2. A enseada, a área de educação ambiental, a marina, o bosque, a área de piquenique, a prainha
Na ponta da enseada da Glória, não foram construídos os itens previstos: Reidy faleceu em 1964, Lota em 1967 e faltou vontade política para implementar as ações de caráter educativo intencionadas para o Parque, um projeto social sem precedentes na história brasileira. Na Secretaria de Obras de Lacerda, Marcos Tamoyo, depois prefeito, começava a pôr em prática seus planos de maior ocupação do solo e verticalização de construções na cidade. A área do Parque, sobretudo na ponta da enseada, se tornou alvo de ações especulativas quase sistemáticas. Os empreendimentos com vistas à implementação de um complexo de obras em grande trecho do Parque – da Enseada da Glória até o início da Praia – a título de revitalização da marina, evidenciam esta prática e vêm alcançando grande repercussão.
As obras de execução do projeto de revitalização, que tem várias versões, intensificaram-se em 2006, a pretexto dos Jogos Panamericanos. Em março, foram mutilados canteiros de jardins para se abrir um trecho de ciclovia e em abril a devastação foi ainda maior: corte de árvores, mutilação de canteiros e destruição da Área de Piquenique original para implantação de estacionamento de veículos; construção de via particular em área pública sobre o enrocamento da Enseada e cravação de estacas na água para construção de garagem náutica correspondente a aterro, ou ‘terra criada’, na expressão enfatizada por Fania Fridman (1).
O Parque é de propriedade da União Federal e quase toda a área (excetuando-se MAM, Monumento aos Pracinhas, clubes náuticos, Enseada da Glória e trecho inicial do Parque) foi cedida à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que ficou responsável por sua administração e manutenção.
A área conhecida como Prainha foi criada pelo projeto original do Parque do Flamengo e está incluída no perímetro de tombamento, assim como a própria marina da Glória. Trata-se de uma praia pública de banhos que faz parte da praia do Flamengo, dividida desta pelo enrocamento de pedras que, originalmente, recebeu o nome de “espigão para defesa da praia e área de pescaria” (item 21). A divisão de uma mesma praia em dois trechos, por meio desse quebra-mar, tem uma intenção plástica, ou seja, não se trata apenas de um molhe com a função de proteger a praia e oferecer à população uma área de pescarias, mas de um traçado que revela estas funções por sua materialidade na paisagem.
Quanto à Enseada da Glória, sua forma foi especialmente estudada por Reidy no projeto do Parque, conforme depoimento de Berta Leitchic:
“Quando ele [Reidy] fez o primeiro projeto da forma do Aterro, aquela enseada, mandamos para o Laboratório de Hidráulica de Portugal para saber se era viável. Cheguei a ir cinco vezes a Portugal, ao Laboratório Nacional de Hidráulica, que acompanhou todos os estudos do Aterro. O cais, as praias, todos os projetos foram estudados lá, e vejam que até hoje está tudo em pé. Senão, o mar tomava tudo de volta, com certeza. Quer dizer, já se tinha a noção de que são obras de engenharia que têm que ser resolvidas, não é só o traço do urbanista. Tanto assim que o Laboratório recomendou: ‘A forma é muito fechada, a entrada é pequena, haverá pouca circulação, portanto não deve ser feito nada de esgoto para lá, não deve ter muitas bombas de gasolina nem nada na ponta’” (2).
Registrada a inconveniência de esgotos e postos de abastecimento na ponta da enseada – recomendação que, anos depois, seria desconsiderada (3) – e de qualquer construção na ponta da enseada, passemos à forma que demandou tantos estudos, pois sua configuração tem uma função plástica e simbólica essencial no projeto urbano-paisagístico.
Já foi mencionada a alusão, no Parque do Flamengo, a formas da natureza e paisagem da cidade. Não se trata da referência bem mais explícita do recurso temático, já naquela época tão banalizada pelo uso indiscriminado, mas da associação forma / função de Reidy permeada por certo olhar lúdico, como em tantas outras histórias da arte e da arquitetura não só no Brasil. Como na pintura moderna, nem sempre tal representação é percebida de perto e quando se trata do traçado horizontal de uma grande área, somente a grande distância a figuração é perceptível. Na Enseada da Glória, por exemplo, só se visualiza melhor seu contorno de curva acentuada, rotacional, ao se observar a Planta Geral do Parque (1965) e fotografias aéreas. Vêem-se, então, claramente, desenhos relacionados a imagens fugazes na paisagem: ondas, o perfil de um peixe, um barco à distância na Baía. A onda é formada pela curva quase em espiral da ponta da enseada e do traçado das próprias vias expressas; a linha do espigão de pedras (quebra-mar) da Praia do Flamengo e a faixa de areia desta praia – incluindo a da prainha – representam, simultaneamente, a nadadeira dorsal, o mastro e a vela: o barco aparece parcialmente, por detrás do peixe.
A forma de vela de barco fora pensada por Lucio Costa para o altar ao ar livre onde se celebraria, no aterrado, a grande missa campal de 1955: uma “vela no eixo da baía, aproveitando a simetria natural criada, de um lado, pelo Pão de Açúcar e, de outro, pelas montanhas de Niterói”, conta Bruand (4).
Essas formas sutis se relacionam estreitamente a algumas funções previstas nesta área do Parque do Flamengo, conforme se verá a seguir. Mas é importante assinalar que o desenho do barco a distância é formado na linha costeira externa, voltada para a Baía de Guanabara, enquanto o do peixe se volta para dentro da enseada. Nota-se que o aquário circular previsto para a ponta da enseada e até hoje não implantado seria, no desenho, o olho do peixe, e um efeito de escamas seria obtido com os canteiros de jardins do Bosque e Área de Piquenique, defronte à praia do Flamengo e junto à Pista de Danças e espetáculos ao ar livre – itens previstos no Plano Geral do Parque e executados.
Ethel Bauzer Medeiros relata, em 1964, o que está previsto para este trecho do Parque (5):
“Um orquidário e exposições permanentes de aves, peixes e plantas de coleção do Brasil servirão para complementar as atividades recreativas mais tranqüilas”.
“O único veículo a trafegar em todo o Parque será o ‘trenzinho’”.
“Uma área de aproximadamente 40.000 metros quadrados, destinada a piqueniques, conterá bancos e mesas de concreto, em zonas de sombra, do lado do mar”.
“Na enseada da Glória ficará o ancoradouro para barcos de passeio”.
No mesmo ano, escreve Enaldo Cravo Peixoto (6):
“Esse parque disporá de uma praia de banho com mais de um quilômetro de extensão com cerca de 40 metros de largura, bem como de uma ampla enseada de águas tranqüilas, com cais de atracação para pequenas embarcações”.
Nesta extremidade da enseada do Parque do Flamengo, incluída no tombamento até o prolongamento da avenida Almirante Sílvio de Noronha e a partir da qual se inicia a faixa tombada de 100m em todo o contorno do Parque, estavam previstos no Plano de 1965, além de agenciamentos tais como caminhos em pedra portuguesa e saibro e grandes canteiros de jardins definidos pelo traçado:
“pista do trenzinho” (item 10);
“grandes aquários e peça d’água para plantas aquáticas” (item16);
“gaiolas de pássaros” (item 15);
“grandes ripados – alojamentos (encarregados)” (item 14);
“rock-garden”, jardim de seixos, talvez com monólitos, como no MAM (item 18);
“marinas”, ou seja, píeres de atracação (item 17);
itens 48 e 49, não especificados no parecer de Paulo Santos, cuja representação gráfica indica sua relação com gaiolas de pássaros (item 15, o 49) e com o ripado para plantas e alojamento para encarregados (item 18, o 48), conforme comentado adiante.
A pista de trenzinho não começava ali, mas havia um trajeto passando pela extremidade da enseada. A pista de concreto do trenzinho contornava a ponta da enseada, onde o caminho costeiro em pedra portuguesa branca articulava-se com trechos de saibro, formando um largo, tudo previsto e executado. Considerando a proximidade com outros trechos do Parque como a “Área de piquenique: bancos, mesas e cestas” (item 20), a “Pista de danças e pequenos espetáculos” ao ar livre (item 23), circundada por jardins – espaços implementados, constantes do projeto original – e a “praia de 1.500m” (praia do Flamengo, item 22), junto ao “espigão para defesa da praia e área para pescaria” (item 21), com uma pequena faixa de areia antes dele, fica patente o uso previsto neste trecho da enseada.
O discreto programa arquitetônico da ponta da enseada, destinado a passeios em meio a plantas, jardins, aves e peixes tropicais, era bastante freqüente na época (7). Na especificação, por Lota de Macedo Soares, “das obras de utilidade pública feitas ou a fazer”, também citada por Paulo Santos em seu parecer, lê-se o programa para este trecho do Parque: “ripados para plantas ornamentais, gaiolas de pássaros, aquário, pequeno alojamento para o tratador e guarda da área, pavilhão para exposição permanente de flores”. O Alojamento dos encarregados de guardar o local e cuidar dos animais e plantas estaria instalado, provavelmente, como pequena área coberta e fechada, acoplada ao Ripado de plantas ornamentais ou ao Pavilhão de Flores; este último, inequivocamente, é o item 48 da Planta Geral.
O Pavilhão de Flores (item 48, cerca de 350m²), na Planta Geral, situa-se defronte a jardins, tendo à sua direita uma composição de seixos (rock garden) associada visualmente ao ripado aberto para cultivo de plantas ornamentais de meia-sombra, principalmente. Paulo Santos pode não ter enumerado, em seu Parecer, o item ‘pavilhão para exposição permanente de flores’ por se assemelhar, em função, ao grande ripado de plantas (item 18, cerca de 2.160m²).
O mesmo ocorreu com as gaiolas de pássaros, indicadas em dois itens (15 e 49, cerca de 150m² cada) na Planta Geral.
O Aquário previsto, com peça d’água, tem base circular (diâmetro 38m) e é um viveiro de peixes e outras espécies animais e vegetais de rios e mares brasileiros. Não chegaria à complexidade do programa de um museu oceanográfico, pois a finalidade do aquário e do ripado para plantas era o passeio em meio a atividades educativas mais amenas. Por sua função própria de viveiro aquático e sua função formal, na Enseada da Glória, de ‘olho do peixe’, deduz-se, no aquário previsto, características construtivas de transparência e fluidez (vidro e água).
Quanto às instalações sobre o espelho d’água da enseada, é preciso lembrar que o termo “marinas” (item 17) se refere, conforme era usual nos anos 1960, apenas a píeres de atracação, implantados nos espaços definidos pela Planta Geral (1965) e com as dimensões ali representadas; a marina prevista é apenas um agenciamento. Estes píeres resumem-se a 10 (dez) estruturas iguais, com largura suficiente para o acesso aos barcos (2,5m) e comprimento (50m) passível de comportar o fundeio provisório de cerca de 20 pequenas embarcações, de modo a propiciar a visitação e os passeios a pé pelo Parque aos que, eventualmente, viessem por mar. Sabe-se, por meio de depoimentos orais, que os píeres seriam públicos, ou seja, abertos a todos, condição que faz sentido dentro do conceito recreativo e sócio-cultural que deu origem ao Parque e como meio de organização espacial de atividades em conformidade com o partido adotado para cumprimento desta parte do programa. Se qualquer pessoa quisesse chegar ao Parque por mar, existiria um local específico para ancorar durante o passeio.
A solução adotada, sob o aspecto paisagístico, também é a mais adequada, ao definir, funcionalmente, um espaço físico para atracadouro de barcos restrito a esta parte do contorno da enseada. Do contrário, a enseada se tornaria um mero estacionamento de barcos. No espelho d’água, o movimento de embarcações deve ser apenas transitório.
Em fotografias da primeira metade dos anos 1960, vê-se a ponta da enseada ainda em fase de aterro. Em fotos da segunda metade daquela década, os canteiros de jardins já estão plantados e a área na ponta da enseada aparece gramada, esperando completar-se o projeto; ao lado, na Área de Piquenique, percebe-se o horto provisório, instalado durante as obras para aclimatação de espécies antes do plantio. Este horto utilizava um barracão provisório para guarda de material e possuía uma cerca viva provisória, formada com espécies que seriam transplantadas.
Em 1976, com a área cedida à municipalidade (8), é autorizado pelo IPHAN o projeto da “Marina Rio” apresentado pela Riotur, do qual faziam parte duas construções: um pavilhão térreo para abrigar barcos em área seca, com cobertura em terraço-jardim, e um grande ripado para plantas ornamentais: área aberta, parcialmente coberta por ripas como o próprio nome já indica, de modo a criar penumbras para plantas de meia-sombra e deixar entrever a paisagem circundante. Mas é executado apenas o pavilhão para barcos, que se torna a sede da marina. Nele se instala um pequeno comércio de apoio: mercearia, lanchonete, escola de vela, seis lojas de acessórios náuticos.
O pavilhão-sede recebe obras de acréscimo horizontal para instalação de mais onze lojas, em 1987; as lojas estavam sendo instaladas no lugar dos boxes para barcos, que passam a ser guardados em área de jardins por detrás do pavilhão-sede. A instalação é tolerada pelo IPHAN, que se vê diante de um fato já consumado. Em 1988, a mesma Riotur tenta erguer um acréscimo vertical, para instalação de restaurante panorâmico e dependências, que é denegado. O programa previsto no projeto original (1965), aparentemente, seria complementado em outro projeto, o do “Centro Cultural da Glória”, aprovado com restrições pelo IPHAN em 1988 depois de submetido ao Conselho Consultivo o parecer do Conselheiro-Relator Gilberto Ferrez, acolhido por unanimidade. Do projeto do Centro Cultural da Glória fazem parte um aquário e um ripado (parcialmente aberto e coberto por ripas) para plantas ornamentais (umbráculo), mas este projeto não é executado.
Em 1996, tal área é concedida, pela municipalidade, à Empresa Brasileira de Terraplanagem e Engenharia S.A./EBTE (cujo nome já indica sua especialidade), que cria a subsidiária Marina da Cidade Ltda. para administrá-la. Nos projetos de revitalização apresentados a partir de 1996, evidencia-se a mesma desconsideração ao projeto original do Parque do Flamengo em suas prescrições para a ponta da enseada e áreas próximas. Várias intervenções irregulares são interpostas desde então, como a ocupação do terraço-jardim do pavilhão e instalação de toldo em forma de velas de barco, com prévia remoção dos canteiros ajardinados e da pavimentação em mosaico, criação de Burle Marx. Tais intervenções são feitas com apoio de uma liminar judicial e o IPHAN não consegue manter os sucessivos embargos. Explica-se: inconformados com a denegação da versão 1998 do projeto, os concessionários haviam ingressado, em 1999, com ação judicial contra a União Federal e o IPHAN, e obtiveram, de início, liminar concedendo antecipação de tutela, com retorno à situação anterior em caso de decisão final desfavorável. A liminar fora obtida com base sobretudo na alegação dos autores de que o Conselho Consultivo do IPHAN se negara a analisar o projeto – fato que não procede e é comprovado, conforme sentencia, sete anos depois, o juízo em primeira instância (17ª Vara Federal). Em 2006, ainda na vigência da liminar, porém seguindo nova versão do projeto de revitalização, de 2005, os concessionários iniciam a obra, devastando áreas nas proximidades como o Bosque e a Área de Piquenique e, em seguida, cravando estacas no espelho d’água da enseada. Não vão adiante porque a liminar é suspensa.
A área abrangida pelos projetos de revitalização a partir de 1996 não é a mesma dos projetos de 1976 e 1988: é bem maior e excede a área da cessão à municipalidade em 1979. A ocupação estende-se por sobre a área tombada do espelho d’água da enseada, até a frente dos clubes náuticos, onde a concessionária deu início à construção de uma grande garagem náutica, cuja obra foi paralisada na fase do estaqueamento; tal obstáculo na paisagem seria visto até das vias expressas, pouco antes de se chegar ao Trevo dos Estudantes.
Ao longo da enseada, para transformar o belo espelho d’água em um grande estacionamento de barcos, construíram e duplicaram a via irregular sobre o enrocamento existente, com atracadouros – obra iniciada em 2006, paralisada e continuada dissimuladamente, concluída em 2011 (!).
A ocupação mutilou jardins na área fronteira à área de concessão, para se aumentar o estacionamento de carros, que foi cercado; do projeto de revitalização 2005 constava um grande pórtico de acesso exclusivo, que desfiguraria ainda mais traçados de caminhos e de canteiros de jardins originais do Parque que se constituem em área pública de fruição coletiva.
A ocupação projetada prolongou-se, por fim, na área posterior, avançando sobre a Área de Piquenique original do Parque (com mesas e bancos fixos em meio ao bosque), que foi desmontada, com supressão de jardins e corte e arrancada rudimentar de árvores, impossibilitando o replantio, apenas para ampliar o estacionamento de veículos, inclusive ônibus. Ao lado, foi construído o (já citado) novo trecho asfaltado de ciclovia que consolidou a mutilação de canteiros e traçados originais. Em 2008, pavimentou-se parte do solo antes ensaibrado, impermeabilizando-o e desfigurando ainda mais a Área de Piquenique. O início da Praia do Flamengo, conhecido como Prainha, está praticamente dentro da área de ampliação da marina.
Pretendia-se, também, instalar divisórias sobre a amurada do Parque, ao longo de todo o contorno da enseada. Esta grande extensão de divisórias teria o efeito de um muro com o reflexo dos raios solares e separaria paisagens indissociáveis, integrantes da mesma área tombada do Parque do Flamengo. A intervenção obstaria a visibilidade da Enseada da Glória e da Baía de Guanabara para quem estivesse em terra, e vice-versa, e impediria a percepção deste panorama por todos os que passassem. Representaria, ainda, a apropriação indevida de uma paisagem cultural coletiva.
O Parque do Flamengo tem um rico ecossistema, cujo equilíbrio está sendo rompido com o impacto da revitalização intencionada no trecho entre enseada e início da praia, com efeitos diretos na conservação de sua integridade física. A já intensa movimentação de negócios dos concessionários da Marina da Glória, que vêm pretendendo ampliar, só fará aumentar: é o que sugerem os projetos apresentados.
O bosque da Área de Piquenique que foi implacavelmente desmatado por detrás de um tapume, para dar lugar a um estacionamento de veículos, possuía múltiplas espécies vegetais, como pau-brasil, pau-ferro, casuarinas e eucaliptos e era habitat de pequenos gambás e de uma infinidade de pássaros, como o gavião de bico amarelo, o joão-de-barro, a maritaca, o bem-te-vi, a maria-preta e o beija-flor. Na enseada viam-se tartarugas que volta e meia descansavam no enrocamento ao longo de seu contorno e também pousavam na margem garças e outras aves. Nas águas da enseada, vivem (ou viviam) peixes como a tainha, o parati e a sardinha.
A exploração produtiva com grandes estacionamentos de carros e barcos (9) não apenas ocuparia o espaço físico da flora e fauna do Parque, como provocaria efeitos adversos para o equilíbrio ambiental: a poluição do ar e da água seriam os mais óbvios.
Sobre a Área de Piquenique, é preciso lembrar que a própria municipalidade ergueu ali, sem anuência do IPHAN, construções de caráter precário, para uso de repartições municipais. Com a finalidade dessa ocupação, desfigurou jardins originais da Área de Piquenique e se expandiu, mutilando jardins originais também das proximidades. A área foi fechada com paliçada e portão na frente e muro na lateral direita. Também foi a municipalidade que, em março 2006, começou a construir um novo trajeto de ciclovia, junto ao muro lateral que colocara na Área de Piquenique, mutilando ainda mais um dos canteiros e o traçado de caminhos e largos ensaibrados. Este trecho asfaltado de ciclovia foi concluído.
Quanto ao corte de árvores da Área de Piquenique e imediações, teve início na noite de uma sexta-feira, 28 de abril de 2006, véspera de um final de semana prolongado pelo feriado de 1º de maio. O IPHAN recebeu e apurou denúncia de freqüentadores sobre as obras e foi documentada a ação de tratores, guindastes e escavadeiras sobre canteiros e caminhos ensaibrados. A Área de Piquenique estava sendo totalmente desmontada e a demolição de construções municipais de caráter precário já havia sido iniciada.
O entulho resultante dessas demolições foi jogado dentro da enseada, segundo informado por vários freqüentadores do Parque, que presenciaram, indignados, a movimentação de operários e de caminhões municipais despejando-o no enrocamento; no entulho, estavam pedaços de mesas originais da Área de Piquenique.
Por outro lado, tem sido alegado pelos concessionários que o corte de árvores na Área de Piquenique e imediações será objeto de medida compensatória. Neste caso entende-se, erroneamente, que a supressão de espécies em determinada área pode ser ‘compensada’ pelo plantio de número maior de árvores em outra área, circunstância que poderia satisfazer, com restrições, preocupações de ordem ambiental ― pois de todo modo haveria alterações no equilíbrio dos ecossistemas. Mas tal ‘compensação’ não pode ser admitida sob a ótica da preservação cultural, uma vez que implica alteração da concepção urbano-paisagística do Parque e pode resultar na criação de um muro vegetal que obstruiria a paisagem e a vista da Baía de Guanabara e do Pão de Açúcar. Ou seja, é preciso fazer-se entender que, sob o aspecto da preservação cultural, o corte de árvores e a supressão de espécies vegetais no Parque do Flamengo não podem ser compensados senão com a sua reintegração, tal como antes, no sítio original.
Com a devastação abrupta de jardins e da Área de Piquenique do Parque, a sociedade mobilizou-se. Organizou-se, com a participação de freqüentadores, o movimento S.O.S. Parque do Flamengo. Instituições como a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas/ABAP, o Instituto de Arquitetos do Brasil/IAB, a Associação de Moradores do Centro e o DOCOMOMO se manifestaram contra o projeto com adesões na imprensa (Cora Rónai, Elio Gaspari, Zuenir Ventura, Guilherme Wisnik...). O arquiteto e paisagista Fernando Chacel (1931-2011) não escondia sua consternação, em seu texto Em nome do Parque (1.6.2006). Procedimentos foram instaurados pela Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro contra os concessionários e a municipalidade, para apuração de denúncias de obras irregulares que destruíram áreas públicas de fruição coletiva.
A despeito dos tapumes colocados, com placa da prefeitura, no trecho inicial do Parque (próximo aos clubes náuticos) e fechando a Área de Piquenique, o barulho das máquinas despertava a atenção. Os tapumes permanecem no local e foram apelidados, pela população, de ‘muro da vergonha’. Provisórios, os tapumes tornaram-se quase elementos permanentes, que obstam a vista para a praia e, providencialmente, ocultam o estacionamento de veículos e eventuais movimentações de obras. Também provisórias, as grandes tendas de lona montadas para eventos na ponta da enseada estão armadas há anos e são visíveis quando se caminha pelo contorno da enseada ― este, um dos mais freqüentes passeios pelo Parque, com direito a descanso na amurada baixa e contemplação de uma das mais belas paisagens do mundo.
Em 2009, a EBTE, concessionária da administração da área na ponta da Enseada da Glória conhecida como ‘marina da Glória’, passa a integrar o Grupo EBX, que já adquirira o Hotel Glória. O Grupo anuncia a intenção de apresentar outro projeto para a marina e constrói, nas proximidades do MAM, atracadouro especial para um barco de passeios de luxo. Verifica-se uma tendência de tratar o Parque do Flamengo como ‘quintal’ do Hotel: “Serão investidos R$ 150 milhões para transformar o local em espaço de gastronomia, turismo e lazer. A proposta é integrar a Marina ao Hotel Glória” (10).
3. Considerações finais
Nota-se, sobretudo a partir de abril de 1998, o enfoque do concessionário de tratar qualquer obra, simultaneamente, como benfeitoria e instalação provisória, termos que, aparentemente, remetem a um paradoxo. Sobre o caráter provisório das intervenções, a experiência já demonstrou que a tendência é ir deixando as coisas ficarem como estão, até o momento de novamente intervir para modernizar, acrescer ou expandir, isto é, para consolidar o que seria transitório. Quanto às benfeitorias, é uma prática histórica, em terras públicas, o governo estimular o concessionário a ir além da conservação, e efetuar melhoramentos e modernização de equipamentos urbanos, em troca da chamada exploração produtiva. Tais obras podem ensejar a extensão de prazos da concessão e vêm sendo referidas, nas últimas décadas, sob o nome genérico de revitalização.
Os contratos de concessão seguem modelos-padrão dos setores de Fazenda de cada governo e dizem respeito a qualquer área urbana. Mas, no caso do Parque do Flamengo, trata-se de área tombada que, salvo as construções previstas na Planta Geral (1965), é não edificável, e cuja benfeitoria maior seria sua conservação, recuperação e outras operações correlatas à restauração. Estas medidas, porém, não constam dos contratos e o entendimento de locadores e locatários sobre o significado do termo ‘revitalização’, além de nem sempre convergir, não raro se contrapõe aos interesses da preservação (e vice-versa). Cria-se um dos problemas, cuja origem está, não por acaso, na redação padronizada dos contratos.
Há outro aspecto a ser destacado sobre a concessão à iniciativa privada. No âmbito da exploração econômica da marina, ao aluguel de vagas no ancoradouro de barcos somou-se a sublocação, para outros fins, de espaços destinados, a priori, aos serviços próprios de uma marina, pois a criação, para aluguel, de lojas comerciais numa paisagem deslumbrante como esta tem atraído outros investidores não apenas do setor náutico, mas relacionados a alimentação, turismo e de outros ramos. E há também o aluguel do terreno para eventos (moda, música etc.) que, apesar de transitórios, pela sua recorrência periódica acabam sendo associados ao espaço. Ocorre, assim, uma mudança de valores e uma forma de loteamento disfarçado, cujo efeito também é o de retalhamento visual da paisagem pela diversidade de equipamentos e de engenhos de publicidade instalados, por exemplo.
Por outro lado, ao ceder cada vez mais espaço para aluguel a terceiros, o concessionário fica propenso a tentar erguer novas instalações para si. Monta tendas e barracões provisórios e levanta pequenos anexos de forma desordenada, até que resolve investir em algo durável. Contrata um projeto e a idéia inicial se multiplica, como se não houvesse limites para a exploração produtiva, que deixa de ser relacionada exclusivamente ao ancoradouro de barcos, idéia precípua de uma marina, e passa a ser associada à ocupação máxima do solo (lojas, sobretudo) em área não edificável. O capital para este novo investimento com construções advém da renda auferida com os aluguéis e de outras empresas com interesse na área e tais construções se tornam maiores, na mesma proporção dos novos espaços de comércio e serviços que vão sendo criados.
Aí, já estaríamos falando em construção civil de empreendimentos de negócios, com centros empresariais, shopping centers e congêneres no Parque do Flamengo, que é na verdade para onde caminham progressivamente os projetos de revitalização que vêm sendo apresentados para a área da marina e imediações. É uma lógica absurda, mas real. E isto também explica a tentativa de expansão além dos limites da área concedida, com o aval de sucessivas administrações municipais.
Considerando os acontecimentos no decorrer dos anos, constata-se a indisfarçável aspiração, dos gestores públicos, de se desembaraçarem de despesas de conservação inerentes à própria Administração Pública. Na área do Parque do Flamengo, incontáveis projetos, em nome da prefeitura, foram propostos com a finalidade de ocupar grandes e pequenas extensões ou de alterar traçados; o zelo seria transferido, gradualmente, à iniciativa privada. Trata-se de questão enraizada no próprio planejamento urbano municipal, que reluta em reconhecer o Parque do Flamengo como um parque de características especiais – aliás, um dos espaços públicos de que mais deviam se orgulhar os próprios governos federal, estadual, municipal. Cria-se um problema sócio-cultural mais profundo, e de solução mais difícil, ao se transferir a gestão à iniciativa privada.
Ao interesse municipal de reduzir despesas soma-se o de obter novas fontes de receita (sublocação, impostos sobre novos serviços), amparados, ambos, pelo interesse privado da maximização do lucro. É o caso dos projetos apresentados a título de revitalização da marina da Glória. Jogos Panamericanos, Olimpíadas, turismo, tudo será usado como indisfarçável pretexto para a exploração imobiliária da área. Obtendo-se o licenciamento, previsivelmente, o próximo passo seria aterrar toda a enseada.
Expressões como “área de serviço da Marina da Glória” ou uma marina “associada a um grande terreno baldio que por direito e uso lhe pertence” vêm sendo utilizadas na apresentação de projetos e propostas de intervenções na área ocupada pelo concessionário, como nas versões 1996-1998. A depreciação, neste caso, nem se justifica, até porque a situação atual de deterioração de áreas gramadas e calçadas em pedra portuguesa, por exemplo, não só revela o pendor das administrações municipais a deixar a área se degradar – circunstância que ‘justificaria’ o repasse da gestão à iniciativa particular –, como tem relação direta com o uso indiscriminado para eventos e com a perfuração de pontos para montagem de tendas e outras instalações, além da circulação de veículos de carga sobre estas áreas, inclusive com estacionamento informal. Certamente, não é por acaso que não se completou, ainda, o projeto na ponta da enseada com o uso e funções previstos no Plano do Parque (1965).
A condição de non aedificandi não impede a construção dos itens previstos nesse Plano original. Ao contrário, o IPHAN empenhou-se em fazer com que os itens previstos em terra na extremidade da Enseada da Glória fossem implantados, de modo a entregar ao grande público uma área de recreação com caráter educativo de que muito se beneficiaria a cidade.
O empreendimento imobiliário que se fantasia de revitalização não está citado, explícita ou implicitamente, no decreto federal nº 83.661 (2.7.1979) que aparentemente contrariou o programa original do Parque ao destacar o item ‘marina’, originariamente restrito aos dez píeres. Contudo, este dispositivo legal, ao ceder a área à municipalidade para o desenvolvimento e expansão da “Marina Rio”, remete, inclusive, ao projeto da “Marina Rio”, aprovado pelo IPHAN em 1976, do qual resta erguer apenas o ripado para plantas. Ou seja, o decreto de 1979 não impede que se construam os itens previstos originalmente. Mas já foi declarado pelos proponentes do projeto 1998 que não é do interesse do concessionário executar os projetos aprovados em 1976 e 1988, e tampouco observar as disposições do Plano original. Até um “hotel para executivos” já foi aventado, apresentado estrategicamente como projeto alternativo no relatório de impacto ambiental 1999 encomendado pelos concessionários.
Ao se aproximarem os 450 anos de fundação da cidade, é tempo de refletir sobre esta obra magistral dos 400 anos, que nasceu integrada ao panorama da entrada da Baía de Guanabara, delineando seu destino de ser perenizada em associação com o berço do Rio de Janeiro e com as crianças – estas tão lembradas no projeto do Parque e hoje tão esquecidas.
Não se falará aqui do direito das crianças e de toda a população de ter acesso livre a esse panorama e a todas as áreas do Parque, ou do dever do Estado de assegurar que isto continue ocorrendo. Nem se falará da ética dos arquitetos, da necessária consciência de sua responsabilidade para o futuro das cidades. Mas pondera-se que qualquer obra pretendida no Parque do Flamengo deve ser atentamente examinada não apenas por si, pela beleza fácil do projeto arquitetônico ou pelo renome do autor. Em uma área caracterizada pela excepcionalidade de suas paisagens, como o Parque, exige-se, antes de tudo, que o arquiteto olhe, que sinta o panorama de tirar o fôlego que se descortina do Centro a Botafogo ao passear por seus variados recantos. Qualquer projeto, ali, deve se condicionar, sem artifícios, a esta grandeza – tarefa que exige sensibilidade, talento, conhecimento profundo do lugar e profunda consciência ética: somente assim se pode alcançar a simplicidade e o amor que permitiram a Lota, Reidy, Burle Marx e toda a equipe oferecerem à cidade e ao país este presente.
notas
NE
Ver também a parte 1 deste artigo: GIRÃO, Claudia. Parque do Flamengo, Rio de Janeiro, Brasil: o caso da marina – parte 1. Arquitextos, São Paulo, n. 12.135, Vitruvius, jul. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.135/4014>.
1
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do Rei. Uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Garamond, 1999.
2
LEITCHIC, Berta. Entrevista em 19.12.2000. In: Capítulos da Memória Urbana, Américo FREIRE e Lucia Lippi OLIVEIRA, Capítulo I, O sonho utópico: Reidy e os Modernos. Rio de Janeiro, Folha Seca, 2002.
3
GIRÃO BARROSO, Claudia Maria. Parecer Iphan-RJ 003/2006, 25.4.2006, sobre o projeto de revitalização 2005 da marina da Glória. Este parecer foi a base do presente texto.
4
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981 [ed.franc. 1971].
5
MEDEIROS, Ethel Bauzer. Um milhão de metros quadrados para recreação pública. Revista Arquitetura, Rio de Janeiro, n. 29, IAB, nov.1964.
6
PEIXOTO, Enaldo Cravo. Urbanização do Parque do Flamengo. Módulo, Rio de Janeiro, n. 37, ago.1964.
7
Espaço semelhante se via, por exemplo, nos jardins da antiga Estação de Hidroaviões, obra de Atílio Corrêa Lima; na segunda metade da década de 1960, quando já se instalara o Clube da Aeronáutica, havia uma área com brinquedos e uma grande gaiola de pássaros. Certamente o avanço da consciência ecológica possibilitou, progressivamente, um olhar mais atento sobre o necessário cuidado na exposição de animais e o necessário estabelecimento de severa legislação de proteção ambiental, mas, em todo caso, o programa funcional para a enseada da Glória estava inserido na proposta recreativa, com base educativa e cultural, do Parque do Flamengo e nada a tinha a ver com exploração de flora e fauna para fins comerciais.
8
O decreto federal nº 83.661 (2.7.1979) contraria parte do Plano do Parque ao dispor sobre área na ponta da enseada da Glória (105.890,00m²) cedida à municipalidade, sob regime de aforamento, para a intensificação das atividades náuticas no “complexo Marina-Rio”. Cinco anos depois, um contrato assinado pelo presidente da República (22.3.1984) destina a área ao desenvolvimento e expansão das atividades da marina.
9
De certo modo, a expansão territorial irregular com carros e barcos se assemelha à prática de ocupação de terras com criação de gado e plantações e ao gradual “avanço de cerca” sobre terras públicas, a cada reparo na cerca ou medição topográfica.
10
Cf. noticiado. A transcrição é de <www.kincaid.com.br/clipping/1518/Marina-da-Glria-pas.html?PHPSESSID=517dc12eae84856a4f94e831d4856563>.
sobre a autora
Claudia Girão, arquiteta do Iphan.