"Todo artista constrói o chão para os próximos passos."
Flavio Motta
Sempre devemos nos ter perguntado sobre o significado de um dos croquis apresentados por ocasião da publicação inicial do projeto do MUBE. Ele mostra uma grande pedra escura encravada no chão, atrás de uma viga ou laje pela qual a visão desta rocha se enquadra num horizonte (Fig. 01). A dúvida, entre laje e viga se dissipa quando se observam figuras humanas desenhadas, numa redução progressiva de tamanho, gerando, ao mesmo tempo, uma perspectiva ou plano de piso que insinua um horizonte. Conclui-se ser uma laje sob a qual as pessoas passeiam livremente, tendo a pedra no chão, como referência.
A pedra no chão é, sem dúvida, reconhecida como um marco, um sinal, uma “pedra fundamental”, ou também uma “pedra angular” que os ingleses denominam de “cornerstone”. O histórico da instalação deste elemento é, até hoje, entendido como o cerimonial que reside na colocação da primeira pedra colocada, como ato inaugural de uma construção. Esta é um sinal inicial importante, além de fundador, porque desde a cerimônia de sua instalação, todas as outras pedras acrescidas à obra, derivariam de seu posicionamento, portanto, nela residiria o princípio de toda a estrutura a ser edificada.
Entretanto este sinal presente no croqui não é observável com clareza na edificação atual do Museu. O edifício definido por seu grande pórtico, tido como uma “pedra no ar”, embora carregue o significado de demarcar um território, dificilmente pode ser visto, como uma “pedra fundamental”.
Este artigo envolve uma interpretação sobre a proposição do Museu, esta pedra arquetípica que está no croqui e a “pedra no ar” facilmente reconhecida no projeto do Museu Brasileiro de Escultura – MUBE, realizado por Paulo Mendes da Rocha e equipe (1), entre 1986-8. Seu ponto de vista é, ao investigar algumas relações no desenvolvimento dos procedimentos projetuais observáveis no projeto do Museu, compreender a proposta de ampliação, com a concepção de um anexo desenhado pelo próprio arquiteto, em 1990.
Nas recordações do tempo, como estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, reside a lembrança da frase do Prof. Flávio Motta (2): “Todo artista constrói o chão para o próximo passo”. É a partir dela que se pretende refletir, de maneira breve, acerca do projeto do MUBE e de seu anexo, visitando alguns percursos de Paulo Mendes da Rocha (PMR), dentro do conjunto de sua obra e de seu tempo.
Duas visões estão subentendidas nesta citação do Prof. Motta. A primeira implica a consideração que o arquiteto desenvolve percursos, pesquisas, busca de linguagem e repertório num desenvolvimento próprio – o caminho que constrói para seus próprios passos. A segunda entende que as ocupações e os predicados de uma obra se estabelecem por meio dos vários percursos construídos, ou seja, que o caminho aberto, por cada um, pode ser resgatado de diversas pavimentações criadas ao longo da história dos dispositivos que o homem criou para dar habitabilidade ao planeta.
De fato, a obra de PMR insere-se num conjunto de proposições da arquitetura moderna internacional, brasileira e, sobretudo, paulista. Enquanto proposta arquitetônica, observa-se que sua geração já nasceu num terreno fértil da modernidade podendo, superadas as querelas estilísticas enfrentadas pelas gerações anteriores, adentrar por outros caminhos, sinalizar novas proposições.
Compreende-se assim, que o MUBE, como projeto, é uma continuidade de propostas anteriores, Como é uma proposição peculiar e nova.
Enquanto continuidade, o projeto segue duas estratégias tão caras aos desenhos do arquiteto e de vários de seus predecessores: a primeira é o uso do plano horizontal (3), como placa ou volume habitável pousado sobre o solo, e a segunda é a movimentação do próprio “terreno, como um artefato que ambienta o pouso daquela placa ou daquele volume, numa engendrada geografia.
Enquanto peculiaridade, o projeto confirma uma determinada condição de essencialidade da arquitetura na cidade ao exprimir, com substantividade, a clareza de seus elementos. Portanto, sua singularidade se insinua de forma incisiva e inerente à lógica de suas próprias formas, como recorda Segawa (4):
Paulo Mendes da Rocha é um dos grandes arquitetos que desenvolvem uma linguagem personalizada, independente de tipologia ou escala de intervenção. Sua obra é de imediato reconhecimento, capaz de arquiteturas com impressionante inserção na paisagem, de maneira provocativa e provocadora.
Nas andanças pela obra de PMR, várias referências podem ser observadas nas rotas já abertas pela arquitetura. Das muitas fontes que ocorriam por volta dos anos 1970, Flávio Motta, por proximidade, apresenta duas presenças marcantes.
Avançaremos a hipótese de que Paulo Mendes da Rocha encontrou em Niemeyer a tônica do confronto Arquitetura-Natureza, e, em Artigas, Arquitetura-Sociedade. Seria restringir no texto aquilo que é tão rico no contexto. Mas diremos: em um, Niemeyer, na ocupação da Natureza pouco comprometida pela ação do homem - a arquitetura se destaca cheia de sobriedade, daquela mesma "sobriedade" de que fala Lúcio Costa ao tratar da arquitetura dos padres no nosso passado colonial; em outro, como Artigas, é pelo trato, pelo convívio com os conflitos do homem em sociedade, em busca de um viver que garanta a presença desse homem. (5)
É evidente que o desenvolvimento destas referências pode ser enriquecido pela utilização de uma árvore genealógica infindável e, talvez, caótica, pelo emaranhado das decifrações possíveis. Árvore que traria enormes exemplos postos à disposição das mais diversas interpretações que incluiriam, certamente, Le Corbusier, Mies, Wright, Reidy e muitos outros, o que não é o objetivo deste artigo, mas interessará enquanto mito da origem imemorável da arquitetura.
Uma característica marcante, nas mais diversas obras de PMR é a de que: de sua concepção da estrutura clara e concisa resulta a obra arquitetônica. Máxima corrente entre seus contemporâneos. Operada passo a passo, pelo desenvolvimento da obra de Artigas, visualizada, sem dúvida, nos projetos de Reidy, Lina e nos próprios projetos e revisões empreendidos por Oscar Niemeyer. Relação entre estrutura e forma como definidora da solução arquitetônica.
Atribuir à estrutura material do edifício um papel de fundamento da solução formal é constantemente observável em PMR. Princípio que a acolhe como uma continuidade de um entendimento moderno. No ideário moderno, a identidade entre forma-estrutura se revelou de diversos modos. Em alguns deles se manifestou, por meio de exoesqueletos, expondo a estrutura como uma ossatura de alto vigor plástico, por exemplo: Le Corbusier, no Palácio dos Sovietes (1930-1), Reidy, no MAM (1953-4). Em outros se apresentou nos elementos arquitetônicos que se desenhavam como suportes das linhas de força das cargas do edifício – por exemplo, Artigas, nas colunas da FAU (1961-2), ou o próprio PMR, nos apoios da cobertura do Clube Paulistano (1958).
Entretanto, esta continuidade sofre, em PMR, uma peculiar inflexão. No seu entendimento, a gravidade deve ser compreendida e manifestada, não só naquilo que é, historicamente, mais próximo ou semelhante, mas no que se pode expressar pelo imemoriável ato de “erguer as pedras”.
A manifestação da forma-estrutura vai consistir, em muitas de suas obras, na expressão da magia da sustentação, mediante um desenvolvimento não linear, porém astucioso de “pousar” a arquitetura. Em muitas de suas obras, ao invés da ossatura comparecer como uma musculatura, ela vai adquirindo o encantamento de sua atenuação. Esta operação se deve, em grande parte, à utilização de dois estratagemas: o primeiro é o de não revelar, exteriormente, os suportes, deixando-os recuados nas sombras de lajes com duplo balanço (projeto de sua residência, 1964), ou fazendo com que paredes estruturais desçam até o solo, sem que apoios possam expressar sua substantividade (loja Forma, 1987).
Nestes dois tipos de solução, a busca sempre é de um predicado de leveza, ao propor a percepção de um plano ou volume pairando no ar. No caso da residência, a conquista é acentuada pela movimentação do solo. Os taludes criados no terreno quase se encostam ao volume, deixando apenas uma fresta que faz o olhar indagar como o volume da casa se sustém. No caso da loja, a “levitação” ocorre na surpreendente suspensão da vitrine, realizada por meio dos elementos de sua fixação. Um imenso painel metálico é arrematado, em sua base, por um painel de vidro. Este, por sua vez, se apóia no vértice de um triângulo, de um plano em chapa metálica, que dissolve a espessura da laje. Nas laterais, o encontro do vidro ocorre na ponta, também triangular, da parede estrutural das empenas do edifício. Os detalhes observados são claras tentativas no sentido de desmaterializar qualquer noção de apoio do volume da loja.
Nos dois exemplos, pode ser notada outra peculiaridade dos projetos de PMR. Quase sempre comparece uma estreita faixa horizontal sob os volumes que, ao invés de acentuar os seus pesos, incitam a curiosidade sobre sua suspensão.
Outra estratégia de continuidade é a da divisão do programa em duas grandes componentes: uma parte contendo vários dos ambientes funcionais e outra, que acolhe o ambiente principal ou mais significativo. De fato, este recurso é, reconhecidamente, utilizado em diversas obras de arquitetura, por permitir ao arquiteto, ao acomodar vários espaços funcionais numa base inferior, disponibilizar para o ambiente mais significativo um volume pelo qual se poderá realizar a definição mais “livre” e expressiva do edifício. O Neue Nationalgalerie (1962-8) de Mies e a casa de Canoas de Oscar Niemeyer (1951-4) são excelentes exemplos deste ardil compositivo.
Na obra de PMR, esta configuração também está presente, mas com uma particularidade: as relações entre base e volume superior tendem a ser realizadas por meio de desenhos, nos quais o volume inferior se propõe não ser somente uma base, mas realizar uma geografia própria, com a finalidade de receber o volume superior. Esses desenhos se manifestam pelo uso, em corte, de movimentos do terreno, meios pisos, taludes, ambientes, acomodando, ao mesmo tempo, o programa de necessidades, com os níveis do terreno e as disponibilidades de geração de espaços para a estrutura do volume superior.
Ocorre que nos projetos de PMR, como em diversas obras de Artigas, as relações entre base funcional e volume da cobertura encontram intrincáveis conexões de percursos, espaços e ambientes complexos, dentro de uma estrutura regular, ao mesmo tempo formal e construtiva.
Esta disposição pode ser observada, por exemplo, nos projetos anteriores do Ginásio do Paulistano (1958), Pavilhão de Osaka (1969), Centro Pompidou (1971), MAC/USP (1975), Biblioteca do Rio de Janeiro (1984). Em todos eles, a utilização de dois elementos de organização do programa permite que, sobre uma base criada pelo desenho de um “solo”, se viabilize a expressão de uma forma-estrutura-cobertura.
Esta operação caracteriza o principal modo de operar do arquiteto. Assim, a obra afirma, com clareza, uma conexão entre lote e edifício pela superposição de duas de suas estratégias recorrentes. O uso do plano horizontal, como placa ou volume e a movimentação do terreno, como ambiente do programa ou elemento de uma geografia, que faz acontecer o plano como elemento funcional, expressivo. No caso do Museu, como resultante se tem uma sombra sobre a praça de articulação entre as duas ruas, a esquina e os níveis de acesso.
No entender de Sophia Telles para PMR:
O projeto não é uma estrutura transparente, mas uma relação transparente entre dois planos paralelos à projeção da cobertura – uma figura geométrica íntegra, estática, portanto e a linha solta de uma superfície em movimento. A chave de seu partido é a implantação, uma delicada operação de escalas que mantém uma proximidade quase física entre dois planos: a construção e o terreno. (6)
No MUBE, este primeiro plano é definido como um grande pórtico. Uma viga em concreto protendido, uma barra que, sobre dois apoios independentes, pousa sobre o terreno. Colocada perpendicularmente ao eixo da Avenida Europa, num vão livre de sessenta metros de extensão (doze de largura e dois metros de altura) assinala a presença do museu fazendo-se referência na paisagem. Uma “pedra no céu”?(Fig. 02) Um elemento trilítico? Um grande plano horizontal que, desafiando as leis da natureza, sombreia e acolhe uma praça?
Na ausência de projetos museológicos ou museográficos bem definidos, o MUBE parece assumir pela arquitetura a condição de um valor evocativo. Em paralelo a Foucault, se pode pensar que o pórtico do MUBE é uma síntese que configura a memória do que é construção: dólmen, sistema trilítico, pórticos, portadas, etc. A “pedra no céu” é utilizada como símbolo e memória de todas as arquiteturas, para constituir um artefato material “permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberto ao público e que adquire, conserva, investiga, difunde e expõe os testemunhos materiais do homem e de seu entorno, para educação e deleite da sociedade”. (7)
De uma forma geral, em uma sociedade como a nossa, heterotopias e heterocronias se organizam de um modo relativamente complexo. [...], museus e bibliotecas são heterotopias onde o tempo não cessa de se acumular e de se sobrepor a si mesmo, [...]. Mas, a idéia de acumular tudo, de estabelecer um arquivo geral, o desejo de manter num único lugar, todos os tempos, todos os gostos, a idéia de constituir um lugar que congregue todos os tempos que são por si só fora do tempo, o projeto de organizar deste modo um tipo de acumulação perpétua e indefinida do tempo, em um lugar imóvel, esta idéia de todo pertence à nossa modernidade. O museu e a biblioteca são heterotopias próprias da cultura ocidental do século XIX. (8)
O MUBE registra esta acumulação e intenta, do ponto de vista de sua arquitetura, expressar sua perenidade. O grande pórtico é uma memória das instalações humanas. A grande laje é uma sombra, um abrigo sobre uma passagem. Um artefato da cidade que induz ao percurso cotidiano entre duas ruas, ao mesmo tempo em que monumentaliza o acesso ao seu interior.
O pórtico do MUBE é um arquétipo da arquitetura como intervenção humana sobre o território, “um modelo ou exemplar originário, de natureza transcendente, que funciona como essência e princípio explicativo para todos os objetos da realidade material.” (9).
Montaner o entende como uma “forma intemporal de museu entendido como lugar público, que se caracteriza por uma praça e um pórtico gigantesco, e como cripta, tesouro ou escavação arqueológica, atribuindo-lhe uma forma enterrada.” (10)
No comentário de Delijaicov (11) há uma sucessão de memórias e fragmentos envolvidos na definição da obra: ancoradouros do cais de Vitória (cidade onde PMR nasceu), canais de Veneza, a cripta, a furna, os jardins do Brasil, a selva controlada, as primitivas construções da antiguidade, a sala de máquinas, as grandes estruturas da engenharia etc.
Registros de diversas ações humanas de criação do habitar, memórias de um contínuo e incessante percurso do provir e prover da nossa existência: “Como quien sabe que el habitat no está fundado de una vez y para siempre, el acto de la fundación ritual del lugar se muestra, en el MUBE, en su dimensión constructiva y estética, e ilustra la continua actualización del arcaísmo que supone el ‘habitar’ ”. (12)
Ao lado destes registros memoráveis e atemporais, que poderiam caracterizar uma abstrata solução de implantação, encontra-se o entendimento de Bastos (13) ao analisar as obras do arquiteto. Segundo a autora, a partir dos anos 1980, na definição dos projetos de PMR, há uma forte absorção dos elementos urbanos do entorno, não mais se fixando, como era de seu feitio, apenas na predominância das implantações tipo ou na inflexibilidade das volumetrias puras. Ao comentar a implantação do museu, Bastos defende que, no projeto do MUBE, a planta não se furta a organizar a paisagem numa sucessão de planos em diferentes níveis, assumindo angulações devidas ao desenho do terreno, sem o desejo de caracterizar uma genérica proposta de implantação.
Entretanto, se a solução de dobrar a esquina registra uma inflexão nos procedimentos de PMR, sua adoção no desenho do subsolo, responsável pela organização do território, não foi uma decisão de primeira instância (Fig 03).
Embora já registrada nos elementos e arranjos do projeto da casa em Catanduva (1979) (Fig. 04), não se pode afirmar com precisão as origens de sua adoção. Os croquis disponíveis revelam que a solução mais marcante do desenho do subsolo/térreo, ou seja, o desenho da parede que acompanha o ângulo agudo da inflexão da rua (área do auditório e da cantina) não comparece como uma proposição inicial, mas resultado de uma decisão elaborada, ao longo do processo projetual.
Na casa não se percebem com a mesma clareza que se apresenta no desenho do Museu as inflexões implicadas na geometria do lote na cidade. No projeto da residência estas inflexões parecem surgir como diferenciações formais para caracterizar o agenciamento entre pavilhão, piscina e casa, enquanto no Museu, além disso, se referenciam ao desenho do lote, tanto em corte (desnível entre as duas ruas) como em planta (adoção de paralelas e perpendiculares aos limites do terreno). É nítido que, para o equacionamento da implantação, o arquiteto tenha utilizado parte do arsenal de seu repertório, como se observa na clara alusão à solução de Catanduva [fig. 04]. Na proposição do arquiteto reconhecemos a memória de outros percursos já pavimentados: Henri Moore com seus côncavos e convexos e René Magritte com a magia da levitação da pedra são citados por PMR quando comenta, em 1986: ”Quando desenhei a casa , em 1979, não sabia muito bem se poderia falar disso.” (14)
Interessa-nos verificar este procedimento, pois revela uma condição entre ser e estar e se o Museu é o lugar de “reunir todos os tempos”, ele está num lugar, assim:
A aparente distorção da planta e seus ângulos agudos e deslocamentos de eixos se mostra, na verdade, de uma singeleza desconcertante. A planta é o rebatimento, simplíssimo, em escala quase natural do perímetro do lote que só então reconhecemos em sua geometria deformada. Não se trata de comentar as inflexões do lote, mas, ao contrário, fazer vê-lo. (TELLES, 1990,90) (15)
Os croquis conhecidos revelam que o auditório inferior esteve situado numa posição paralela ao auditório da praça, observação compartilhada com SCHENK (2010) (16). O espelho d’água triangular, tão marcante da aceitação da esquina, também não comparece no desenho do memorial do concurso [fig 05].
A praça seca, que se configura para o pouso da laje, tampouco se manifesta. Ao contrário, o memorial e o desenho para o concurso são claríssimos propondo que: “o museu de esculturas, pinacoteca e ecologia será visto como um grande jardim, com uma sombra e um teatro ao ar livre rebaixado no recinto. A parte da ecologia, imaginamos enfrentar e sugerir sob a forma de museu do jardim no Brasil”.(17)
Os passos trilhados durante a trajetória do projeto indicam que a definição do grande pórtico se deparou com alternativas, inclusive com a utilização de um apoio, em dois arcos, em conformidade com a solução do pavilhão de Osaka [fig 06].
Intentaram-se várias configurações para o espelho d’água inferior. Inexistente no desenho apresentado ao concurso, um lago invade a área de entrada (delimitando a área administrativa) até chegar ao aspecto atual [figs. 06 e 07].
Os percursos, entre o nível da Avenida Europa e o da Rua Alemanha, também foram refinados. Parecem ter sido deixadas de lado as rampas largas e preferidas passagens mais estreitas, que propiciam “promenades” diferenciadas e convidativos pontos de paragem para a observação dos espaços projetados.
O Museu, entretanto, sempre foi criticado pela ausência de um projeto museológico, pela falta de um acervo, pela indisponibilidade de instalações para atividades de pesquisa, educativas e montagem e reparo de obras e exposições.
A crítica de arquitetura sempre advertiu acerca da ausência de espaços para estas atividades. Por exemplo, o artigo de fundo da revista Projeto /Design de janeiro de 2001, ao realizar um balanço crítico das obras de arquitetura mais significativas no Brasil, durante a década de 1990, cita o MUBE como ponto alto na carreira de PMR. Entretanto, refere-se à obra como: “o problema do MUBE é a contradição entre sua proposta e seu uso efetivo: criado sem nenhum acervo, o espaço contou com alguns curadores. Atualmente, porém, não passa de um salão de festas” (18).
Uma observação mais atenta poderia livrar o projeto desta deficiência. Em 1990, três escassos anos após o projeto concluído, PMR é convidado a projetar um edifício anexo ao museu para receber os acervos e dispor de áreas para montagem e oficina.
Para o projeto, PMR encontra a necessidade de pavimentar novos caminhos para seus próximos passos. O anexo comportaria um programa com aproximadamente 1200 m². Como e de que modo instalá-lo, no projeto do Museu sem macular as intenções já nele tão fortemente definidas?
Anexos são sempre problemas interessantes de arquitetura. Mesmo se tratando de edifícios concebidos no mesmo século, normalmente, são executados por outros arquitetos, alguns anos depois das concepções originais, como o anexo do Museu Guggenheim (Wrigth/1956 e Gwathmey/1992) ou a ampliação do Museu de Arte Joslyn (John e Alan Macdonald/1931 e Norman Foster/1992).
No projeto de anexos, retomam-se, além dos debates sobre os aspectos programáticos e funcionais, as questões sobre patrimônio, estilo, continuidades, colagens, fragmentações etc.
No caso do MUBE, o mesmo arquiteto, teve que intervir em sua obra, ainda não finalizada. Qual proposta teria para desenvolvê-lo? O anexo seria uma adição ou uma complementação? Como cuidar para que o desenho do pórtico continue a referência para o edifício? Como preservar o caráter público da praça sugerida?
Paulo Mendes implanta um volume de base quadrada com três níveis, no canto, ao fundo, junto ao último módulo do subsolo. Ali, funcionalmente, pode-se chegar às galerias de exposição, como é possibilitado o acesso de carga e descarga. A planta, quadrada, dispõe duas fitas laterais, uma delas se constitui num vazio que recebe escadas e plataformas elevatórias, a outra recebe sanitários e depósitos reservando, em todos os níveis, uma área central para circulações e atividades.
Evita quaisquer usos de pilotis. O volume projetado ancora-se no chão e só se comunica com o prédio por meio de uma passagem no nível do subsolo. Nada de outra “pedra no céu”, a arquitetura repousa com densidade nos níveis do terreno.
Recorre à estratégia da caixa fechada por razões de preservação de acervo e, dentro de uma continuidade com as já existentes “caixas” da escola paulista, adota uma delas como partido do anexo. A “caixa” torna-se ao mesmo tempo uma continuidade e um prenúncio de várias de suas obras posteriores. Um passo que enlaça o passado e lança o futuro. Vários de seus projetos adotarão este princípio de volume fechado (Praça dos Museus USP- 2000, Galeria Leme-2004).
A cobertura retoma o teto pelo qual passa a luz, céu de um espaço para todos, de tão marcada referência (Edifício da FAUUSP de Artigas, Pavilhão de Osaka, Cobertura da Pinacoteca): um teto-luz tecnologicamente desenvolvido, protegido por quebra-sóis que sombreariam o piso superior destinado à oficina de esculturas.
O volume não interfere na percepção do grande vão, insere-se com gabarito aproximado ao do prédio vizinho mais próximo, o do Museu de Imagem e Som (MIS). Com a luz zenital evitam-se as janelas. As paredes descem até o piso. O edifício é uma pedra no chão.
Não há janelas para ver o MUBE, o anexo é para ser observado por meio de vistas externas. Não há acesso pela praça, trata-se de uma edificação de uso interno. Ao contrário do espaço público da praça o anexo se coloca como espaço privativo.
No conjunto, o volume é disposto por dois alinhamentos geométricos precisos. Situa-se alinhado de um lado à parede pilar do pórtico e, de outro, na continuidade da linha que é gerada pela diferenciação do espaço da arquibancada/teatro aberto e esplanada de exposições. O anexo é proposto como uma “pedra fundamental”, uma “cornerstone” que, mesmo sendo projetada “a posteriori”, pode assumir sua condição de referência para definir a esquadrinhatura de toda a construção.
Em altura, o volume comparece como a pedra bruta encravada no chão. Permite sua observação sob o vão da laje, como se observa, na visão desde a esquina sobre o nível da esplanada na maquete eletrônica (Fig.09), muito semelhante ao megálito insinuado no croqui inicial.
Ao construir a entrada de carga, realiza mais um corte no terreno: uma rampa possibilita o ingresso ao nível inferior (área de exposição do museu), mantendo, entretanto, a rampa lateral de acesso da Rua Alemanha à esplanada. Assim, a “pedra no chão” mantém longe dos olhares dos passantes sua abertura ao exterior (Fig.10).
Há uma pedra no céu e há uma pedra no chão. Assim, no anexo, PMR revisita seu desejo de gerar uma “pedra fundamental”, observado desde a primeira fase do projeto. (Fig. 1). Em seus passos, agora juntas, as pedras retomam duas expressões: a imemorabilidade da arquitetura e a fundação do lugar (Fig. 12).
Os passos de Paulo Mendes da Rocha caminham com muitos outros, seguem trilhas indicadas, abrem outras pavimentações, nos fazem entender sentidos em nossas vidas e nossas buscas. No projeto do MUBE, como em muitos outros, recupera os passos dados na história dos homens e dos artifícios que eles criaram para executá-los. No seu próprio dizer:
Outra coisa interessante a considerar, pela arquitetura, é que a história, ela não existe. Ela só existe entre os seres viventes. Se a espécie fosse extinta, não há nada que você possa chamar de história. Portanto, a história somos nós e o próximo passo da história virá a ser em função de nossas ações a cada momento. (19)
Continuemos a construir caminhos.
notas
1
A equipe do projeto de concurso era composta por Alexandre Delijaikov, Carlos José Dias Dantas, Geni Sugai, José Armênio de Brito Cruz, Pedro Mendes da Rocha, Rogério Marcondes Machado e Vera Lúcia Domschke. O estudo para o concurso ocorreu em fins de 1986, o projeto executivo em 1987 e o projeto do anexo em 1990, de acordo com o arquiteto Pedro Mendes da Rocha.
2
Flavio L. Motta (1923-). Formou-se em filosofia pela Universidade de São Paulo (1947). Artista, pesquisador e professor do Departamento de História da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (USP). Teve grande participação na formação dos estudantes e nos planos de ensino da Faculdade.
3
A respeito do plano horizontal, sugere-se a leitura de dois artigos: o de Edson Mahfuz, “O uso do plano horizontal na arquitetura paulista” (disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07. 079/284e) e o de Marcio C. Cunha, “Mies e Artigas: a delimitação do espaço através de uma única cobertura” (disponível.em:http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.108/52).
4
Trecho do texto de homenagem ao Professor Paulo Mendes da Rocha por ocasião do recebimento do título de professor emérito da USP (29/06/2010). Este texto foi apresentado oralmente e uma cópia escrita foi, gentilmente, cedida pelo Prof. Dr. Hugo Segawa.
5
MOTTA, Flávio. “Paulo Mendes da Rocha”. In Textos Informes. 2ª ed. São Paulo: FAUUSP, 1973, p 20.
6
TELLES, S. S. “A casa no Atlântico”. In: “Revista AU” nº60, junho/julho,1995, p. 81.
7
Definição de museu aprovada na 20ª Assembléia do ICOM (Comitê Internacional de Museus), realizada em Barcelona, em 2001.
8
FOUCAULT, Michel. “Dits et écrits 1984, Des espaces d’autrés”. Conferência pronunciada no Cercle d’études architecturales, em 14 de março de 1967. Publicada em Architecture, Mouvement, Continuité, n°5, outubro 1984, p. 46-49. Disponível em http://foucault.info/document/foucault.heteroTopie.fr.html. Acesso em 20/09/2010
9
HOUAISS. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
10
MONTANER; J. M. Museus para o século XXI. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003, p. 55.
11
Depoimento pessoal do arquiteto Alexandre Delijaicov, membro da equipe de PMR, ao autor do artigo, em setembro de 2010.
12
VILLAC, M. I. La construcción de la mirada: naturaleza, ciudad y discurso en la arquitectura de Paulo Archias Mendes da Rocha. Tesis Doctoral. Barcelona: UPC/ ETSAB, 2000, p. 184.
13
Em artigo, Maria Alice Junqueira Bastos analisa várias obras de PMR defendendo a hipótese de que o arquiteto teria, a partir dos anos 1980, uma atitude de acolhimento das existências urbanas próximas superando as idéias de implantação genérica de seus projetos anteriores.
14
Deve ser notado que, em setembro de 1986, pouco antes de elaborar a concepção do MUBE, Paulo Mendes da Rocha escreveu um texto publicado na Revista AU nº8 Out/Novembro-1986 (São Paulo, Pini, p. 32-33) sobre a casa de Catanduva referindo-se: “A idéia de Arquitetura como escultura não é certa: uma construção que ‘pareça’ uma escultura. Mas o ímpeto do escultor, sua lógica, alguma sobreposição na urgência do nítido e do essencial na forma como linguagem, às vezes se impõe, de maneira inexorável entre Arquitetura e escultura. [...] Uma casa que pareça muito antiga para impor sua modernidade. Que diga do seu poder ser por dentro e ser por fora, sonora. Diurna e noturna, aberta, submersa na atmosfera. Como uma nave mágica feita com pedras (Magritte- Les Idées claires)”.
15
O artigo de Sophia S. Telles publicado na revista AU nº 32 (Out/Nov 1990) é o referencial mais significativo para a interpretação do MUBE dentro da obra de PMR.
16
SCHENK, L. R. Os croquis na concepção arquitetônica. São Paulo: Annablume, 2010.
17
Parte do memorial de apresentação do projeto no concurso foi publicada na revista Projeto/Design nº183, p 40-41.
18
Trecho referente a artigo da editoria da revista sobre as obras significativas da arquitetura brasileira na década de 1980. Revista Design/ Projeto nº251, p 110.
19
PMR. In: VILLAC, M. I. La construcción de la mirada: naturaleza, ciudad y discurso en la arquitectura de Paulo Archias Mendes da Rocha. Tesis Doctoral. Barcelona: UPC/ ETSAB, 2000, p. 428.
agradecimentos
Agradeço ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha a cessão de arquivos de desenhos para este estudo, bem como a atenção do arquiteto Pedro Mendes da Rocha pelo envio de alguns esclarecimentos.
bibliografia complementar
Livros e artigos
ARTIGAS, Rosa Camargo (org). Paulo Mendes da Rocha. Textos de Paulo Mendes da Rocha e Guilherme Wisnik. São Paulo: Cosac & Naify / Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais/ Fundação Bienal, 2000.
ARTIGAS, Rosa Camargo (org). Paulo Mendes da Rocha. Projetos 1999-2006. São Paulo: Cosac& Naify, 2007.
BASTOS, Maria Alice Junqueira. Paulo Mendes da Rocha. Breve relato de uma mudança. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.122/3472. Acesso em 20/09/2010)
SOLOT, D. C. Paulo Mendes da Rocha: estrutura e êxito da forma. Rio de Janeiro: Viana e Mosley, 2004.
TELLES, S. S. “Museu da Escultura”. In: “Revista AU” nº32, outubro/novembro, 1990, pag.44-51.
ZEIN, R. V. Arquitetura brasileira, escola paulista e as casas de Paulo Mendes da Rocha. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: Universidade do Rio Grande do Sul, 2000.
Revistas
AU n°8 out-nov 1986 – Publicação da Editora Pini, São Paulo.
AU n°32 jun-jul 1990 – Publicação da Editora Pini, São Paulo.
AU n°60 jun-jul 1995 – Publicação da Editora Pini, São Paulo.
Projeto n° 109 abril de 1988 - Publicação da Arco Editorial, São Paulo.
Projeto n°183 março de 1995 – Publicação da Arco Editorial, São Paulo.
Projeto Design n°251 janeiro de 2001 – Publicação da Arco Editorial, São Paulo.
sobre o autor
Rafael Perrone é arquiteto e urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP, 1973); mestre, em Administração Pública, pela Fundação Getúlio Vargas (1984); Doutor (1993) e Livre docente (2008) pela FAUUSP. É professor e pesquisador de pós-graduação das Faculdades de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie (FAUMACK).