É notável, quando analisamos uma composição arquitetônica, o papel da repetição em sua estrutura. Modulações, simetrias axiais e angulares, alinhamentos, relações proporcionais, nas plantas e fachadas dos edifícios, nos grupamentos de edificações, no tecido urbano, encontramos a repetição como pano de fundo de todos estes modos de composição. Se não diretamente a repetição, a intenção dela. Na verdade, este fenômeno transcende a arquitetura e podemos encontrá-lo em todas as formas de manifestação artística, como o que, do modo mais genérico, podemos designar por palavras como ritmo, cadência, harmonia, métrica, simetria.
Caso nos detivéssemos na provavelmente infrutífera busca das origens deste fenômeno, tão presente em todas as formas de arte, certamente teríamos que transitar por momentos nos quais aquilo que hoje chamamos de arte não poderia ser designado como tal. Não era esta a intenção daqueles que compuseram aquilo que hoje podemos pensar como as mais antigas obras de arte conhecidas. Os nem tão antigos exemplos de ideomorfos abstratos das cavernas de La Pasiega, pertencentes ao grande sítio arquelológico de Altamira, representados nas figuras abaixo, estão em sítios cujo sentido nas vidas de suas culturas é hoje amplamente interpretado como de cunho mágico-religioso (1). Há um claro sentido de modulação espaço temporal na disposição dos signos que compõe a figura 1, e evidentes intenções de simetrias axiais em vários ideomorfos da figura 2, cuja disposição dos signos a levou a ser conhecida com “a incrição”.
Nos alinhamentos de menires na Armênia (fig. 3) ou na Bretanha francesa em Carnac (figs. 5 e 6), ou mesmo nos alinhamentos de moais nas Ilhas da Páscoa (fig. 4), já se apresentam regularidades e ritmos que viriam a se transformar em cânone de regras compositivas nas primitivas culturas proto-urbanas e urbanas, como no Egito (fig. 7) ou na Grécia (fig. 8). Em ambas também encontramos essa forma particular de repetição que é a simetria axial, em pirâmides, zigurates e frontões. O mesmo nas composições urbanas, como as realizadas pelas culturas pré-colombianas, como no México (fig. 9), ou por culturas orientais como no Taj Mahal (fig. 10). Também no extremo oriente, como na sofisticada arquitetura chinesa com suas simetrias e ritmos de telhados que se repetem ao longo de um eixo vertical (fig. 11).
Para que não se estenda mais do que o necessário essa exemplificação, podemos dar um salto para este presente que se dilacera entre a construção e a desconstrução para encontrar, no antagonismo entre um van der Rohe e um Ghery (figs. 12 e 13), a presença, aparentemente inevitável, da repetição. E isso mesmo quando, como no último, a desconstrução, torção, deformação de toda a regularidade é a intenção mesma da composição. Quase como se a negação a reafirmasse. O uso de formas de repetição parece tão disseminado, tão essencial, tão universal à composição arquitetônica que poderíamos dizer, caso buscássemos definir a essência da arquitetura, que o conceito de repetição deveria necessariamente compor essa definição. Poderíamos, talvez, dizer mais: que a repetição é o modo pelo qual a arquitetura encontra e constrói a sua racionalidade e o seu sentido poético. Esta não é, no entanto, uma característica exclusiva da arquitetura. Talvez nem mesmo do conjunto das artes, ou da arte em si.
Agostinho de Hipona (354 – 430), argumentando sobre a relação entre prazer estético e razão, pondera que “temos certos vestígios da razão nos sentidos” (2). No que se refere à visão, o prazer, para ele, decorre da ordem da composição que é percebida, pois “a coerência das partes, que se diz razoável, costuma chamar-se de beleza” (3). Esta mesma relação entre razão e prazer aparece para a audição sob a forma pela qual a repetição ordena a composição musical: a cadência, pois “quando dizemos ser razoável uma harmonia e um canto tenha sido composto razoavelmente cadenciado, chama-se isso com o nome próprio de suavidade” (4).
Deste modo, Agostinho estabelece não só a relação entre uma composição racionalmente ordenada e o prazer estético propiciado pelos sentidos da visão e da audição, pois “no prazer destes sentidos isto pertence à razão” (5), como também que aquilo que identifica esta razão é a repetição no espaço e no tempo, pois, esta razão, é aquela “em que há certa dimensão e modulação” (6). Esta razão, na arquitetura, para Agostinho, expressava-se antes de tudo por meio da simetria.
Quando observamos bem cada parte deste edifício, não pode deixar de causar-nos estranheza o fato de vermos uma porta colocada no lado e outra perto do centro. Nas coisas fabricadas, não havendo nenhuma necessidade, parece que a desigualdade na proporção das dimensões das partes de algum modo fere a própria visão. No entanto, quando as três janelas no interior são devidamente colocadas, uma no centro e duas nos lados, com iguais distâncias entre si, (...) como isto nos dá prazer e alegra o ânimo; é coisa tão evidente que dispensa esclarecimento. Pelo que os próprios arquitetos dão a isto o nome de simetria.(7)
Extrapolando o âmbito da arquitetura, para aquele mais essencial, da beleza enquanto um prazer propiciado pelo sentido da visão, Agostinho retoma, em outro texto, a questão da composição racionalmente ordenada, através de um tropo com a simetria do corpo humano.
“Se à beleza do homem se tirasse uma sobrancelha, quão pouco se tiraria do corpo e quão muito da beleza, porque esta não se compõe de massa, mas da conveniência e proporção dos membros”.(8)
A relação entre razão, dimensão, proporção, modulação, todas formas da repetição, é retomada por Agostinho naquilo que se poderia entender como a definição do âmbito da disciplina da música, pois, para ele,
Neste quarto grau, seja nos ritmos, seja na mesma modulação musical, a razão entendia que dominavam os números (as cadências) e que estes completavam tudo. (...). Assim esta disciplina, que participa do sentido e da inteligência, recebeu o nome de música.(9)
A questão colocada por agostinho é, de fato, a questão essencial para aquilo que, em qualquer arte, pode ser, do modo mais geral, designado como composição, pois o prazer estético é aquilo que sentimos “quando vemos algo composto de partes coerentes entre si” (10). Uma composição é uma disposição de partes no espaço e no tempo. Dispor algo – uma janela, um som, um corpo, uma palavra – em um preciso lugar no espaço e ao longo de uma ou mais dimensões dele, em um preciso momento e ao longo de uma duração temporal; fazer isso ao longo de dimensões e durações compartilhadas por outros elementos; dimensionar as dimensões e durações de cada um, suas intensidades, a força de suas presenças diante dos outros e do todo; tudo isso caracteriza a produção de uma composição. A questão levantada por Agostinho, diz respeito ao modo pelo qual algo assim produz prazer estético. As palavras que definem este modo de compor são harmonia, unidade, igualdade. Todas elas expressam a presença e a ação de um intelecto. Não há harmonia, unidade e igualdade alguma no acaso ou no descaso. São expressão da razão, pois “quando ouvimos uma canção bem cantada, não duvidamos em dizer que ela soa razoavelmente” (11). Todas elas expressam modos da repetição. Segundo Agostinho,
Em toda parte, o que agrada é a harmonia, a qual assegura a integridade e a beleza. Mas harmonia requer igualdade e unidade realizadas, seja pela semelhança dos elementos iguais, seja pela proporção dos elementos dessemelhantes. (12)
Agostinho retorna à questão da composição, aqui designada como união, para tratar da questão da harmonia, agora situada no âmbito do que designa como criação.
Em toda a união, ou se for melhor dizer, em toda harmonia na criação, é de imenso valor essa concordância, conciliação ou correspondência, ou que se empregue outro termo mais adequado, que signifique a relação do uno com o duplo (...). É-nos tão infusa essa harmonia que até os ignorantes a percebem quando cantam ou ouvem cantar. Pois ela harmoniza as vozes agudas e graves de tal modo que, na sua falta, muito se ofende não somente a arte, (...), mas também o próprio sentido da audição.(13)
A harmonia, ou o ritmo, ou a cadência, estes modos pelos quais as partes de uma composição são ordenadas de modo a proporcionar-lhe a feição de coisa única e indivisível, porque “se aplica a muitas coisas e estende-se a quase todas as artes e obras humanas” (14), é igualmente o modo pelo qual a razão estética deve ordenar a poesia, pois, “nos versos poéticos, nos quais dizemos haver uma razão pertencente ao prazer dos ouvidos, quem não sabe que a métrica é o artífice de toda esta harmonia”.(15)
A repetição é, talvez, o mais ancestral método de memorização. A repetição de séries ritmadas e a própria ordenação cadenciada da linguagem, que caracteriza a gramática, estão, muito provavelmente, nas raízes do que se poderia chamar de rudimentos didáticos do ensino de uma língua em suas formas falada e escrita. Por isso, segundo Agostinho,
O mestre escola encarregava-se de ensinar às crianças as primeiras noções de ler, escrever e dar ritmo aos sons articulados. Esta profissão foi como que a infância da gramática, e Varrão dava-lhe o nome de litteratio (“aprendizado da escritura, compreendendo elementos de leitura, escritura e números – cadência dos sons articulados”).(16)
A razão, entendida como “o movimento da mente capaz de discernir e estabelecer conexão entre as coisas que se conhecem” (17), é o “ator” que constrói, desenvolve e aperfeiçoa a linguagem e a gramática. E como o modo pelo qual opera é a repetição, ou a modulação,
a razão notou que isto seria uma matéria de pouco valor se os sons não fossem ornados com certas medidas de tempo e com uma variedade combinada de acentos agudos e graves. (...) E como havia sido fácil notar que nas mesmas palavras as sílabas breves e longas se repetiam em igual quantidade no discurso ela procurou dispor e ordenar aqueles pés e acentos em certas ordens (...). (18)
Por fim, a própria composição poética e seu componente fundamental, o verso, bem como as estruturas rítmicas que ordenam as diversas formas literárias, são uma construção da razão, através de seu modo de operar: a repetição.
E para que os pés não se tornassem mais longos do que o gosto estético pudesse suportar ela estabeleceu uma medida de onde se podia reverter, voltar, dando-lhe, por isso, o nome de verso (versun). Mas o que não estava disposto em certo limite, contudo fluía com pés razoavelmente ordenados, ela denominou rhythmos (número, cadência). (19)
A arquitetura, no que tem de mais essencial, não difere da arte em geral, em todas formas pelas quais esta se manifesta. Certamente, todas as formas de arte guardam, além das diferentes formas de repetição pelas quais se ordenam suas formas de expressão, algo em comum entre si, para que possamos, diante de cada uma delas, dizer: isso é arte. Agostinho, buscou essa essência da arte no amor e, este, na negação da utilidade. Para Agostinho, para quem “os homens somos os que fruímos e utilizamos” (20), a fruição se distingue do simples uso porque seu objeto satisfaz em si mesmo. Ele não visa atingir algo além. “Não fruímos quando queremos algo, por causa de outra coisa. Ora, só o fim último não é desejado por causa de nada. Logo, só dele há fruição”. (21) Se os objetos de uso se justificam apenas pelo fim último ao qual dão acesso o que, então, justificaria os objetos de fruição? Segundo Agostinho, podemos encontrar esta justificativa apenas no espírito humano. Em seus termos, no amor, razão pela qual “os brutos não podem fruir”. (22) Fruir, para Agostino, “é aderir por amor, a alguma coisa, em si mesma”. (23)
Friedrich Nietzsche, no entanto, não encontra no amor a origem do que viria a ser o que chamamos de arte. Embora concorde com Agostinho, quanto ao papel da repetição na essência do que a arte é, enquanto composição pela disposição de seus componentes em estruturas repetitivas. A diferença essencial entre ambos os pensadores, se dá justamente no entendimento que tem quanto as causas e a natureza mesma destes processos repetitivos. Se, para Agostinho, a repetição, sob a forma de harmonia, ritmo, cadência é um testemunho da presença da razão, para Nietzsche é a demonstração da irracionalidade que funda a razão humana: a superstição.
Em um aforismo da Gaia Ciência (1882 – 1887), intitulado Da origem da poesia, Nietzsche se pergunta como pode ter surgido algo tão inútil como a poesia – “essa ritmização da fala, que antes atrapalha que promove a clareza da comunicação”– se em todas as épocas foi justamente a utilidade que foi venerada como divindade suprema. Como, pergunta-se ele, pode continuar brotando, como que “zombando de toda útil pertinência”? No entanto, em que pese sua opinião, de certo modo convergente com a de Agostinho, de que foi justamente o querer desvencilhar-se da utilidade o que levou o ser humano a elevar-se à moral e a arte, reconhece, neste caso, a razão dos “utilitaristas”. “Naqueles velhos tempos que viram nascer a poesia. A utilidade era o que se tinha em vista, uma grande utilidade”. Tratava-se de uma “utilidade supersticiosa”, segundo ele, pois através do ritmo “pretendiam inculcar mais profundamente um pedido humano nos deuses”.(24)
“Mas, sobretudo, desejaram tirar proveito daquela sujeição elementar que o ser humano experimenta ao escutar música: o ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso – provavelmente as pessoas concluíram, também a alma dos deuses! Assim procuraram coagi-los mediante o ritmo, exercendo um poder sobre eles; jogaram-lhes a poesia como um laço mágico” (25)
Não é muito distinta a opinião de Arnold Hauser em seu clássico “História Social da Arte e da Literatura”. Para ele, a poesia dos primeiros gregos, como a de todos os outros povos num estágio primitivo, consistia de fórmulas mágicas, sentenças oraculáres, rezas e encantamentos, cânticos de guerra e de trabalho (26). Embora não distante destas, Nietzsche identifica também uma outra utilidade para o ritmo e a poesia. Segundo ele, “atribuía-se à música o poder de desafogar afetos, purificar a alma, abrandar a ‘ferocia animi’ [ferocidade do animo] – e isso precisamente pelo ritmo da música”.(27)
Essa propriedade terapêutica do ritmo – de uso até hoje tão disseminado em técnicas terapêuticas das mais diversas origens –, pela qual a concentração em sua cadência é capaz de recuperar a “justa tensão e harmonia da alma”, foi usada, segundo Nietzsche, por Terpandro para pacificar um tumulto, por Empédocles para acalmar um doido enfurecido e por Damon para purificar um jovem que definhava de amor. Com essa terapêutica, segundo Nietzsche, também foram tratados os deuses enraivecidos e ávidos de vingança. (28) Porém, de um modo particular.
“Antes de tudo, levando ao máximo a vertigem e a exuberância de seus afetos, ou seja, enlouquecendo os enraivecidos e tornando ébrios de vingança os que dela tinham sede – todos os cultos orgiásticos pretendem desafogar de uma vez a ferocia de um deus e transformá-la em orgia, para que depois ele se sinta mais livre e mais tranqüilo e deixe os homens em paz”. (29)
Melos, de melodia, significa, segundo Nietzsche, calmante. “Não porque seja calma em si, mas porque seus efeitos acalmam”. Não somente nos cânticos rituais, também nos cantos profanos mais antigos há, segundo ele, o pressuposto de que o ritmo exerce uma força mágica. Toda vez que se age há motivo para cantar e toda ação está ligada à ajuda dos espíritos: “as encantações parecem constituir a forma primeva da poesia”. Nietzsche comenta o hexâmetro, que os gregos diziam haver sido inventado em Delfos. Também aqui, segundo ele, o ritmo devia exercer uma coação. Pedir uma profecia significava, originalmente, fazer com que se determinasse algo. Acreditava-se poder coagir o futuro, ao conquistar o favor de Apolo.(30)
“Tal como a fórmula é enunciada, literalmente e ritmicamente exata, ela obriga o futuro; mas ela é invenção de Apolo que, como deus dos ritmos, pode também obrigar as deusas do destino” (31)
Não poderia haver, para a antiga e supersticiosa humanidade, segundo Nietzsche, algo mais útil do que o ritmo. Com ele, se podia tudo: favorecer magicamente um trabalho; forçar um deus a aparecer, ficar próximo, escutar, ajeitar o futuro conforme sua própria vontade; desafogar a alma de algum excesso (do medo, da mania, da compaixão, da sede de vingança) e, segundo Nietzsche, não só a própria alma, mas a do pior demônio. Sem o verso não se era nada, com ele, quase um deus. Um sentimento assim fundamental não pode, segundo ele, ser erradicado. (32)
“– e ainda hoje, após milênios de combate a tal superstição, até o mais sábio dentre nós é ocasionalmente turvado pelo ritmo, quando mais não seja por sentir como verdadeiro um pensamento que tenha uma forma métrica e surja como um divino sobressalto. Não é divertido que mesmo os filósofos mais sérios, normalmente tão rigorosos em matéria de certezas, recorram a citações de poemas para dar força e credibilidade a seus pensamentos? – e, no entanto, uma verdade corre mais perigo quando um poeta a aprova do que quando a contradiz! Pois, como diz Homero: “Mentem demais os cantores” (33) (34)
De fato, quando observamos as composições arquitetônicas, não podemos deixar de associar as noções de sentido, ordem, racionalidade às disposições de elementos marcadas pelas regularidades rítmicas. Dentre estas, a mais notável forma de regularidade é linha reta, pois é justamente aquela disposição na qual uma direção no espaço se repete infinitamente no tempo. Assim como Agostinho, Le Corbusier, para quem “A reta é rainha, sinal do espírito” (35), associa a geometria em geral, e a ortogonalidade em particular à racionalidade, tanto em seu caráter cultural quanto instrumental. Segundo ele,
“O homem caminha em linha reta porque tem um objetivo; sabe aonde vai. Decidiu ir a algum lugar e caminha em linha reta. // A mula ziguezagueia, vagueia um pouco, cabeça oca e distraída. Ziguezagueia para evitar os grandes pedregulhos, para se esquivar dos barrancos, para buscar a sombra; empenha-se o menos possível. // O homem rege seu sentimento pela razão; refreia os sentimentos e os instintos em proveito dos objetivos que tem”.(36)
A argumentação de Le Corbusier é articulada, embora não se possa negar a razão também àquele homem que está, como a mula, em um estado mais contemplativo, ou que mantém uma relação mais contemplativa com o terreno e seus obstáculos e atrativos. Do mesmo modo, o percurso retilíneo de uma mula em disparada em terreno aberto não é o testemunho de sua racionalidade. Independentemente disso, no entanto, é fato que associamos a regularidade a idéias como razão, lógica, sentido, necessidade, objetivo e, até mesmo, causa. No entanto, se entendemos a razão como uma realização da consciência, ou como o produto de uma deliberação consciente movida pela vontade em torno de um objetivo, não encontraremos, na regularidade, o testemunho desta razão.
Ocorre que procedemos e nos comportamos cotidianamente de modo significativamente regular e repetitivo, de modo automático, sem que qualquer deliberação para nenhum destes atos atinja as camadas da consciência. Poderíamos dizer, caso consideremos o que Sigmund Freud designou como aparelho psíquico, que tais comportamentos e regularidades se originam muito mais próximas do Isso (Id) e das energias pulsionais e forças instintuais do que da consciência e da capacidade de deliberação racional. A noção de ordem, em si, traduz, para Freud, uma “compulsão a repetir, que se estabelece como um regulamento”. E isso de tal maneira que, “em todas as circunstâncias semelhantes à original, a hesitação e a indecisão nos são poupadas” (37). Analisando a questão do ponto de vista econômico, ele considera incontestáveis os benefícios da ordem, pois “ela capacita os homens a utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor proveito, conservando ao mesmo tempo suas forças psíquicas” (38). Pulsões que buscam conservar as energias estão no fundo deste comportamento compulsivo, portanto.
No entanto, nem o ponto de vista aparentemente pragmático que caracteriza este aspecto da metapsicologia freudiana, nem o caráter apolíneo no qual Nietzsche inscreve a origem da poesia – Apolo é o deus dos ritmos –, em que pese o caráter dionisíaco dos rituais orgiásticos que também menciona, exclui outros modos mais poéticos, românticos – no sentido do barroco – e mesmo trágicos, pelos quais subjetivamos a repetição na determinação de nossas vidas e de nossos destinos. O escritor Milan Kundera, no romance “A insustentável leveza do ser”, procura demonstrar, analisando a estrutura do romance “Ana Karenina”, de Leon Tolstoi, o modo como compomos nossas vidas individuais como poemas ritmados, nos quais, inconscientemente, repetimos eventos marcantes como forma de atribuir sentido poético à existência. Ele chama a atenção para que, no início do romance, Ana encontra Vronsky, o objeto de seu futuro amor, em circunstâncias estranhas. Estão na plataforma de uma estação e alguém acabara de cair sob o trem. E, principalmente, para que a história encontra seu fim com Ana se atirando sob um trem. Essa composição simétrica, onde o mesmo motivo aparece no começo e no fim, pode parecer até “romântica”, segundo Kundera. E ele admite que seja, mas somente com a condição de que romântico não signifique uma coisa “inventada”, “artificial”, “sem semelhança com a vida”. Porque é assim mesmo, segundo ele, que é composta a vida humana.(39)
Ela é composta como uma partícula musical. O ser humano, guiado pelo sentido de beleza, transpõe o acontecimento fortuito (..., a morte numa estação) para fazer disso um tema que, em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará ao tema, repetindo-o, modificando-o, desenvolvendo-o e transpondo-o, como faz um compositor com os temas de sua sonata. Ana poderia ter posto fim aos seus dias de outra maneira. Mas o tema da estação e da morte, esse tema inesquecível associado ao nascimento do amor, atraiu-a no momento do desespero por sua sombria beleza. O homem inconscientemente compõe sua vida segundo as leis da beleza mesmo nos instantes do mais profundo desespero”. (40)
Em um de seus textos sobre a técnica psicanalítica – Recordar, Repetir e Elaborar (41) –, Freud analisa dois fenómenos psíquicos fundados na repetição, os quais observou na prática clínica. São os fenómenos da transferência e da resistência. Em ambos ocorre o retorno do que, com certa liberdade, poderíamos chamar de temas poéticos, no sentido adotado por Kundera, em que retornam como ato inconsciente e não como recordação. Boa parte da teoria das pulsões que Freud elaborou está fundada nessas observações. Nelas, observou uma compulsão do analisando à repetição. Ele repetia comportamentos, como teimosia e rebeldia, que não recordava de haver tido diante da autoridade paterna. Repetia a frustração de suas investigações sexuais infantis, que o deixavam perplexo e desamparado, lamentando que nada dava certo para ele, e que jamais conseguia concluir qualquer empreendimento. Não se recordava de haver sentido vergonha de sua sexualidade, mas repetia este constrangimento ao se envergonhar do tratamento psicanalítico. Em todas essas situações, segundo Freud, o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, “mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber o que faz” (42). Tal fenômeno, semelha o gesto de Ana Karenina, tal como descrito por Kundera. Segundo Freud,
“é natural que, em primeira linha, nos interesse a relação desta compulsão de repetir com a transferência e a resistência. Logo notamos que a transferência mesma é somente uma parcela de repetição, e que a repetição é transferência de um passado esquecido, [transferência] não só para o médico, mas para todos os âmbitos da situação presente”. (43)
Deste modo, podemos dizer que significativa parte de nossas vidas – ou das ações que nela adotamos, é uma atuação, uma repetição inconsciente de algo que nem sequer é lembrado. Algo que, recalcado, nem mesmo consegue atingir as camadas da consciência. O que se repete, segundo Freud, é tudo o que, das fontes do reprimido, já se impôs em seu ser manifesto: suas inibições e atitudes inviáveis, seus traços patológicos de caráter (44). Portanto, se na transferência dá-se uma repetição de protótipos infantis, essa repetição não é uma reprodução de situações reais vividas mas, segundo Luiz Alfredo Garcia-Roza, em “Acaso e Repetição em Psicanálise” (45), “equivalentes simbólicos do desejo inconsciente” (46). Segundo Jacques Lacan, nos textos de Freud, “repetição não é reprodução (...) Wierderholen não é Reproduzierem” (47). De acordo com ele,
“Reproduzir é o que se acreditava poder fazer no tempo das grandes esperanças de catarse. (...). Só que o que Freud nos indica (...), é que [do inconsciente] nada pode ser pego, nem destruído nem queimado, senão de maneira, como se diz, simbólica, in effigie, in absentia. (...) A repetição aparece primeiro numa forma que não é clara, que não é espontânea, como uma reprodução, ou uma presentificação, em ato”. (48)
Deste modo, segundo Garcia-Roza, torna-se necessária a distinção entre “repetição do mesmo” e “repetição diferencial” (49). Enquanto a primeira se aproxima da reprodução, “na medida em que é esterotipada”, a segunda é produtora de novidades e, portanto, fonte de transformações (50). É na repetição diferencial que baseia-se a técnica psicanalítica, através da qual, no âmbito da repetição – como ela se apresenta na transferência e na resistência –, e de um processo de elaboração apoiado na interpretação do analista, que este procura conduzir o paciente a substituir a atuação pela recordação. Por isso, segundo Freud, “fazer repetir no tratamento analítico, segundo a nova técnica, significa conjurar uma fração da vida ideal” (51). Assim,
“[o analista] se dispõe para uma luta contínua com o paciente, a fim de manter no âmbito psíquico todos os impulsos que este gostaria de dirigir para o âmbito motor e comemora como um triunfo da terapia o fato de conseguir, mediante o trabalho de recordação, dar solução a algo que o paciente gostaria de descarregar através de uma ação”. (52)
Trata-se de um longo trabalho de elaboração. Mas é no âmbito da repetição que ele se realiza. De uma repetição onde o que se repete não é o fato original, mas um equivalente simbólico, o qual, através da elaboração, gradativamente se converte em entendimento consciente, sem, para isso, formar uma reprodução, ou uma repetição do mesmo. Através da repetição, portanto, se produz o des-ocultamento ou a revelação daquilo que, sem ser uma reprodução de um fato original, desnuda o que ele tem de essencial.
Junto com inconsciente, transferência e pulsão, a repetição é, segundo Lacan, um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise (53). Por isto, Garcia-Roza procura estabelecer um paralelo com os modos pelos quais Hegel e Kierkegaard a elaboraram. Na Fenomenologia do Espírito, segundo ele, Hegel propõe que a própria fenomenologia seja uma repetição. Esta é entendida como releitura, implicando em dois momentos: no primeiro, há a consciência do fenômeno, uma pura vivência; no segundo, o fenômeno é incluído na totalidade do espírito (Geist) que lhe confere sentido. Só esta inclusão na totalidade é que confere verdade plena ao fenômeno; sem ela, o fenômeno permanece desprovido de sentido. Kierkegaard confere um novo sentido a releitura fenomenológica de Hegel, distinguindo a repetição numérica (repetição do mesmo) da repetição como re-apreensão (repetição diferencial). A diferença entre as duas concepções, segundo Garcia-Roza, é que para Kierkegaard a repetição não admite totalização.(54)
Um dos autores que pensaram de modo mais radical e ousado o problema da diferença na repetição, muito provavelmente foi Gilles Deleuze. Logo no prólogo de “Diferença e Repetição”, ele estabelece relação entre o inconsciente, a linguagem e a arte – de qualquer modo já antes estabelecida por Lacan, que entendia que o inconsciente se estrutura como linguagem (55) –, a partir da qual propõe uma tendência anti-hegeliana do pensamento contemporâneo. Ele sugere que a orientação de Martin Heidegger na direção de uma “Filosofia da Diferença ontológica”, o exercício do estruturalismo, “fundado numa distribuição de caracteres diferenciais num espaço de coexistência”; a arte do romance contemporâneo, “que gira em torno da diferença e da repetição”; a descoberta em vários domínios de “uma potência própria de repetição”, potência que também seria “a do inconsciente, da linguagem, da arte”. Todos esses sinais podem ser atribuídos, segundo ele, a um “anti-hegelianismo generalizado”.(56)
“A diferença e a repetição tomaram lugar do idêntico e do negativo, da identidade e da contradição, pois a diferença só implica o negativo e se deixa levar até a contradição na medida em que se continua a subordiná-la ao idêntico”.(57)
Esta possibilidade da emergência de diferença na repetição, ou este fenômeno, pelo qual nada resulta igual ou idêntico, foi capturado pela sensibilidade de Jorge Luis Borges, em seu versejar sobre a arquitetura e a malha urbana dos arrabaldes de Buenos Aires
“…
Meus passos claudicaram
quando iam pisar o horizonte
e parei-me entre casas
quadrinhadas em quadras
diferentes e iguais
como se fossem todas elas
monótonas, repetidas recordações
de um só quarteirão
…”
Jorge Luis Borges in: “Arrabalde” (grifo meu).
Deste modo, se a repetição não implica em identidade, tampouco a diferença implica em contradição ou negação. O primado da identidade, seja qual for a maneira pela qual esta é concebida, define, para Deleuze, o mundo da representação e, por conseguinte, da arte. Mas, segundo ele, o mundo moderno nasce da falência da representação, da perda das identidades e das forças que agem sob a representação do idêntico. O mundo moderno, segundo ele, é o dos simulacros.(58)
“Nele, o homem não sobrevive a Deus nem a identidade do sujeito sobrevive a identidade da substância. Todas as identidades são apenas simuladas, produzidas como um “efeito” ótico por um jogo mais profundo que é o da diferença e da repetição. (...). Nossa vida moderna é tal que, quando nos encontramos diante das repetições mais mecânicas, mais estereotipadas, fora de nós e em nós, não cessamos de extrair delas pequenas diferenças, variantes e modificações. Inversamente, repetições secretas, disfarçadas e ocultas, animadas pelo deslocamento perpétuo de uma diferença, restituem em nós e fora de nós repetições nuas, mecânicas e estereotipadas. No simulacro, a repetição já incide sobre repetições e a diferença já incide sobre diferenças. São repetições que se repetem e é o diferenciador que se diferencia”. (59)
Um dos textos de Heidegger, no qual é mais notável esta tendência a uma filosofia da diferença ontológica apontada por Deleuze, é “A origem da obra de arte” (Der Ursprung des Kunstwerkes), de 1952 (60). Segundo Samuel Ramos, tradutor e comentador de Heidegger, este texto foi um ponto de inflexão no pensamento sobre a arte, pois, ao contrário da estética do século XIX, que colocou em relevo o caráter subjetivo da atividade artística, Heidegger abordou a obra de arte em sua concretude, produzindo o que pode ser considerado uma ontologia da arte (61). É particularmente interessante, o modo como Heidegger aborda o tema da diferença na repetição nesta obra. E surpreendente o que ele aponta como sendo a essência da obra de arte, ou aquilo que não é nenhuma obra de arte em particular, que não é a soma de todas as obras e nem mesmo a arte em si, mas que repete-se em toda a obra para que esta seja tal.
Para Heidegger, a obra de arte é um ente, cujo caráter singular sua pesquisa procura elucidar. Para tanto, ele procura, inicialmente, distinguir a obra de arte da coisa e do útil, pois ela existe de um modo tão natural como ambos. “O quadro pendurado na parede como um fuzil de caça ou um chapéu ... Os quartetos de Beethoven jazem nas prateleiras das editoras como as batatas no armazém”. (62) É um longo desenvolvimento, no qual estabelece uma ontologia tanto para a coisa como para o útil. Já discuti anteriormente este desenvolvimento em outro ensaio de fácil acesso (63) e vou manter-me aqui no âmbito do que interessa ao tema da repetição e da diferença por ela produzida.
A capacidade que tem a obra de arte de comunicar, de dar a saber ou de revelar algo que está além dela é, para Heidegger, um dos traços essenciais do ser obra da obra de arte. Ele procura demonstrar isso através da análise de um quadro de Van Gogh, que retrata um par de sapatos de camponês (fig. 14). Através desta análise ele procura demonstrar a essência do útil. É justamente a partir da capacidade da obra de arte de revelar esta essência, que ele demonstra que o essencial nela é a capacidade de revelar algo que estava oculto.
“Descobrimos o ser do útil. Porém, como? Não por meio da descrição e explicação de um sapato realmente presente; não graças a uma informação sobre o processo de confecção de sapatos, não em virtude de haver observado a maneira real e efetiva com que os sapatos são usados aqui ou ali, mas apenas pondo-nos frente a um quadro de Van Gogh. O quadro falou. Na proximidade da obra passamos subitamente a estar onde habitualmente não estamos”. (64)
O que a obra fez visível foi o ser do útil. Mais do que uma imagem de um útil em particular, a obra revelou o que é comum e essencial a tudo o que é útil que, para Heidegger, é “ser de confiança”. Aquilo que o uso habitual acaba por ocultar, a obra é capaz de revelar. Assim, para Heidegger, a operação que a obra realiza é a des-ocultação do ente.
“O que acontece aqui? O que opera na obra? O quadro de Van Gogh é o fazer patente o que o útil, o par de sapatos de camponês, realmente é. Este ente sai ao estado de não ocultação de seu ser. O estado de não ocultação dos entes é o que os gregos chamavam alhqeia [aleteia]. Nós dizemos “verdade” (...). Se o que se passa na obra é um fazer patente os entes, o que são e como são, então há nela um acontecer da verdade”. (65)
O conceito de verdade aqui não diz respeito ao de verossimilhança, tanto quanto, como diz Lacan, “repetição não é reprodução (...) Wierderholen não é Reproduzierem” (66). Não se trata de que a obra seja um símile perfeito – basta observar o quadro de Van Gogh. Por verdade entende-se habitualmente uma correspondência precisa entre a representação e o objeto representado, uma igualdade. Mas aqui não se trata de uma questão de representação. Trata-se da capacidade que a obra de arte tem de abrir um mundo, isto é, de revelar o ser de um ente, aquilo que ele é em si mesmo, sua essência. No entanto, algo que está oculto já está lá; já é. A verdade diz respeito e se refere a uma existência, à qual confirma como existente. Essa confirmação, que é o próprio sentido da verdade, é uma re-apresentação, uma repetição de algo. Algo que foi referido ou esquecido, algo que, em termos psicanalíticos, foi reprimido ou recalcado. Tudo isso diz respeito ao que já tem, ou teve, de algum modo, existência. Re-velar é trazer à luz algo que, sob ela, já esteve. A verdade, a revelação, a des-ocultação, a presentificação são formas da repetição. Porém, assim como os sapatos do quadro de Van Gogh não são iguais ou idênticos aos sapatos que lhe serviram de modelo – nem sequer são um par de sapatos, “ceci n’est pas une pipe” (67) (fig. 15)–, essa repetição, que caracteriza a obra de arte, não é uma repetição do mesmo. Trata-se de repetição que produz diferença. De uma repetição onde há criação; onde pode haver; onde há potência para que haja.
Para escapar ao âmbito da representação, Heidegger opta por analisar uma obra que não seja figurativa.
“Um obra arquitetônica, como um templo grego, não representa nada. Se levanta com simplicidade no fendido vale rochoso. (...). (...). O templo (...) constrói e congrega simultaneamente em torno de si a unidade daquelas vias e relações nas quais o nascimento e a morte, a desdita e a felicidade, a vitoria e a ignomínia, a perseverança e a ruína, tomam a forma e o curso no destino do ser humano. A poderosa amplitude destas relações patentes é o mundo deste povo histórico. Partindo de tal âmbito, e em seu interior, se volta um povo sobre si mesmo para cumprir seu destino”. (68)
Neste voltar-se sobre si mesmo há um tropo. Tropo é a palavra de origem grega mais adequada para expressar este tipo de repetição, pelo qual o retorno do passado produz um devir transfigurado e em constante mutação. O significado de tropo é desvio. Deriva de τρόπος ou trópos, do verbo trépo, "girar". Enquanto uma figura de linguagem, define um retorno, ou um giro onde ocorre uma mudança de significado. Mas este retorno não traz reminiscências ou lembranças, ou recordações ou pelo menos não é a isso que Heidegger se refere, do mesmo modo que não é a isso que Freud se refere quando fala de transferência e resistência. Heidegger fala da congregação de vias e relações em uma unidade (a unidade composição de Agostinho). Freud fala em uma atuação, pela qual um comportamento dotado de carga simbólica se repete. Não se trata precisamente de uma síntese, mas da abertura de um mundo que define uma situação. Situação esta a partir da qual pode se desdobrar um destino. Essa situação não é um retrato ou um corte em um dado momento histórico, mas a congregação e a condensação de todo o processo histórico, e do que ele projeta como devir. É como a repetição de todos os momentos em um só, o hic et nunc, o aqui e agora. O que Heidegger designou como o Da do Dasein, o Ser-aí, ou, em uma linguagem mais próxima da psicanálise, segundo Jorge Valadares, o sujeito situado (69). Através da repetição, a arte e a psicanálise levam o sujeito para além da representação e da atuação; elas o levam para a situação a partir da qual pode se desdobrar um destino. O levam através da verdade. Verdade entendida como des-ocultação do ser de um ente e não como identidade ou igualdade.
Porém, o templo não só revela algo que esteve presente em sua origem ou que se desenrolou em sua presença. Ele é também aquela presença cuja ausência faria com que o que é fosse distinto. Sua presença revela o lugar sobre o qual se estabelece, sob uma perspectiva que o faz ser o que é. O revela, em seu ser, como uma forma do acontecer da verdade. De uma verdade situada em seu hic et nunc.
“O edifício em pé descansa sobre o fundo rochoso. Este repouso da obra extrai da rocha o obscuro de seu suportar tão tosco e pujante para nada. (...). O brilho e a luminosidade da pedra, aparentemente devidas à graça do sol, sem dúvida, fazem com que se mostre a luz do dia, a amplitude do céu, o sombrio da noite. Sua firme proeminência faz visível o espaço invisível do ar. O inamovível da obra contrasta com a ondulação do mar e por sua quietude faz ressaltar sua agitação. (...). Ilumina à sua vez aquilo onde e no que funda o homem a sua morada. Nós o chamamos a terra. (...).
O templo em pé abre um mundo e, por sua vez, o volta por sobre a terra que, de tal modo, aparece ela mesma como o solo nativo. (...).
O estar em pé do templo dá as coisas a sua fisionomia, e aos homens a visão que tem de si mesmos (...)”.(70)
Tudo retorna sobre si, o suportar da rocha sob o peso do templo; a luz do dia sob o brilho da pedra, a profundidade do espaço diante da firmeza da forma. A presença do templo tem esta capacidade de re-alçar, de trazer para uma nova presença, para uma nova luz e, por isso, de revelar um novo destino. Nessa revelação se dá uma repetição, através da qual as coisas retornam com outro valor. São as mesmas coisas, a rocha, o ar, o movimento do mar, a amplitude do céu. Porém o templo faz com que retornem outras, participando de uma outra unidade. As transforma e, através delas, cria um lugar; abre um mundo o qual, por sua vez, retorna e se volta sobre a terra, transformando-a em um lugar muito particular. Lugar dotado de essência própria: o solo nativo, sobre o qual se desenrola a história. História através da qual um povo histórico pode se ver a si mesmo. Heidegger descreve uma sucessão de tropos, de movimentos de retorno, de repetições as quais, porém, não são nunca um retorno do mesmo, mas uma estrutura a partir da qual o diferente e o novo estão em constante produção.
Esta relação, entre repetição e diferença, no contexto de um tropo, o qual é o meio para uma forma particular de revelação, aparece de forma curiosa no pensamento de Agostinho de Hipona. Trata-se da relação entre o tropo do espelho e a revelação do enigma que é o objeto da fé. Agostinho parte de uma sentença bíblica do apóstolo Paulo:
“Agora vemos a Deus em espelho e em enigma, mas depois o veremos face a face”.(71)
Prima facie, analisando a sentença, Agostinho considera que aquilo que o espelho nos revela é apenas uma imagem e propõe a seguinte interpretação para a sentença: “pela imagem do que somos nós, ver de algum modo, como em espelho, aquele que nos criou” (72). A sentença do apóstolo, segundo ele, diz: “agora vemos em espelho”. Porém, acrescenta: “em enigma” (73). Agostinho sustenta que o segundo termo sugere que a sentença não pode ser lida de forma direta, porque trata-se de um tropo. A leitura direta, segundo ele, decorre, na obra de muitos tradutores, na passagem do grego para o latim, pois,
[o termo grego tropos] não é da compreensão de muitos, os quais ignoram as chamadas figuras de linguagem (...). São tais figuras denominadas pelo vocábulo grego “tropos”, (...). Assim como é mais comum o termo “schemata” (esquemas) do que “figurae” (figuras), é mais empregado o termo “tropos” do que “figuras de retórica”.(...). Por isso, alguns de nossos intérpretes, evitando o vocábulo grego, traduziram a sentença do apóstolo: “isso está dito em alegoria” (G1 4,24). E recorrendo a uma paráfrase, traduziram: É o que se quer dizer de uma coisa servindo-se de outra”.(74)
Deste modo, para Agostinho, uma alegoria, é um tropo em que o significado natural de uma palavra é substituído por outro, “em virtude de certa relação de semelhança”.(75)
Agostinho retoma a análise da sentença, decompondo-a em duas alegorias: Vemos agora em espelho; e em enigma. Em sua opinião, “pelo termo “espelho” ele quis significar a imagem” e, “pelo termo “enigma”, expressou certa semelhança, embora obscura e de difícil percepção” (76). É a seguinte a síntese que Agostinho decorre de sua análise.
Mas, como pelos termos: espelho e enigma, o mesmo apóstolo quis dar a entender certas semelhanças adequadas a certa compreensão de Deus na medida do possível, nada há de mais apropriado do que aquilo que com justeza é denominado imagem de Deus. Portanto, ninguém se admire que nos esforcemos para ver a Deus, de alguma maneira, por meio desse único tipo de visão que nos é permitido durante esta vida, ou seja, por meio de espelho e enigma. Se houvesse facilidade para tal visão, não se empregaria aqui o termo “enigma”. E este é o maior enigma: que ele esconda aquilo mesmo que não podemos deixar de ver. Pois quem não vê o próprio pensamento? (77)
Poderíamos, certamente com grande liberdade, imaginar que esta imagem em enigma, sob a forma da qual Agostinho busca, no reflexo do espelho, a imagem de deus, não é, do ponto de vista hermenêutico, essencialmente distinta da atuação representada pelo paciente na transferência, cuja interpretação do psicanalista é o meio pelo qual a psicanálise procura atingir o enigma do inconsciente. Certamente com a mesma liberdade, poderíamos pensar a obra de arte como uma interpretação de um enigma que, como diz Heidegger, é capaz de “fazer patentes os entes, o que são e como são”. (78)
Poderíamos, assim, pensar que a psicanálise, como a arte em geral, ou a arquitetura em particular – e até mesmo a religião, do ponto de vista da hermenêutica de seus mistérios –, operam em um modo trópico. Ao nível da psicanálise, em particular no âmbito da transferência, na difícil relação entre o inconsciente e a consciência, na qual constitui-se o sujeito. Na arte, na relação entre o ser e o mundo, no qual situa-se o seu ser-aí, ou o seu aqui e agora. Na arquitetura, na constituição dos lugares, que convertem a terra em mundo e a partir dos quais podem os sujeitos e os povos históricos situarem-se em seu destino. Nas religiões, na difícil relação com o insondável, que se apresenta aos homens sob a forma dos mistérios da criação e da morte.
As articulações entre a psicanálise e as expressões artísticas e arquitetônicas que caracterizam o sujeito do inconsciente, através da repetição e das regularidades que as estruturam, não se resumem de modo algum ao que foi tratado neste pequeno ensaio. Do ponto de vista da teoria psicanalítica, toda a problemática imposta pela teoria das pulsões, em particular pelas relações entre o princípio de prazer, a sexualidade, a compulsão à repetição e a pulsão de morte permanece em aberto. E diante desta problemática, as articulações que podem ser estabelecidas com o modo compulsivo pelo qual a ortogonalidade e as simetrias axiais e angulares se repetem e permanecem, mesmo quando tudo o mais varia na expressão arquitetônica, ao logo de sua história e pré-história. Procurar desenvolver estas relações faz parte de um projeto futuro de trabalho.
notas
1
JORDÁ CERDÁ, Francisco (1978). “Los estilos en el arte parietal magdaleniense cantábrico”. Curso de Arte rupestre paleolítico. Publicaciones de la UIMP, Santander-Zaragoza, 1978. p. 98.
2
Ordem II; 33 (pg.232 na edição Padrão da Ed. Paulus do vol. 24 da Patrística).
3
Idem. Ibidem.
4
Idem. Ibidem.
5
Idem. Ibidem.
6
Idem. Ibidem.
7
Ordem II, 34 (pg.233 na edição Padrão da Ed. Paulus do vol. 24 da Patrística).
8
Cidade de Deus, Livro XI, cap. 22.
9
Ordem II, 41 (pgs. 239 e 240 na edição Padrão da Ed. Paulus do vol. 24 da Patrística).
10
Ordem II; 32 (pgs. 231 na edição Padrão da Ed. Paulus do vol. 24 da Patrística).
11
Idem.Ibidem
12
A Verdadeira Religião, 55 (pg. 80 na edição Padrão da ed. Paulus do vol. 19 da Patrística).
13
A Trindade Livro IV; 2:4 (pg. 150 na edição padrão da Ed Paulus do vol. 7 da Patrística).
14
Ordem II, 34 (pgs. 233 e 234 na edição Padrão da Ed. Paulus do vol. 24 da Patrística).
15
Idem. Ibidem
16
Idem, 35 (pgs. 234 e 235 da mesma edição).
17
Idem, 30 (pgs. 229 e 230).
18
Idem, 40 (pgs. 238 3 239).
19
Ibidem.
20
De doctrina christiana, cap. XXII.
21
De Trinitate libri,cap. XI.
22
De doctrina christiana, cap. XXII.
23
De doctrina christiana., cap. IV; De Trinitate libri, caps. X, XI.
24
NIETZSCHE, F. W. Gaia Ciência, II: 84. Citado a partir da tradução de Paulo Cesar de Souza – São Paulo, Companhia das Letras, 2001. Pgs. 111, 112 e 113.
25
Idem. Ibidem
26
HAUSER, A. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998: 56.
27
NIETZSCHE, F. W. Op. Cit.
28
Idem. Ibidem
29
Idem. Ibidem
30
Idem. Ibidem
31
Idem. Ibidem
32
Idem. Ibidem
33
Teria dito Homero, segundo Aristóteles, Metafísica 983a. Tratava-se antes de um provérbio, segundo Coli e Montinari (nota do tradutor).
34
NIETZSCHE, F. W. Op. Cit.
35
LE CORBUSIER. Os Três Estabelecimentos Humanos. São Paulo: Perspectiva – USP, pg 198.
36
LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pg. 06.
37
FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1997, pg. 46.
38
FREUD, S. Op. Cit., pg. 47.
39
KUNDERA, M. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pg. 57.
40
KUNDERA, M. Op. Cit., pgs. 57 e 58.
41
FREUD, S. “Recordar, repetir e elaborar”. In: Obras Completas vol. 10. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, pgs. 193 a 209.
42
FREUD, S. Op. Cit., pg. 199.
43
FREUD, S. Op. Cit., pg. 201.
44
FREUD, S. Op. Cit., pg. 202.
45
GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e pulsão em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
46
GARCIA-ROZA, L. Op. Cit., pgs. 22 e 23. (No texto grifado Garcia-Roza esta citando o Vocabulário da psicanálise de Laplanche e Pontalis, pg. 675.).
47
LACAN, J. O Seminário – Livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, 2008, pg. 55.
48
Idem. Ibidem
49
GARCIA-ROZA, L. Op. Cit., pgs. 22 e 23.
50
GARCIA-ROZA, L. Op. Cit., pg. 24.
51
FREUD, S. Op. Cit., pg. 202.
52
FREUD, S. Op. Cit., p. 204.
53
LACAN, J. Op. Cit., p. 20.
54
GARCIA-ROZA, L. Op. Cit., pg. 24. Garcia-Roza remete aqui a H. B. Vergote, Sens et Répétition.
55
LACAN, J. Op. Cit., pg. 27.
56
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal 1988/2006, pg. 15.
57
Idem. Ibidem
58
Idem. Ibidem
59
DELEUZE, G. Op. Cit., pgs. 15 e 16.
60
HEIDEGGER, M. “El Origen de la Obra de Arte”. In: Arte y Poesia. trad. y pról. de Samuel Ramos. 2ª ed. México: FCE, 1973.
61
RAMOS, Samuel, Prefácio da edição citada, p.7.
62
RAMOS, Samuel, Op. Cit., ps. 39 e 40.
63
SILVA, L. F. C. Sobre a inutilidade e a desnecessidade da arquitetura. Arquitextos, São Paulo, 11.126, Vitruvius, nov 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.126/3649
64
HEIDEGGER, M. Opus Cit. p. 62.
65
HEIDEGGER, M. Opus Cit, p. 63.
66
LACAN, J. O Seminário – Livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, 2008, pg. 55.
67
Isso não é um cachimpo – Dístico escrito em um quadro de René Magritte, no qual está pintada a imagem de um cachimbo (pipe).
68
HEIDEGGER, M. Op. Cit, p. 70 e 71.
69
VALADARES, J. C. Espaço e Situação do Sujeito. Tese de doutoramento. ENSP – Fiocruz. Também em anotações de orientação.
70
VALADARES, J. C. Op. Cit., p. 71 e 72.
71
Paulo: 1Cor 13,12
72
A Trindade XV 8,14 (pg. 498 da edição padrão da Ed. Paulus do vol. 7 da Patrística)
73
Idem. Ibidem
74
Idem, XV 9,15 (pg. 500).
75
Idem. Ibidem
76
Idem. Ibidem
77
Idem, XV 9,16 (pgs. 501 e 502).
78
HEIDEGGER, M., Op. Cit, p. 63.
sobre o autor
Luiz Felipe da Cunha e Silva é Mestre em Ciências pela ENSP-Fiocruz, Doutor em Psicologia pela PUC-Rio, Doutor em Urbanismo no programa ProUrb da FAU / UFRJ e é Professor Adjunto da DPA / FAU / UFRJ.