iniciado pela família de Dona E. que se mudou para esse local por ser adequado ao seu tipo de comércio e também por propiciar oportunidade de trabalho ao marido. Inicialmente viveram em barracos provisórios que ao longo do tempo se converteram em edificações mais permanentes, de melhor qualidade, e que mais tarde vieram a justificar uma reivindicação de usucapião. Eventualmente o pequeno comércio de Dona E. se converteu num centro da vida social da localidade, de onde ela fornece aconselhamento e orientação” (10). Curiosamente os projetos de habitação social não estão em geral preparados para contemplar esse tipo de circunstância espacial tão comum em nosso meio.

Unidades habitacionais

Deixando para trás a Vila Tio Zeca, caminhamos cinquenta metros e chegamos ao Núcleo Progresso, um conjunto de unidades habitacionais construído em 2004 pela Prefeitura Municipal, e que vem sendo reproduzido em outras localizações. O Núcleo mistura sobrados geminados e casas térreas ao modo da casa operária inglesa do final do século dezenove, imagem essa já corrompida, aqui e acolá, por um processo de favelização, ao que parece inevitável, comum a tantos conjuntos de habitação social. A casa do E. exemplifica esse processo. Contrariando os desígnios da Prefeitura, ele realiza a atividade de triagem do lixo no espaço doméstico, do modo como já havíamos observado em casas da Vila Tio Zeca. No entanto, pela limitação de espaço na casa, E. utiliza nessa atividade o recuo frontal a casa (fig.2). Diferentemente da Vila Tio Zeca onde o espaço público se estrutura em sua maior parte em grelha, o Núcleo Progresso tem um arranjo espacial em pente ou em árvore, como sugere a tipologia proposta por Alexander ainda nos anos sessenta; um percurso principal serve como elemento de ligação entre uma série de ruas sem saída, posicionadas entre si em paralelo (11). Ao final de cada um dos dentes desse pente espacial acontece um alargamento, previsto em princípio como área de estacionamento e manobra, e que freqüentemente se converte num árido playground. Trata-se de uma urbanização que preserva uma espacialidade típica dos primórdios do movimento moderno. Verificamos ali gabaritos que mereceriam ser melhor avaliados pela qualidade do uso que propiciam; calçadas estreitas onde apenas a presença de um poste já impede a passagem do pedestre, sem falar na impossibilidade de plantio de uma árvore (fig.3).

Fig. 2 Casa do Ederson.
Levantamento Gustavo Giannechini e Eduardo Dienstamann

Nos deparamos, no Núcleo Progresso, com a presença de uma quantidade de habitações onde as pessoas têm atividades econômicas, ao que nos pareceu, às escondidas. Conseguimos, com algum esforço, conversar com algumas delas, a proprietária de uma lanhouse, a proprietária de uma confecção de roupas; negócios em geral tocados por mulheres. Conversamos ali com R. que produz uma variedade de pastéis, que o marido distribui pela cidade em uma caminhonete. R., assim como muitos dos moradores por nós entrevistados no Núcleo Progresso nos falaram das dificuldades de levarem adiante seus negócios pelas restrições impostas pelo órgão municipal a modificações nas casas, especialmente modificações que venham a alterar a estética das fachadas. Tivemos a confirmação dessa dificuldade após conversarmos com uma assistente social do Departamento de Habitação da Prefeitura que, de fato, as restrições se deviam basicamente a razões relacionadas ao propósito institucional de preservação das fachadas originais.

Nesse aspecto nossa passagem pelo Núcleo Progresso mostra que, em muito pouco avançamos comparativamente à experiência de Turner, na década de 70, ao visitar o Conjunto Habitacional Vicente Guerreiro na Cidade do México, onde ele já identificava o que ele veio a denominar como a casa opressora; diz ele: “previamente residente em uma favela não muito distante de sua presente localização na periferia da cidade, essa família, antes de ser relocalizada, se mantinha através de um pequeno comércio associado à moradia e ocasionais biscates. No entanto, essas melhorias vieram a colocar a família em risco quanto ao pagamento da moradia, sem falar na perda do seu pequeno comércio, que é proibido no novo conjunto habitacional” (12); e, mais adiante: “[...] aqui os moradores são proibidos de utilizarem suas casas para qualquer outra atividade que não seja residencial; há uma norma que proíbe a realização de qualquer tipo de negócio na moradia. Além disso, um vizinho que pintou a sua casa foi obrigado a repintar na cor original. . . alterações ou adições estão naturalmente fora de questão [...]” (13). Nessa linha verificamos que o zoneamento original do Núcleo Progresso, que localiza edificações térreas nas esquinas destinadas a atividades comerciais, é com freqüência contrariado. A situação de Dona L. e família é, nesse aspecto, exemplar. Ela vive em uma casa vizinha, colada a um desses comércios de esquina, e nos relatou que a área destinada ao estabelecimento comercial será, algum dia, no futuro, ocupada por seu pai com uma loja-oficina de componentes elétricos. No entanto, enquanto isso não acontece, o espaço serve de moradia para sua sogra. Nesse ínterim o processo de adaptação da loja como casa já começou, com a abertura de uma porta que conecta sua casa à, ainda virtual, loja vizinha.

Nesse contexto de repressão a modificações e à realização da atividade econômica na moradia, a assim denominada venda da chave parece ser hoje ali uma prática corrente. A esse respeito Dona E. nos relatou: “minha filha mesmo comprou uma chave na Progresso [...] muitos que ali ganharam casa venderam a chave, até por 12 mil, e invadiram o outro lado da rua [...] essa invasão foi de mais ou menos 300 famílias”. O ‘outro lado da rua’ por ela mencionado é a parte menos consolidada da Vila AJRenner, favela imediatamente vizinha. E Seu A. complementa: “a cada vinte pessoas que querem de fato morar, dez querem pegar a casa prá vender”. O ‘golpe do divórcio’ nos foi também relatado por Dona E: “o casal se separa, ganha então duas casas, se juntam de novo e vendem uma”.

Atravessamos então a rua e entramos na Vila AJRenner, favela imediatamente vizinha. Encontramos ali Dona A.. Ela nos conta que trocou sua casa no Núcleo Progresso, onde morou três anos, por uma casa maior na favela, na Vila AJRenner, para que pudesse então ter condições de trabalho em sua atividade de triagem do lixo. Visitamos sua casa. Apesar das condições de higiene serem precárias, Dona A. tem ali um espaço amplo, aberto e coberto, pode-se dizer uma espécie de varanda onde ela faz a triagem do lixo com o auxílio de uma amiga. A sala é pequena, no entanto a copa-cozinha é espaçosa. Tem ainda dois dormitórios, um banheiro e um espaço que utiliza como cocheira para o cavalo. Em sua atividade Dona A. apura 300 Reais por mês, que somados ao salário do marido, que trabalha como carregador, e ao dinheiro vindo de uma carroça que alugam compõe a renda familiar. O casal tem três filhos. Segundo ela, nada disso seria possível se ela estivesse ainda vivendo ‘do outro lado da rua’, no Núcleo Progresso.

Favelização e sinergia

Fig. 4 Casa Embrião / Bairro Mario Quintana.
Foto Leonel Ávila [Google Earth]

Caminhando alguns quarteirões ao norte chegamos ao bairro Mario Quintana; um núcleo habitacional também produzido pelo Departamento de Habitação da Prefeitura e que, ao contrário do Núcleo Progresso, é produto de uma urbanização estruturada em grelha, ou seja, em rua e quarteirão. O local foi, aproximadamente dez anos atrás, um conjunto de pequenas casas térreas, situadas em lotes estreitos, em torno de quatro metros, casas-embrião, geminadas e com possibilidades de expansão frontal e de fundos (fig.4). Caminhando pelo local verificamos que ali são raras as casas que mantém ainda hoje essa configuração original. O levantamento realizado mostra, ao contrário, que com o passar dos anos o local foi sofrendo tal quantidade e variedade de modificações que, hoje, muito pouco resta das casinhas originais. Modificações foram acontecendo dentro dos lotes onde, via de regra, ampliações no térreo inicialmente e a seguir, no segundo e no terceiro piso foram agregadas. Modificações mais estruturais também passaram a ser ali comuns, pela agregação de dois ou mais lotes que passaram a abrigar uma única edificação. Modificações ocasionais também aconteceram pela ampliação de edificações sobre o passeio público. E, finalmente, outras tantas situações aconteceram onde os três tipos de modificação acima descritos aconteceram simultaneamente (fig.5).

Fig. 5 Bairro Mario Quintana.
Foto Ana Queruz e Gustavo Gianechinni

O tipo de situação identificada no Núcleo Mario Quintana é, em muito, similar àquela detectada por Turner, na progressive development house: “[...] a família desse operário de fábrica vem construindo sua própria casa em um lote comprado ilegalmente na periferia da Cidade do México. Construíram inicialmente uma casa com dois dormitórios, banheiro, lavanderia e um chiqueiro em seu lote, localizado em terreno íngreme. Em um segundo momento agregaram um espaço comercial e um segundo piso [...] com um trabalho estável e poucas possibilidades de progresso profissional futuro, essa família em crescimento prioriza o investimento na casa pela segurança futura que isso lhes parece propiciar” (14). Do mesmo modo, no Núcleo Mario Quintana, em paralelo às transformações físico-espaciais ocorridas houve ali uma natural multiplicação do espectro de atividades com o surgimento, em paralelo ao uso residencial, de uma variedade de comércios, serviços e até incipientes manufaturas. O local é hoje social e economicamente efervescente.

Esteticamente idem; o repertório popular parece ter encontrado no local condições ideais para que uma variedade de modos de expressão individuais seja reconhecida em um todo que, ao final, parece ter algo de homogêneo resultando numa percepção de continuidade do espaço público típica daquilo que conhecemos como cidade. A casa de Dona S. é uma, dentre outras tantas, que veio a contribuir nesse processo. A moradia onde ela hoje vive, com o marido e quatro filhos, passou por um processo de radical transformação, no qual a casinha original converteu-se em uma imponente edificação de três pavimentos, com estar e copa-cozinha no térreo, três quartos e banheiro no segundo pavimento e ainda uma cobertura com churrasqueira e terraço no terceiro. Uma varanda estreita contorna a totalidade do segundo pavimento desempenhando simultaneamente o papel de marquise sobre a calçada do térreo e, naturalmente, enfatizando o caráter urbano da situação de esquina onde se encontra. O lado financeiro dessa transformação foi coberto pela atividade econômica da família; um depósito de papel reciclado localizado nas imediações, onde todos colaboram.

Em síntese, a dramática transformação ocorrida nas moradias teve naturalmente repercussões no modo de uso do espaço público e hoje o local, ainda que parcialmente controlado pelo tráfico de drogas, converteu-se em um bairro da cidade dotado de intensa animação urbana. Ali parece verificar-se uma situação de êxito arquitetônico e urbanístico onde um processo de apropriação espontânea do espaço acontece a partir de um projeto de habitação social realizado pela Prefeitura Municipal, resultando num híbrido que se transforma progressivamente naquilo que conhecemos como cidade.

A casa e o trabalho

Nossa incursão pelo Núcleo Progresso, e o tipo de urbanização ali encontrado, que é modelo para outras tantas intervenções realizadas, e em andamento, mostra um tipo arquitetônico baseado essencialmente no tradicional arranjo espacial em sala, quarto, banheiro e cozinha; compartimentação típica da habitação-dormitório pensada ao modo da revolução industrial, quando o trabalhar e o habitar constituíam funções absolutamente distintas. Passados cento e cinqüenta anos, a pesquisa realizada confirma que vivemos hoje em uma sociedade nitidamente pós-industrial. O emprego na indústria tende à diminuição e, em muitos casos, à extinção, por razões que escapam à abrangência desse artigo. Por outro lado, a pesquisa realizada mostra que o trabalho associado à moradia parece ser uma tendência, senão mundial, certamente predominante em nosso meio. Isso parece valer para todas as classes. No entanto enquanto o trabalho, dos mais diversos tipos, nas classes média e média alta, tem no computador sua ferramenta central, nas classes de renda mais baixa o elemento-chave para a realização do trabalho em casa parece ser mesmo o espaço.

Essa hipótese teórica, formulada no início de nossa pesquisa, parece ter sido em boa parte confirmada em nossas observações e registros de campo, que incluíram 74 casos, e que evidenciaram uma variada gama de atividades econômico-produtivas realizadas por moradores no espaço doméstico nas áreas visitadas. Essas atividades, realizadas informalmente no espaço doméstico, incluem diversos tipos de comércios, serviços e manufaturas (costureiras, doceiras, pequenas confecções). Observamos que as situações de crescimento informal, as duas favelas pesquisadas e o Núcleo Mario Quintana - o núcleo favelizado em virtude da ausência de restrições legais à construção - são situações particularmente propícias ao surgimento espontâneo de atividades econômico-produtivas; sendo aí o espaço o fator central para o sucesso dessas realizações. Nos pareceu aí evidente que quanto mais livre é o espaço de qualquer pré-concepção, mais ele está apto a toda e qualquer concepção, incluída aí naturalmente a sua utilização como moradia. Elemento central nesse tema, em se tratando de população de baixa renda, é o trabalho relacionado à triagem do lixo seco, atividade essa que parece estar dentre aquelas que mais rendem financeiramente a essa população. Verificamos, ao longo dos levantamentos de campo realizados, os mais variados modos de realização desse tipo de atividade e, em geral, de modo articulado ao uso do espaço doméstico.

Em geral, a pesquisa realizada mostrou nitidamente o surgimento de novas espacialidades, situações em processo de formação e, no entanto, já evidenciando oportunidades para que uma nova arquitetura habitacional e um novo urbanismo, relacionado a essas mesmas situações, entrem o quanto antes em ação. No entanto, em um cenário diverso daquele da Revolução Industrial, abre-se hoje novamente o caminho para uma extensiva pesquisa tipológica, ao modo daquela ocorrida nos primórdios do século passado quando os visionários da Bauhaus buscaram estabelecer os parâmetros da máquina de morar focados na realização plena do habitar. Ao contrário de então, a pesquisa tipológica hoje demandada parece sugerir que os novos tipos, as tipologias do século vinte e um, confirmando as observações realizadas por Turner trinta anos atrás, sejam concebidas a partir de conceituações mais complexas, e mesmo paradoxais, onde a casa máquina de morar cede lugar a casa-oficina, a casa-loja, ao micro-galpão, ao espaço multiuso onde o dormir, o comer e o conviver (incluído aí o lazer) acontecem em paralelo e, freqüentemente, de modo espacialmente sobreposto à atividade produtiva. O mesmo pode-se dizer com relação ao urbanismo onde a unidade de vizinhança no passado idealizada - e em nossa pesquisa nitidamente revelada no arranjo espacial do Núcleo Progresso - deve dar lugar a situações urbanas igualmente complexas onde o trabalho e a casa se complementem, tanto quanto possível, na realização de uma cidade contemporânea mais afinada com as demandas espaciais dos segmentos menos favorecidos da sociedade.

Notas finais: Lições da Informalidade

Finalmente cumpre relembrar que algumas idéias-chave, tomadas da obra de Turner, não apenas resistem ao tempo, mas se afirmam como idéias-chave dentro de uma ótica contemporânea dos estudos da habitação social. A primeira delas se refere a atual insistência na serialidade, ou seja, na produção tayloriana da habitação do mesmo modo como são produzidos automóveis e outros tantos bens de consumo. A esse respeito Turner sugere que “o tautológico termo ‘economia de escala’ simplesmente significa que qualquer sistema em particular teria uma ótima escala de operação, e daí decorre a noção de que o ‘maior é o melhor’ como parte de uma síndrome urbano-industrial” (15). Curiosamente, apesar de estarmos vivendo já há algumas décadas a assim denominada era pós-industrial, no campo da habitação social essa idéia ainda tende a prevalecer. Isso porque, conforme sugere Turner, “na busca de uma operação econômica, a produção de habitação realizada pelas grandes construtoras está associada à padronização de procedimentos e produtos e, ao final, isso necessariamente entra em conflito com os requerimentos de variedade local e pessoal [...] ao final os moradores têm pouca ou nenhuma escolha, eles são colocados diante de um pacote; é pegar ou largar [...]” (16). O tema é ambíguo; para muitos o avanço nesse campo dependeria ainda hoje do avanço na tecnologia da construção. Turner se opõe a essa visão sugerindo, na mão contrária, que “a vida da habitação tem mais a ver com as instituições humanas que com as tecnologias de construção” (17), ou seja, com o reconhecimento de uma preponderância da pesquisa fundada na cultura humana, nos hábitos e em comportamentos, enfim no programa, como os tópicos fundamentais nesse campo de estudo. Na mão contrária, sugere Turner, a produção espontânea da moradia apresenta naturalmente uma variedade de técnicas e de configurações espaciais, em geral a baixo custo e com alto valor de uso.

Pode-se dizer ainda, para finalizar, que a pesquisa realizada veio a revelar que na arquitetura do improviso, na ausência do planejamento, valores essenciais emergem num processo movido em parte pela necessidade prática, do uso imediato, em parte pela necessidade estética, de ambição ao embelezamento, e em parte pela necessidade permanente de acomodação às necessidades do outro, do próximo, do vizinho. Nasce aí uma arquitetura constituída através de um repertório popular que de modo natural funde os conceitos de casa e de cidade em algo que, na ausência de um termo estabelecido, foi chamado por Helio Oiticica de arte ambiental; uma arte urbana que ainda na metade do século passado ele via brotar da espacialidade das favelas do Rio de Janeiro. A sensação prazerosa de caminhar através dessa arquitetura de vielas e becos seria por ele plasmada em seus Penetráveis. E essa seria a percepção de tantos outros que provaram do sabor da essência espacial desses lugares quando apreciados como obras de arte coletivamente construídas ao longo do tempo. E foi um pouco dessa essência espacial que o nosso passeio pela periferia, bem ou mal, capturou.

notas

[Esse artigo foi escrito durante minha estada na Architectural Association, em Londres, como Professor Visitante, entre Janeiro e Marco de 2008. Durante esse período a troca de ideias com o Prof. Jorge Fiori veio a contribuir substancialmente no desenvolvimento dos temas aqui abordados]

1
TURNER, John. Housing by People. London, Marion Boyars, 1976, p. 97.

2
Idem, p. 30.

3
Idem, p. 46.

4
Idem, p. 47.

5
TSCHUMI, Bernard. Architecture and Disjunction, Cambridge, Mass, MIT Press, 1995, p. 101-168.

6
Os levantamentos e registros utilizados nesse trabalho foram realizados por estudantes de graduação, na disciplina de Projeto Arquitetônico 7 da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, no primeiro semestre de 2007; são eles: Marta Fiedler, Luisa Ingelbaum, Gustavo Gianechinni, Eduardo Dienstmann, Caroline Hadrich, Ana Queruz, Leonel Ávila, Tatiane de Francesco, Fabricia Grando e Fernanda Chaves. O trabalho contou ainda com o apoio operacional do DEMHAB, Departamento Municipal de Habitação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

7
A origem desse método de análise se encontra ainda no final do século dezenove no trabalho dos historiadores da Einfuhlung, passando pela fundamentação teórica do movimento moderno, com Le Corbusier e outros (o passeio arquitetônico), e desembocando na cultura arquitetônica contemporânea no trabalho teórico de Lynn, Tschumi e Koolhaas entre outros.

8
TURNER, John. Op. cit., p. 56

9
A Vila Tio Zeca, ainda que seja uma área de invasão, é constituída por lotes e, portanto, estruturada espacialmente ao modo de um loteamento, geometricamente irregular, com lotes das mais variadas formas e tamanhos.

10
TURNER, John. Op. cit., p. 96-97.

11
ALEXANDER, C. A city is not a tree, in Architectural Forum, n. 122, April/May 1965.

12
TURNER, John. Op. cit., p. 57.

13
Idem, p. 77-78.

14
Idem, p. 75-76.

15
Idem, p. 121.

16
Idem, p. 51 e 82.

17
Idem, p. 47.

bibliografia

AGUIAR, Douglas. “Favela e Tradição Urbana”, artigo apresentado no Istanbul UIA World Congress of Architecture em 2005 e publicado em Arquitextos/Propar 7, Porto Alegre, Dezembro 2005, p. 26-41.

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OITICICA, Helio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1986.

TRAMONTANO, Marcelo. Novos modos de vida, novos espaços de morar. São Carlos, EESC-USP, 1993.

sobre o autor

Arquiteto e Professor, Faculdade de Arquitetura, UFRGS.

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