A primeira impressão ao ler o texto de Peter Eisenman - O fim do clássico, o fim do começo e o fim do fim, publicado originalmente em 1983 - foi, no mínimo, de encantamento. Um discurso envolvente e uma instigante proposição teórica referenciada pelo discurso dos filósofos Jean Baudrillard, Michel Foucault, Martin Heidegger, Gilles Deleuze e Jonathan Culler. Construído como uma poética que revela a espiritualidade e o gosto do autor (1) e declarado por uma retórica (2), Eisenman, com expressões apropriadas para cada idéia, revela uma trama envolvente, a partir do livro On descontruction: theory and criticism after structuralism de Jonathan Culler ao transferir para o seu discurso a atitude filosófica do francês Jacques Derrida. É esta aproximação, entre Eisenman e Derrida, que o presente ensaio busca apresentar como fruto inicial de um processo reflexivo sobre o discurso contemporâneo da arquitetura.
A aproximação implícita
Na transição da crítica à arquitetura (3) para a sua poética, Eisenman (4) afirmou que:
O que propomos [...] é uma expansão além das limitações proporcionadas pelo modelo clássico à concretização da arquitetura como um discurso independente, isento de valores externos, clássicos ou quaisquer outros; ou seja, a intersecção do isento de significado, do arbitrário e do intemporal no artificial.
Para explicar “a criação de uma artificialidade”, ele introduziu a noção de “dissimulação” em oposição à simulação, se apropriando e ao mesmo tempo interferindo na noção de dissimulação de Baudrillard(5). Dissimular é fingir, deixando intacto o princípio de realidade, isto é, a diferença entre o verdadeiro e o falso é clara, está apenas mascarada, disfarçada. Já simular altera a realidade, dificultando distinguir entre o verdadeiro e o falso. Até aqui Eisenman concordou com Baudrillard. Entretanto, quando Baudrillard admite que “há simulação quando os modelos geram uma realidade sem origem”, Eisenman vai reconhecer que esta característica da simulação lembra a arquitetura que ele propõe como dissimulação, definindo-a como algo que “torna aparente a simulação”.
O que está em questão é a probabilidade da dissimulação também gerar uma realidade sem origem. Ou seja, “(...) visa criar a possibilidade de outros valores que não sejam uma representação do espírito do mundo reinante na época, mas outra condição de conceber, ler, projetar e entender a arquitetura” (6). Eisenman escreve:
Enquanto a simulação tenta obscurecer a diferença entre o real e o imaginário, a dissimulação deixa intocada a diferença entre realidade e ilusão. (...) Damos a esta dissimulação na arquitetura o nome provisório de não-clássico. Visto que a dissimulação não é o inverso, o negativo ou o contrário da simulação, uma arquitetura ‘não-clássica’ [também não o é] (...). Talvez seja mais apropriada defini-la como uma outra manifestação, uma arquitetura ‘tal como é’, agora como uma ficção. É uma representação de si mesma, de seus valores e experiência interna. (...) O ‘não-clássico’ simplesmente propõe o fim do predomínio dos valores clássicos a fim de revelar outros valores. Não propõe um novo valor, ou um novo Zeitgeist, mas tão somente uma nova condição: a de ler a arquitetura como um texto. (7)
A arquitetura ‘tal como é’ é o não-clássico, uma ficção que contêm, implicitamente, o arcabouço ficcional de Derrida na figura do como se, que “nomeia a condição espectral da imaginação como a projeção de ficções e narrativas”. (8)
A figura [como se] instala na escritura [de Derrida] a possibilidade de imaginar uma relação entre experiência ou fato e uma experiência ficcionalizada. Assim a figura nomeia uma certa correspondência analógica, em vez de mimética. O como se nomeia uma condição ‘ficcional’, uma possibilidade imaginada (...) que não é uma mentira, mas que também não aconteceu, ou que, mais significantemente, não pode ser experienciada como tal. (9)
Parafraseando parte desta citação, a arquitetura ‘tal como é’ proposta pelo discurso de Eisenman possibilita, a partir da condição de ler a arquitetura como texto, imaginar uma relação entre experiências ou fatos existentes na arquitetura (clássica) e uma experiência ficcionalizada (não-clássica) em nome de uma correspondência analógica e não representacional. Ler a arquitetura como texto não consiste apenas no entendimento de seu conteúdo unificador (10) e sim “nos modos como figuras textuais e [suas] relações (...) produzem uma lógica dupla e aporética”. (11)
As figuras textuais da arquitetura como texto podem ser encontradas em toda sua materialidade, em tudo que se apresenta edificado ou mesmo idealizado numa proposta não implementada. A simulação clássica faz parte das figuras textuais que podem ser entendidas em sua complexa completude: na sua relação espaço urbano x espaço edificado; na cidade x cultura; na arquitetura x urbanismo; etc. É a intrínseca relação entre os diferentes tipos de espaços urbanos e arquitetônicos que compõe a estrutura do texto arquitetura, e que deve ser lido na sua heterogeneidade e múltiplas camadas.
A arquitetura ‘tal como é’ pretende reconstruir o intemporal (12), o que significa dizer que nada igual ou similar o antecede. O intemporal pressupõe que este algo é o começo originário, ainda sem um valor atribuído. E imbricado a esta condição está o arbitrário, ou seja, um começo originário que independe de leis e regras, e que resulta da própria consciência do pensamento. Ambos exprimem a própria dissimulação.
Em outra implícita aproximação, Eisenman dialoga com Derrida ao apresentar a discussão acerca da origem e dizer que “para reconstruir o intemporal (...) é preciso começar eliminando os conceitos clássicos (...) de origem e fim” (1984, p.243). A palavra origem traz a idéia de um valor implícito não conhecido, ou seja, uma condição prévia ainda não valorada que só será reconhecida a partir de sua relação com o fim. Para Derrida, as noções de causalidade e de oposição precisam ser revertidas, assim deslocando a idéia de origem, como mostra Culler: (13)
A distinção entre causa e efeito faz da causa uma origem (...). Se o efeito é que faz da causa uma causa, então o efeito, não a causa, deveria ser tratado como origem. Ao mostrar que o raciocínio que erige a causa pode ser usado em favor do efeito, descobre-se e se desfaz a operação retórica responsável pela hierarquização e se produz um significativo deslocamento. Se tanto a causa quanto o efeito podem ocupar a posição de origem, então a origem não é mais originária; ela perde seu privilégio metafísico. A origem não-originária é um ‘conceito’ que não pode ser compreendido pelo sistema anterior e, portanto, o rompe.
O problema levantado por Eisenman sobre como a arquitetura é entendida decorre da hierarquia existente na relação causa-efeito, onde causa antecede o efeito, ou seja, a causa é o começo, a origem, só reconhecida após a associação com o efeito, o fim. Eisenman exemplifica em seu discurso que apenas no Éden da eternidade essa ligação não existia. Consciente de que não se pode regressar no tempo, Eisenman, pelo pressuposto da figura do como se, ver na ficcionalidade da ficção a possibilidade de “reconstruir o eterno”. Entretanto, ao asseverar que “(...) enquanto a arquitetura não passar de um dispositivo ao uso e ao abrigo – ou seja, enquanto tiver suas origens associadas a funções programáticas –, ela jamais passará de um efeito” (14), Eisenman está confirmando que a arquitetura, como exemplo de causalidade, tem como causa originária a função, compreendida somente a partir de seu efeito: a forma (15).
Negando o princípio clássico de origem e fim, de causa e efeito, da forma segue a função, Eisenman rejeita a “característica ‘auto-evidente’ da arquitetura [,isto é, a noção de que] ela tem origens a priori, quer de ordem funcional, quer divina ou natural”. (16) Em nota, Eisenman vai afirmar que a arquitetura clássica “sempre vai produzir uma origem auto-evidente [mas não] procedimento auto-evidente a priori capaz de conferir a uma origem mais valor do que a uma outra”. (17)
A ficcionalidade do pressuposto do como se possibilitou a Eisenman propor uma “ficção arbitrária, sem valores extrínsecos derivados do significado, da verdade e da eternidade”. (18) Esta possibilidade de imaginar uma origem artificial, ou seja, um começo ainda sem valores atribuídos, ou se quer dependente de uma relação com um fim, ou mesmo não condicionada por fatores externos, leva-o a afirmar que esta condição “é capaz engendrar procedimentos auto-evidentes dotados de uma motivação interna”. (19)
A aproximação explícita
Com o arbitrário, Eisenman articula que as origens podem ser artificiais e relativas, um simples ponto de partida, sem qualquer valor. E para mostrar que o arbitrário ou artificial a que se refere não tem conexões naturais (20), ele exemplifica o arbitrário da origem artificial com o enxerto. Ao conectar o arbitrário ao enxerto e, posteriormente, ao traço, conseqüentemente, a presença e a ausência, Eisenman, explicitamente, demonstra, a partir das notas explicativas (21), sua apropriação derridiana já que todos estes termos são operadores textuais de Derrida.
Eisenman expôs que seu argumento “é basicamente similar ao uso de enxerto feito por Jacques Derrida” e finalizou dizendo que “as principais diferenças são de ênfase e terminologia”. (22) Para Derrida “a desconstrução é, entre outras coisas, uma tentativa de identificar enxertos nos textos que analisa: quais são os pontos de conexões e tensões nos quais um argumento, uma linha ou um elemento derivado se entrelaçam?”. (23) A esta citação de Jonathan Culler, parcialmente também utilizada por Eisenman, a presente análise soma: “o enxerto é a própria figura da intervenção”. (24)
No decorrer do seu livro, Culler apresenta alguns tipos de enxertos realizados por Derrida que vão além do ato de identificar, eles conjugam: (1) dois discursos lado a lado produzindo quiasmas, (2) um discurso acima do outro e dá ao mais baixo um caráter de comentário, (3) um mesmo discurso mostrado pela repetição de sua estrutura, ou mesmo o ato de (4) introduzir um texto menor e desconhecido, ou uma nota, em outro texto tomando este o caráter principal. Além de um quinto tipo de enxerto relacionado a técnicas poéticas que exploram, dentre outras, relações fonéticas e semânticas estabelecidas por um único termo.
Eisenman por sua vez, expõe três qualidades do enxerto para sua acepção: “(1) o enxerto começa com a conjunção arbitrária e artificial de (2) duas características diferentes que são instáveis em sua forma inicial. É essa instabilidade que provê a motivação (a tentativa de retornar à estabilidade) e permite que a modificação tenha lugar (3)”. (25) Entretanto, em sua nota explicativa, ele deixou claro que não pretendia descobrir enxertos, mas sim introduzir enxertos.
Aqui se questiona se, ao reconhecer apenas uma faceta do enxerto “como elemento que se pode descobrir”, Eisenman estaria negligenciando as outras características do enxerto para dizer que o que pretende fazer é na essência diferente do que Derrida propôs? Isto é ratificado ao expor que “visa transpor essas idéias de um quadro puramente analítico para um programa de trabalho, [...] mais preocupado em saber o que acontece no processo consciente de introduzir enxertos do que descobrir os que tenham sido postos inconscientemente em um texto”. (26) Para criar o seu entendimento sobre o enxerto, Eisenman utilizou-se do esclarecimento de Culler, reforçou que seu conceito é bastante semelhante ao que Culler analisa, mas suprimiu que os enxertos são em si também uma intervenção, uma introdução.
Do entendimento que toma de empréstimo, Eisenman vai complementar dizendo que “essa ênfase no que parece marginal põe em ação a lógica da complementaridade como estratégia de interpretação: o que foi relegado às margens ou deixado de lado por interpretes anteriores pode ser importante pelas mesmas razões que levaram a deixá-lo de lado”. (27) Eisenman construiu sua noção de enxerto a partir de um jogo de citações de Culler que, no original, não se articulam da mesma maneira, produzindo um sentido favorável ao seu discurso.
Ao fazer esta articulação Eisenman utilizou parte do esclarecimento de Culler que tratava exatamente do último modo de enxerto identificado em Derrida. Isto quer dizer que, ao citar a ênfase no marginal como estratégia de interpretação, Eisenman está de fato citando a parte do livro de Culler que aborda o enxerto como uma operação “que toma um texto menor e desconhecido e o enxerta no corpo principal da tradição ou então toma um elemento aparentemente marginal de um texto, tal como um pé de página, e o transplanta para um ponto vital do enxerto que introduz um texto menor desconhecido em um outro texto dando a este um caráter principal”. (28)
Diante destas questões, há uma transposição do operativo analítico de Derrida a favor da lógica propositiva de Eisenman. Na sua poética, Eisenman busca transpor para o universo arquitetônico o que seria analítico (identificar enxertos) como propositivo (introduzir enxertos). Estrategicamente desconsiderando a própria característica intervencionista do enxerto de Derrida, Eisenman afirma esta transposição como uma diferença de ênfase, enquanto a diferença de terminologia se dá pelo fato do enxerto ser utilizado apenas como um exemplo de arbitrário que pertence a sua proposição.
Voltando ao corpo do texto, Eisenman afirmar que “um enxerto é um local inventado, que possui menos a característica de um objeto que as de um processo”. (29) Para Eisenman “o enxerto é arbitrário porque provê uma opção de leitura que não introduz no processo nenhum valor extrínseco”. (30) O enxerto pode ser encontrado dentro da própria arquitetura, o que o interliga a noção de ler a arquitetura como texto, e, conseqüentemente, o desconecta da condição natural já que a arquitetura é por natureza artificial. O “enxerto não é necessariamente um resultado factível, mas somente um local que contem uma motivação para ação – isto é o início de um processo”. (31) A este entendimento de enxerto Eisenman ligou à noção de différance de Derrida.
Utilizando-se novamente das explicações de Culler, sua nota inicia-se com uma citação direta que dela se destaca o “traço instituído” como elemento que se aproxima da motivação. Para Derrida, a différance consiste “na alternância indecidível”, na ambivalência de dois aspectos ou dois valores que uma mesma figura textual pode significar, sendo a sua compreensão dependente de um contexto. Derrida elucida a différance como
uma estrutura e um movimento que não pode ser concebido na base da oposição presença/ausência. Defférance é um sistemático jogo de diferenças, de traços de diferenças, do espaçamento pelo qual os elementos se relacionam uns com os outros. Esse espaçamento é a produção (...). (32) Nenhum elemento pode funcionar como signo sem se relacionar a outro elemento, que por sua vez não está simplesmente presente. Esta ligação significa que cada elemento é construído com referência ao vestígio que contém de outros elementos da seqüência ou sistema. (...) Nada, seja nos elementos ou no sistema, está em nenhum lugar simplesmente presente e ausente. (33)
O ‘traço instituído’ referenciado mais acima e o ‘vestígio’ na citação supracitada são o mesmo elemento. (34) Portanto, a motivação é exatamente semelhante à différance de Derrida. O que se percebe de fato é uma manipulação das idéias a favor da construção poética do que propriamente uma deturpação do sentido. A différance, que em Derrida delineia a discussão do sentido, leva ao enxerto por este produzir o sentido. No discurso de Eisenman o que ocorre é uma inversão de ordem na apresentação das idéias: primeiro ele apresenta o enxerto para depois falar da motivação/différance, enquanto Culler apresenta primeiro a différance e depois o enxerto. E aqui, a ordem dos fatores não alterou a relação entre Derrida e Eisenman.
A motivação para Eisenman “toma uma coisa arbitrária [retirada da leitura da arquitetura como texto e a insere como um enxerto no processo, que] (...) implica uma ação e um movimento concernentes a uma estrutura interna [à arquitetura] portadora de uma ordem inerente e de uma lógica interna” [grifo nosso] (35). Dentro deste contexto, para Eisenman “a arquitetura arbitrária ou intencionalmente fictícia antes se encontra na natureza intrínseca de sua ação do que na direção de seu curso”. (36)
Por fim Eisenman demonstra de forma objetiva que “o processo de composição ou transformação” da arquitetura, seja esta clássica humanista ou modernista humanista tardia, parte de uma estratégia causal de adição e subtração dos elementos de composição espacial a partir de uma origem. E contra isto, contra o processo resultante de relações causais, contra o fim idealizado da arquitetura conhecido a priori, ele propõe o fim do fim a favor da liberdade de invenção e concretização de um futuro ficcional.
Se antes Eisenman disse que a origem arbitrária possui uma motivação para a ação, sendo esta o início do processo, agora ele, ao propor o fim do fim, acrescenta e converte o processo em modificação. Sobre a modificação, Eisenman adiciona outra nota explicativa e, toma de empréstimo os esclarecimentos de outro autor, Jeff Kipnis, que considera a modificação como um modo de extensão que compõe a decomposição. A extensão é um movimento qualquer a partir da origem e a modificação preserva evidências da condição inicial de um movimento qualquer. Percebe-se que a modificação de Kipnis converge com a différance de Derrida, especificamente, pela sua condição de ‘traço instituído’ ou ‘vestígio’ já mencionado anteriormente.
O processo convertido em modificaçãoi é condicionado a uma tática livre pela proporia invenção da origem arbitrária, pois reinventa a cada circunstância do fazer arquitetônico uma motivação que é, por sua vez, provisória, já que não precisa ser igual em todos os processos. Tudo isto está diretamente ligado a ler a arquitetura como um texto. Imagine, como se, o fazer arquitetônico iniciasse na leitura da arquitetura como texto, pois é nela que irá encontrar a motivação para configurar uma origem arbitrária. Esta invenção da origem arbitrária decorre de uma tática livre que a cada fazer arquitetônico pode se diferenciar, já que emana da ação de leitura da arquitetura.
Quando Eisenman afirma que “a forma arquitetônica revela ser mais um ‘lugar de invenção’ do que uma representação a serviço de outra arquitetura ou como um artifício estritamente prático”, ele intenta demonstrar que todas as formas arquitetônicas existentes podem servir de informação textual para invenção de uma origem arbitrária, que no processo do fazer arquitetônico como modificação não irá apresentar-se de maneira representacional e sim por seu vestígio.
O encadeamento de Eisenman assevera que o fim do fim é o fim da representação do objeto como um único assunto metafórico. Ele admite a metáfora como pertencente à arquitetura, porém propõe que esta não seja representacional entre dois edifícios ou entre os edifícios e os espaços. Para ele no processo convertido em modificação a metáfora geraria imagens não-representacional decorrente da “poética potencial de um texto arquitetônico”.
Quase ao fim de sua poética Eisenman propõe “a idéia da arquitetura como ‘escrita’ em oposição à arquitetura como imagem. O que está sendo ‘escrito’ não é o objeto em si – sua massa e volume – mas o ato de dar forma”. (37) A palavra escrita entre aspas pode ser uma metáfora associativa à filosofia de Derrida. O “ato de dar a forma” é o “lugar de invenção”, a origem ficcional. Este ato condiz com o que a desconstrução é para Derrida: um processo alocado no próprio texto e não possui um método fixo, pois uma cena de leitura pode ser vista por diferentes recortes, assim como para cada um pode haver um conjunto de dispositivos que se coloca em aberto e que só podem ser agenciados no ato de descontruir. (38)
Eisenman se assemelha a esta noção da desconstrução de Derrida porque para ele não é o objeto final que está sendo escrito, mas o processo que se instaura a cada fazer arquitetônico. As relações com o contexto e o sentido, ao apreender a arquitetura como texto, permite identificar diferentes dispositivos ou operadores textuais para utilizar a terminologia derridiana. O que distingue os dois, nesta questão, é ver este ato como “lugar de invenção”.
Derrida via sua atitude diante do texto como uma invenção e, principalmente, como uma crítica e um questionamento sobre a estrutura filosófica universal, apresentando outra possibilidade do raciocínio filosófico. A palavra invenção esta ligada à faculdade de imaginação, de criação, de experimentação e de expressão. Entretanto, entre Derrida e Eisenman esta é incorporada de forma distinta.
Wolfreys (39) demonstra que “(...) Derrida não inventa significado no sentido de produzir alguma coisa original e única, pela primeira vez. Em vez disso, ele dá à invenção seu outro significado, aquele que, embora menos obvio, é, contudo, naquela palavra, o sentido de encontrar o que já está lá, porém, arquivado, enterrado, encriptado”. Já Eisenman demonstra no seu discurso querer “alguma coisa original e única”.
Ao final, Eisenman imputa claramente o termo traço como representante de sua proposta de arquitetura como escrita. Mas é em uma nota explicativa que melhor esclarece seu aspecto.
A arquitetura se torna texto em vez de objeto quando é concebida e apresentada como um sistema de diferenças e não como uma imagem ou uma presença isolada. O traço é a manifestação visual desse sistema de diferenças, um registro de movimento (sem direção) que nos induz a ler o objeto presente como um sistema de relações com outros movimentos prévios ou subseqüentes. (40)
O traço é o elemento que interliga o “ler a arquitetura como texto” e “a idéia da arquitetura como ‘escrita’”. Como o próprio Eisenman destaca, ele “é o registro da motivação”, uma marca de seus processos internos, “não uma imagem de outro objeto-imagem”. É o traço que estimula a leitura da arquitetura.
Entretanto, a utilização do termo traço por Eisenman é distinta do que Derrida diz em um único sentido. Derrida ao tratar do traço como movimento diz que a presença deste último “é concebível na medida em que todo instante já é marcado por traços do passado e do futuro. Ou seja, o movimento pode estar presente apenas se o instante presente não é algo dado, mas um produto da relação entre o passado e o presente”. (41) Para Derrida o presente não pode servir de base se for autônomo, ou seja, se não considerar o passado como um antigo presente e o futuro como um presente antecipado. Derrida trata o presente como a ‘presença’ de uma ausência generalizada. Eisenman interpreta esta posição como a impossibilidade de isolar a ‘presença’ como entidade, o que contradiz as convicções intuitivas de que o presente é absoluto.
Independente desta distinção, Eisenman constrói o seu discurso contaminado pelo pensamento de Derrida, utilizando figuras textuais, apresentando o pensamento de Derrida como um suplemento. De forma sucinta, o próprio ato de escrever serve de suplemento para a fala. O suplemento é algo extra, exterior, completo em si mesmo, que adiciona algo a alguma coisa que deveria ser completa em si mesma. A suplementação é possível por uma lacuna originária. (42)
A lacuna originária ou fenda para Eisenman está no próprio clássico que não alcançou mudanças significativas na história da arquitetura. O suplemento e a fenda são operadores textuais de Derrida utilizado aqui para explicitar a maneira envolvente como Eisenman suplementa sua fenda com os operadores textuais de Derrida, utilizando-os como metáforas para explicar a necessária mudança na arquitetura.
O discurso escrito de Eisenman é um discurso tradicional. Uma construção retórica e não uma desconstrução de um texto pré-existente. É interessante perceber como a contradição faz parte do discurso contemporâneo, pois ao mesmo tempo em que Eisenman propõe pensar a arquitetura a partir de suas relações intrínsecas ele mesmo utiliza-se, para construção de seu discurso, referências extrínsecas ao discurso arquitetônico. Entretanto, não se pode deixar de admirar o caminho que o pensamento de Eisenman percorreu para “desconstruir” sua linguagem e construir sua “desconstrução”.
Entre a crítica e a admiração está entre o reconhecimento da distorção derridiana a favor da construção de uma poética-retórica e o entusiasmo na proposição de uma nova forma de ver e pensar a arquitetura como processo a partir da identificação de um problema interno a própria arquitetura.
notas
1
PARREYSON, Luigi. Os problemas de estética. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 19972
Retirada do Dicionário Aurélio, a retórica é caracterizada pelo inventio, ou seja, a descoberta de argumento; pelo disposito – o arranjo de idéias; e pelo elocutio que é a descoberta de expressões apropriadas para cada idéia.3
Para Eisenman, a arquitetura como representação sempre simulou o sentido, pois buscava aludir “um outro objeto, seja ele arquitetural, antropomórfico, natural ou tecnológico”. Assim como simulou a idéia de verdade e simulou a história ao dizer “que a arquitetura pode remeter simultaneamente ao atual e ao universal”. Na construção de seus argumentos, Eisenman vai afirmar que o problema da arquitetura está no apelo clássico as origens desde o (re)nascimento da arquitetura clássica. Antes a idéia de origem “auto-evidente, [onde] seu significado e importância dispensavam explicações” difere da origem renascentista, procurada em fontes naturais, divinas ou antropomórficas. Já no Iluminismo, a origem descoberta “um processo racional de concepção da forma cuja finalidade fosse um produto da razão pura (...) isto é, a determinação lógica da forma a partir de tipos a priori”. Ou mesmo no modernismo, onde a origem é fruto de um continuum histórico da relação entre a representação da função da arquitetura e sua forma.4
Todas as citações de Peter Eisenman são referentes ao texto O fim do clássico: fim do começo, o fim do fim (1984). In: NESBIT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naif, 2006, p. 233-252.5
BAUDRILLARD, Jean. Simulações e simulacros. Lisboa: Relógio d’água, 1991.6
HUCHET, Stéphane. Paradigmas arquiteturais e seus devires: Durand, Duchamp e Eisenman. In: Desígnio Revista de História da Arquitetura e Urbanismo / Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP. n.1 - março, 2004 – São Paulo: Annablume.7
EISENMAN, 1984, p.242.8
WOLFREYS, Julian. Compreender Derrida. Petrópolis: Vozes, 2009, p.20.9
Idem, ibidem.10
O conteúdo unificador está na simulação do clássico na arquitetura.11
CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: Teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997, p.126.12
O intemporal está ligado ao eterno, e esta noção se perdeu no século XV quando a realidade temporal foi estabelecida a partir da existência da origem e reforçada no século XIX com a noção de causalidade.13
CULLER, 1997.14
EISENMAN, 1984, p.243.15
Esta oposição foi melhor desenvolvida na construção do argumento crítico sobre a arquitetura em suas três ficções, representação, razão e história, entendidas como simulação. Para tal ler: O fim do clássico: fim do começo, o fim do fim.16
EISENMAN, 1984, p.243.17
Idem, p.250.18
Idem, p.243.19
Idem, p.244.20
De fato, em muitos momentos da história da arquitetura o arbitrário esteve presente na atitude do arquiteto, mas sempre em afinidade com as coisas naturais. Por exemplo, no Renascimento: o princípio de proporção era definido por cada arquiteto de forma arbitrária, porém diretamente relacionada a fatores antropomórficos. Para tal ver: D’agostino. Geometrias Simbólicas da Arquitetura. São Paulo: Hicitec, 2006.21
Esta conexão é feita pela obra de Jonathan Culler que o presente texto também utiliza para a análise. A obra On Deconstruction: Theory and Criticism after Structuralism. Ithaca: Cornell University Press, 1982, foi publicada em português em 1997 pela editora Record.22
EISENMAN, 1984, p.250-251.23
CULLER, 197, p.155.24
Idem, p.162.25
EISNMAN,1984, p.250.26
Idem, p.250.27
CULLER apud EISENMAN, 1984, p.250-251.28
CULLER, 1997, p.160.29
EISNMAN 1984, p.244.30
Idem, p.244.31
Idem, p.244.32
DERRIDA apud CULLER, 1987, p.113.33
Idem, p.115.34
A diferença terminológica de traço e vestígio decorre da tradução dos textos. A versão em português de Culler usou vestígio enquanto a tradução de Eisenman na versão em português do livro da Nesbitt usou traço. Com isto, os termos traço e vestígio são nas traduções sinônimos.35
EISNMAN, 1984, p.244.36
Idem, ibidem.37
Idem, p.246.38
CULLER, 1987; NASCIMENTO, Evandro. Derrida Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
39
WOLFREYS, Julian. Op. Cit., p.54
40
EISENMAN, 1984, p.25141
CULLER, 1997, p.109.42
Idem, 1997.
sobre a autora
Manuella Marianna Andrade é Arquiteta, mestre e professora Assistente I da FAU UFAL.