Chicago e a Exposição Colombiana
A Exposição Colombiana, como o próprio nome diz, fez parte das comemorações dos 400 anos de descoberta da América por Cristóvão Colombo. Era para ter sido realizada em 1892, mas seus organizadores não conseguiram viabilizá-la em tempo.
Essa Exposição de Chicago inseria-se no âmbito das inúmeras Exposições Universais, que na segunda metade do século XIX foram organizadas em várias cidades da Europa e Estados Unidos, para divulgar os então recentes progressos tecnológicos decorrentes da Revolução Industrial.
A Exposição adquiriu relevância também por um outro aspecto. Foi nesse encontro onde se registrou, pela primeira vez, em ambiência americana, um fórum propondo soluções para organizar o caos urbano em que se encontravam as grandes cidades norte-americanas. A imensa área destinada a abrigar os pavilhões de exposições, foi planejada em escala monumental, formada por diversos edifícios, palácios, circundando enorme espelho d’água, que ficou conhecido como a White City. Tal modelo, organizado, coerente e esteticamente ideal, vinha ao encontro dos anseios da população, em especial de Chicago, que na época era a segunda maior cidade dos Estados Unidos, contando com mais de 1 milhão de habitantes.
Chicago, nessa época, vivia as conseqüências perversas da política do bossism (ou laissez-faire urbano) - os “boss” ofertavam serviços mínimos aos imigrantes em troca de votos eleitorais, fazendo que as cidades fossem vitimas de uma política urbana completamente descontrolada, atendendo somente aos interesses políticos e especulativos decorrentes dessa prática. Além disso, devido à intensa imigração, havia grande incômodo nos membros da classe media com a heterogeneidade sócio-econômica e de usos existentes na vizinhança dos locais onde habitavam. Não eram só as residências operárias e de imigrantes pobres que incomodavam, mas também a sujeira e o barulho das indústrias.
Deste cenário emergiram reações sociais, especialmente desses membros da nascente classe média, de sociedades de classe, de associações de pequenos comerciantes e de empresários (como os rotarianos a partir de 1900) que por suas pressões políticas, induziram ao aparecimento de medidas normativas para disciplinar a ocupação do solo (como o zoning) (1) assim como para melhorar as condições estético-ambientais do espaço urbano. Deste último aspecto é que derivariam os condicionantes para a emergência de uma manifestação tipicamente norte-americana: o movimento City Beautiful.
A Exposição, a White City e o Movimento City Beautiful
Esse movimento ganhou forma após a Exposição (2) e, mais especialmente, com o cenário da White City, que adquiriu esse nome pelo fato de Daniel Burnham, responsável pela organização do evento, ter decidido que todos os edifícios monumentais ali expostos deveriam ser pintados unicamente com a cor branca, fato que criou imenso impacto visual e maravilhou a todos. O cenário assim criado, composto por um grande espelho d’água, circundado por palácios em estilo clássico romano e renascentista deslumbrou os visitantes do evento, difundindo este estilo para toda a nação americana e enaltecendo assim ,as virtudes da escala monumental aplicada ao civic design. (3).
O City Beautiful surge, portanto, como um movimento reformista. Contou, dentre seus mais notórios adeptos, como o próprio Burnham (o mais famoso arquiteto americano, que coordenou os trabalhos de montagem da Exposição e que em 1909 faria o Plano de Chicago) e Charles Mulford Robinson. O movimento alcançou dimensões e difusão em escala nacional, graças a uma mobilização social neste sentido, além de um arranjo político e econômico favorável, uma vez que o movimento fora concebido dentro dos valores e premissas de uma sociedade liberal-capitalista, comercial-industrial e defensora da propriedade privada, o que era atributo das classes média e média-alta americanas. (4)
O movimento estava fundamentado em duas premissas básicas para a intervenção urbana: primeiro, a devoção ao estilo clássico-renascentista, aplicado nos edifícios emblemáticos da cidade e, segundo, à adoção de um urbanismo valorizando a monumentalidade. Complementarmente, o analista Christopher Tunnard observa que a exposição não utilizava uma arquitetura copiada só das referências clássicas e renascentistas européias. Era, na verdade, uma típica recriação norte-americana, pois adaptava a linguagem clássica a uma escala grandiosa de forma a criar magníficos cenários. E termina dizendo “a exposição afirmou a possibilidade de tornar as cidades belas” (5)
William Wilson, um dos maiores especialistas no estudo dessa matéria, completa a descrição, afirmando também que este movimento possuía como princípios, ações visando a qualidade do ambiente através de projetos que valorizassem a beleza, a ordem, o sistema e a harmonia, como edifícios públicos, centros cívicos, parques, sistema viário, embelezamento do espaço público, vegetação e mobiliário urbano. Com isso pretendia-se atingir os corações e mentes dos cidadãos e imbuí-los por um sentimento de civismo, patriotismo, e sentido comunitário. Estes princípios reformistas, aplicados aos bairros periféricos, auxiliariam na produtividade do trabalhador e na economia urbana.
O movimento City-Beautiful acabou se consolidando desde então, atingindo seu apogeu entre 1900 e 1910. Após esse período, passou a sofrer constantes criticas pelos partidários do urbanismo mais prático (city practical), acusado de ser custoso e superficial para o enfrentamento dos problemas urbanos. (6)
O plano Mc Millan para Washington elaborado em 1902, foi um bom exemplo de aplicação dos princípios do City Beautiful, enfatizando a simetria e a grandiosidade dos eixos concebidos por l’Enfant.
A Exposição Colombiana e o International Engineering Congress
A Exposição Colombiana de Chicago foi um empreendimento de enormes proporções que conseguiu ser viabilizado e atingiu o sucesso surpreendente registrado graças ao seu coordenador, Burnham, um dos profissionais mais preparados para assumir tal desafio, dada a sua larga experiência em obras de grande porte. Seu lema no trabalho era “Não faça planos pequenos, pois eles não possuem a magia para agitar o sangue humano (7)
O evento foi organizado na esteira do grande sucesso de alguns outros anteriores: o primeiro foi a exposição em comemoração ao centenário da independência americana, a Centennial Exposition of Philadelphia, em 1876, que contou com as espantosa cifra de mais 30 mil expositores e cerca de 10 milhões de visitantes. Depois vieram as referências das exposições universais de Paris de 1878 e 1889. A ocasião portanto era muito propícia para um novo evento de grandes proporções: afinal, o leit motiv, a descoberta da America, era mais do que apropriado para comemorar um dos maiores feitos da história da humanidade.
A exposição, que ficou aberta ao público durante cinco meses (maio a outubro de 1893) contou com a representação de 51 nações e 39 colônias, que foram distribuídas ao longo da imensa área do evento, onde além dos espelhos d’água, existiam 14 construções monumentais com mais outras 200 de menor porte. O foco principal da exposição era mostrar as novidades nos equipamentos ligados à modernidade: manufatura industrial, máquinas, novas descobertas científicas e artes liberais. Mas havia também outros temas como o dos exotismos e curiosidades, onde eram expostos beduínos com seus dromedários, em trajes típicos, mostras da cultura e hábitos quotidianos de egípcios, japoneses e outros povos distantes, áreas de recreação, espaços culturais, restaurantes, e a clássica roda-gigante, a última novidade tecnológica de então.
No catálogo do evento consta que o Brasil participou, expondo uma pirâmide, representativa das 41 toneladas de ouro extraída de suas jazidas entre 1720 e 1810. (8)
Nessa ocasião foram realizados eventos paralelos, como o International Engineering Congress. Esse encontro era um tradicional seminário anual organizado pela American Society of Civil Engineers, o mais importante organismo representativo dos engenheiros civis e um dos principais ambientes onde surgiu o debate urbanístico americano. Essa associação, fundada em 1853, possuía um periódico que publicava os anais dos eventos anuais, intitulado Transactions of the American Society of Civil Engineers. Este periódico era dedicado aos distintos aspectos da engenharia civil na época, com concentração em artigos na área de transporte (ferrovias, navegação e portos) e com início da discussão de aspectos do sistema viário, como técnicas de pavimentação, abertura de estradas, assim como nas áreas de saneamento, sistemas de abastecimento e drenagem, técnicas de tratamento de água, tecnologia do concreto armado, enfim aspectos técnicos envolvendo uma área de conhecimento que começava a se aproximar da abordagem do urbano, mas sem ainda existir uma especificidade de uma discussão sobre o urbanismo. No índice consultado da revista correspondendo a um período pioneiro, ao longo de mais de cinqüenta anos, indo de 1867 a 1920, o artigo do urbanista alemão Joseph Stübben (9), de 1893, pode ser considerado um precursor nesta abordagem. Por ser considerada uma revista de uma classe de profissionais específicos, não encontraremos profissionais notáveis, precursores do urbanismo norte-americano publicando nesse periódico, como Burnham ou Olmsted.
Os volumes XXIX e XXX , correspondentes ao segundo semestre de 1893, são documentos valiosos para o nosso estudo, pois trazem a íntegra dos textos apresentados neste evento.
Por estes anais, constata-se que a conferência de Stübben é a única que aborda o tema do urbanismo com especificidade, pois, como já comentado, o campo de ação dos engenheiros civis estava se aproximando do tema. No congresso encontraremos alguns papers discutindo assuntos sobre salubridade, infra-estrutura e transporte. Uma abordagem de caráter estético e de visão abrangente de desenho urbano era algo novo e certamente não havia na platéia público preparado para compreender e debater o assunto com alguma propriedade.
Nesta época, o conhecimento do urbanismo pelos americanos era escasso, O urbanismo alemão, que seria a vanguarda, ainda não havia por lá aportado e também não existia ainda uma entidade ou escola de formação dedicada especificamente ao assunto. Nas escolas norte-americanas, os ramos de ensino eram subdivididos em Architecture, Civil Engineering e Landscape Design. Ainda não haviam surgido os cursos de City Planning ou de Urban Design e portanto alguma incipiente discussão sobre questões urbanas aparecia somente na escola do Landscape, com os seguidores de Frederick Law Olmsted, o pai dos paisagistas norte-americanos.
A abordagem urbanística nesses congressos foi, portanto, ocorrendo lentamente, a partir de necessidades práticas enfrentadas pelos engenheiros nos seus trabalhos nas áreas de infra-estrutura urbana.
Em outros veículos de difusão, como as revistas, essa discussão já surge com mais vigor, alimentada por associações de classe, jornalistas e profissionais liberais. Um bom exemplo foi a revista Municipal Affairs, que em 1902 já publicava um volume inteiramente dedicado ao levantamento bibliográfico de toda a produção norte-americana sobre o tema. O papel que Charles Mulford Robinson (10) acabou desempenhando ao se interessar pela questão urbana e pelo reformismo, transformou-o em um dos maiores expoentes do nascente urbanismo norte-americano, em especial do movimento City Beautiful.
Portanto, em 1893, os engenheiros e arquitetos norte-americanos ainda não conheciam o livro referencial do arquiteto austríaco Camillo Sitte (11) (só traduzido para o inglês muito tempo depois, na década de 1940) e só tinham tido um reduzido contato com um trabalho do urbanista alemão Reinhard Baumeister sobre higiene e saneamento, traduzida e publicada alguns anos antes. (12)
E por esse motivo que Christiane Collins, uma das principais estudiosas deste período, constata que nesse encontro, a fala de Stübben não teve muita repercussão, sobretudo porque não havia uma audiência preparada para entender tais preocupações e discutir as implicações artísticas dos projetos urbanos (13).
A conferência de Joseph Stübben
Esta conferencia intitulada “Practical and Aesthetic Principles for the laying out of cities” (Princípios práticos e estéticos para o projeto de cidades) foi um trabalho que Stübben havia preparado e apresentado em um outro evento alemão oito anos antes, o Deutsche Verein für öffentliche Gesundheitpflege (Associação alemã de defesa da saúde pública), no encontro ocorrido em setembro de 1885 na cidade alemã de Freiburg. (14)
Logo depois, esse texto seria aproveitado no clássico manual de urbanismo publicado por Stübben em 1890, o Der Städtebau (reeditado e ampliado posteriormente em edições de 1907 e 1924).
Stübben fora para Chicago fazendo parte de uma comissão de engenheiros alemães especialmente enviada para o evento, onde participavam com um estande de divulgação. E apesar de posteriormente ser reconhecido por Geo B. Ford como “o pai do urbanismo alemão”, o acesso aos escritos de Stübben pelos americanos foi sempre muito limitado, pela quase nenhuma tradução de seus escritos para a língua inglesa. (15). Este artigo apresentado em Chicago perdurou, assim, durante muitos anos (até praticamente o advento da Primeira Grande Guerra), como o único material de Stübben facilmente acessível aos americanos.
O texto de Stübben apresenta os princípios que devem ser seguidos no planejamento de áreas urbanas e de expansão urbana. Está dividido em duas partes: princípios práticos e princípios estéticos, expressando o próprio titulo da conferência.
Na parte relacionada á prática, o trabalho defende uma concepção geral de desenho viário fundamentada no modelo radial-concêntrico, ou seja, de que as áreas novas a serem planejadas devem seguir uma orientação geral presente no desenvolvimento do núcleo urbano, onde há um setor central e vias radias que o ligam as zonas periféricas, Este traçado básico define o que chama de setores urbanos. As seguir os setores são subdivididos por vias concêntricas ou em forma de anel (ring), e dentro de cada um desses sub-setores de formato trapezoidal, existirão vias locais, em traçado ortogonal e uma via diagonal. Todo o sistema é concebido pensando–se no tráfego e na eficiência de sua fluidez.
Este modelo não é de concepção de Stübben, Na verdade, há referencias às recomendações de Baumeister, constantes em seu clássico manual, publicado anos antes (Stadt-Eweiterwrung....1876) (16) e principalmente á cidade de Paris, que a Stübben fascinava. (17).
Desta forma, Stübben recomenda que a partir da adoção desse modelo, não seja utilizada a quadrícula. (“a mere rectangular system is unfit for a street plan”) (18).
O perfil da vias deve favorecer a drenagem e jamais implicar em grandes movimentações de terra para a sua realização.É recomendável discretas curvaturas ao longo do traçado viário, evitando-se traçados muito extensos e em linha reta. A largura da via deve sempre ser projetada em função do volume de tráfego que por ela vai circular.
Deve-se prever centros comerciais e pontos focais. No arranjo urbanístico devem ser definidos quadras de tamanhos e localizações distintas onde devem estar previstos usos para edifícios comerciais, residências particulares, casas de aluguel, lojas e residências para operários, assim como para edifícios públicos. Distritos industriais devem ser previstos, em locais que não causem prejuízo á saúde dos habitantes.
Em relação aos aspectos sanitários, a recomendação é para manter o solo sempre drenado e seco, com infra-estrutura sanitária subterrânea e fornecimento de água potável. As ruas devem ser orientadas seguindo os eixos cardeais de forma a favorecer a insolação e a boa ventilação. A salubridade dependerá também de uma largura adequada para as ruas, de uma boa implantação da construção no lote, da existência de espaços abertos para praças e de áreas verdes ao longo das vias e no interior dos lotes.
Na segunda parte, a questão estética é enfocada para o delineamento do traçado viário. Recomenda-se traçados intercalando trechos retos com curvos, evitando-se ruas demasiadamente longas, assim como curvas convexas em mudanças de nível. É recomendável também que se evite espaços abertos demasiado amplos ao longo do percurso viário e se privilegie o uso de ajardinamento e decoração artística.
Por fim, recomenda ainda que a largura de uma rua não seja inferior á altura dos edifícios lindeiros, que em frente a estruturas importantes haja um tratamento diferencial do espaço fronteiriço. No caso de estruturas de grande relevância, devem ser colocados em ponto de topografia superior, se possível em ponto focal de convergência viária, desde que não traga prejuízo á circulação.
Esta última parte do trabalho contem, implicitamente, uma alusão direta aos estudos ótpicos de Hermann Maertens (19), que foram muito usados por Camillo Sitte e que se constituíram em referência para os estudiosos de arquitetura e urbanismo na época. Hermann Maertens, realizou interessante pesquisa a respeito do posicionamento ideal de um observador face a um monumento. Tabulou alturas e ângulos visuais de vários dos monumentos clássicos e modernos e chegou a determinados padrões que serviram de base para as suas recomendações, que abrangiam desde altura de construções em função da largura de vias, de posicionamento de monumentos e esculturas em espaços abertos e praças. O trabalho clássico de Maertens, publicado em 1877 é Der optische Maassstab oder die Theorie und Praxis des ästhetischen Sehens in der bildenen Kunst (A escala óptica ou teoria e prática do olhar estético nas artes plásticas).
Christiane Collins também observa uma compilação direta de Maertens, apresentada na página 731 das Transactions…, quando Stübben diz “de acordo com as leis da estética....recitando a seguir as regras de Maertens (20).
De fato, tanto na primeira quanto na segunda edição de seu manual (1890 e 1907) Stübben dedicaria atenção especial a Maertens, descrevendo sua teoria e incluindo a clássica ilustração do observador contemplando um monumento e as angulações correspondentes.
Tanto Stübben quanto Maertens exerceriam posteriormente significativa influência no ideário dos primeiros urbanistas brasileiros, em especial nas propostas elaboradas por Victor da Silva Freire para o Paço Municipal de São Paulo e na concepção de estrutura urbana adotada de Prestes Maia em seu Plano de Avenidas.
O comentário crítico de James Owen
A sessão temática onde Stübben apresentou seu trabalho, foi encerrada com um a relatoria e um comentário por parte de James Owen. Owen era engenheiro e membro da American Society of Civil Engineerings. Costumava escrever no periódico desta instituição com freqüência, a Transactions... e sobre os mais diversos temas técnicos: construção de estradas, pavimentação, concreto armado, finanças. Não tinha portanto uma compreensão da ambiência urbanística e nem das discussões e propostas que estavam em curso na Europa.
A critica principal que Owen apresenta ás idéias expostas por Stübben é que o modelo urbano apresentado, radial-concêntrico, é um modelo teórico e que não possui aplicação no caso norte-americano. Segundo Owen, Stübben estaria muito preso à realidade das cidades européias e à tradição, e não estava aberto á compreensão do dinamismo urbano das cidades americanas, que nasciam e cresciam longe da tradição e de modelos.
O traçado urbano ortogonal propicia maior facilidade para o parcelamento e maior homogeneidade no valor dos lotes e a adoção de avenidas diagonais, segundo Owen, pode ser aceita em algumas circunstâncias. Sugere, por fim, que o planejamento viário deva ser pensado em termos de solucionar eficientemente os distintos modos de deslocamento: por veículos motorizados, por tração animal e a pé.
Realmente, para uma visão pragmática sobre a intervenção na realidade, típica do cenário norte-americano, de imensas áreas disponíveis para a urbanização, com grandes planuras, era difícil aceitar um modelo como o apresentado por Stübben, porque para os americanos, a tradição do parcelamento eficiente, levava ao traçado ortogonal.
Essa herança, poderia se imaginar ter suas raízes na colonização espanhola (presente em boa parte do território sul dos Estados Unidos) e seu padrão de quadrícula. Mas na verdade. a origem dessa preferência pelo gridiron form tem um antecedente importante: o plano de Nova York, concebido em 1811.
Spann comenta o assunto e aponta também outras referências mais antigas na cultura urbanística dos Estados Unidos: primeiro, o plano de Philadelphia (1683), concebido por Wiliiam Penn, que procurou expressar a visão simples e humanitária de um quaker em um desenho urbano de forma geométrica e ampla. Supõe-se também que Penn tenha também sido inspirado pelo então recente plano de Londres, onde a quadrícula foi usada na proposta de reconstrução da cidade após o grande incêndio de 1666. E, em segundo, o plano de L’Enfant para Washington (1792), onde a quadrícula foi usada, mas mesclada com um traçado composto por várias diagonais, pois o arquiteto francês julgava que a simples quadrícula era enfadonha e insípida. (21)
De qualquer forma, a referência a um traçado urbano de raízes européias, não ortogonal, já havia sido perdida pelos americanos desde há muito.
Daí decorre essa reação de Owen. Isso pode explicar também porque certos textos clássicos dos primórdios do urbanismo moderno europeu, não tiveram repercussão nos Estados Unidos, ou então só tivessem sido traduzidos muito tempo depois. Por exemplo, o livro de Camillo Sitte (Der Städtebau...) não possuía nenhuma ressonância com os problemas urbanos que as cidades americanas estavam passando: crescimento explosivo, industrialização intensa, bossism, desagregação social, marginalidade, etc. Discutir praças, espaços abertos em frente a antigas igrejas ou sutilezas da estética do traçado viário eram assuntos muito distantes para uma sociedade que se transformava muito rapidamente e que não possuía tradição e nem história com suas cidades. O que podia fasciná-los naquele momento era a solução estética fornecida pela White City.
Considerações Finais
A Exposição Colombiana de Chicago promoveu o início do debate e da consciência sobre diversas dimensões da problemática urbana e de suas possíveis soluções. Contribuiu significativamente para reforçar uma tendência já existente entre os segmentos mais conscientes e organizados da população, a respeito da relevância de projetos reformistas e de cunho estetizante, que culminariam com o movimento City Beautiful. E consagrou seu principal organizador, Daniel Burnham para se lançar como profissional urbanista, que culminaria com o plano que realizaria para a própria cidade de Chicago anos mais tarde, em 1909.
Por outro lado, o Congresso Internacional de Engenheiros lançou o debate sobre teorias e ideário urbano em nível mais técnico, trazendo para a cena americana o maior urbanista da época, Joseph Stübben. O impacto de sua preleção no evento acabou não gerando os efeitos desejados, mas mostrou que, ao relatar suas teorias para uma audiência formada em sua totalidade por engenheiros práticos, ávidos para discutir aspectos técnicas e de imediata aplicação aos problemas urbanos, não criou a ressonância necessária para o debate. Os americanos, precisariam aguardar mais de 15 anos até que fossem criadas as National Conferences of City Planning, que viriam amadurecer esse debate. A preleção de Stübben naquele momento, pode-se dizer, eram colocações de idéias fora do lugar.
notas
NE
Este trabalho foi apresentado no XIV Encontro Nacional da ANPUR, realizado no Rio de Janeiro em maio de 2011 e editado em CD nos Anais desse evento. O texto é resultado de estágio de pesquisa realizado em 2010 nos acervos da Universidade Técnica de Viena, financiado pelo Fundo Mackpesquisa.
1
Interessante notar, como salienta Mancuso (1980, p.10) que neste mesmo ano do encontro de Chicago, reunia-se em Würzberg, na Alemanha, o congresso da Deutsche Verein für öffentliche Gesundheitpflege, (Congresso da Associação Alemã para a Higiene e Saúde
Pública), cujos votos conclusivos, redigidos pelo eminente urbanista alemão Reinhard Baumeister e por Franz Adickes, propõem também idêntica medida de zoning para as cidades alemãs.
2
Apesar de grande parte da historiografia apontar a White City como o início do movimento City Beautiful, Wilson não concorda plenamente com essa associação direta. Para ele, a exposição contribuiu indiretamente, pois o movimento efetivamente surgiria só cinco anos mais tarde.
3
KRUECKBERG, Donald. An Introduction to the Planning History in the United States. New Jersey, Rutgers University, 1985, p.40.
4
WILSON, William H. The City Beautiful Movement. Baltimore, Johns Hopkins, 1994, p. 78.
5
TUNNARD, Christopher. The Modern American City. New York, Van Nostrand Reinhold Co.,1968. Apud WILSON, W. 1994, p.63.
6
WILSON, William. Op. Cit., p.1-2.
7
No original: “Make no little plans, they have no magic to stir men’s blood” (citado em BOLOTIN & LAING, 2002, p.5).
8
BOLOTIN, Norman & LAING, Christine. The World’s Columbian Exposition. The Chicago World’s Fair of 1893. Illinois, Illinois University Press, 2002, p. 122.
9
Joseph Stübben (1845-1936) Desenvolve longa e extensa atividade profissional. Como arquiteto e urbanista, trabalha nas cidades de Berlim (1864-1870), Aachen (1876-1881), Colônia (1881) e Posen (1904-1920), elaborando também inúmeros planos de extensão e remodelação para cerca de 80 cidades da Alemanha e Europa.
Seu projeto mais importante é o plano de extensão para Colônia, na Alemanha.
Obtém o 1º prêmio no concurso para o Plano da Grande Viena em 1892. Desempenha papel fundamental nos Congressos Internacionais de Urbanismo, sobretudo nos de Bruxelas (1898), Londres (1906 e 1910), e Gand (1913). Redige inúmeros artigos nos periódicos mais importantes do período: Der Städtebau, Deutsche Bauzeitung e Zeitschrift für Bauwesen.. Sua intensa produção intelectual, foi identificada por seu principal biógrafo, Oliver Karnau, contabilizando cerca de 850 textos.
10
Charles Mulford Robinson (1869-1917), formado em artes pela University of Rochester. Produziu, em 1893 The Fair of Spectacle, uma descrição ilustrada sobre a Exposição Colombiana. Escreveu regularmente para diversos importantes periódicos americanos sobre estética e questões urbanas. Seus principais livros, publicados a partir de 1901 foram: The Improvement of Towns and Cities, Modern Civic Art, The Width and Arrangement of Streets,, este ultimo republicado tempos depois com o título de City Planning, With Special Reference to the Planning of Streets and Lots.. Desde 1913 foi professor de Civic Design na University of Illinois, sendo responsável por uma das primeiras cadeiras de urbanismo ministradas em universidades americanas ( a outra cadeira seria a do curso de Harvard, criada em 1911).(vide NOLEN, John, City Planning, New York, D. Appleton, 1916 e SCOTT, Mel, American City Planning since 1890. Los Angeles, University of California, 1969. p. 101)
11
Trata-se do livro Der Stätdebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen. Wien, Karl Graeser, 1889.
12
Trata-se do texto The cleaning and sewage of the cities, New York, Engineering News Publishing, 1891. Era uma tradução realizada por J. Goodell da segunda parte do famoso manual de Baumeister de 1876, parte esta intitulada Städtische Strassenwesen und Städtereinigung, publicado em Berlim um ano antes.
13
COLLINS, Chrisitiane; COLLINS, George. Camillo Sitte and the birth of modern city planning. New York, Rizzoli, 1986, p.101.
14
Ver REPS, John W. The Making of Urban America. A history of city planning in the United States. Princeton, Princeton University Press, 1965 . A versão publicada no volume XXIX da Transactions... foi traduzida para o inglês por H.W. Searles, membro da Associação americana. Foi também publicado no original alemão (Präktische und äesthetische Gründsatze für die Anlage Von Städten. Aufsätze für den Internationales Ingenieur-Kongress in Chikago. Zeitschrift des Óstrreischhischen Ingenieur-und Architekten-Vereins. 45, 1893, N.32, p. 441-447).
E por fim, foi traduzida para o francês por Charles Buls, então burgomestre de Bruxelas , com o título de La Construction des Villes, Brussels, Lyon-Claesc,1895.
15
KARNAU, Oliver. Hermann Joseph Stübben. Städtebau 1876-1930. Wiesbaden, Vieweg, 1997, p. 47 e 460.
16
Trata-se do conhecido manual de urbanismo do urbanista alemão Reinhard Baumeiser, considerado um dos primeiros tratados do urbanismo moderno, e intitulado Stadt-Erweiterungen in technischer, baupolizeilicher und withschaftlicher Beziehung, publicado em Berlim em 1876, por Ernst & Korn Verlag.
17
KARNAU, Oliver. Op. Cit., p. 172.
18
TRANSACTIONS of the American Society of Civil Engineers. New York, American Society of Civil Engineers, 1893, V. XXIX-XXX, p.734.
19
Hermann Eduard Maertens (1823-1898), tornou-se notoriamente conhecido após publicar seus estudos, de base empírica, sobre a fisiologia óptica, baseando-se em pesquisas anteriores realizadas por Helmholtz, que afirmava que as funções da visão poderiam ser expressas por formulações matemáticas. Maertens aplicou esses princípios à compreensão da escala da obra artística e da contemplação de monumentos e obras arquitetônicas. Suas formulações eram utilizadas por autoridades em estética urbana como Charles Buls e Albert Brinckmann. (ver a esse respeito COLLINS,1986, p.350).
20
A preocupação com o correto distanciamento de um monumento em relação ao observador era um questão antiga, que havia exigido dedicação de muitos arquitetos como Alberti e Christopher Wren. Maertens, que era um estatístico e um esteta, divulgou essas regras a partir de estudos empíricos, com o objetivo de auxiliar os arquitetos no momento do projeto, quando se define a altura de uma construção ou monumento em relação ao espaço de seu entorno. COLLINS (1986, p.48-49) apresenta um bom resumo de suas recomendações: 1- para apreciar os detalhes de uma construção ou monumento, o observador deve poder contemplá-la a uma distancia igual á altura do monumento, a partir da cota de seu olho (ou um ângulo de 45 graus); 2 – para bem apreciar a massa do monumento em toda a sua inteireza, essa distancia deve ser o dobro (ou um ângulo de 27 graus) 3 – para apreciar o conjunto, a distancia deve ser o triplo (ou 18 graus) e 4 – para uma visão panorâmica, contemplando toda a silhueta, a distancia deve ser o quádruplo ou o quíntuplo. (vide ilustração). É interessante também notar que no Brasil, a única referencia a Maertens virá de Victor Freire, quando discute o posicionamento dos elementos constituintes do Centro Cívico, a ser projetado para a Praça da Sé em São Paulo, em 1911 (PREFEITURA do Município de São Paulo, Relatório do Prefeito Raymundo Duprat apresentado ã Câmara Municipal – ano de 1911. São Paulo, Casa Vanorden, 1912, p. 19).
21
SPANN, Edward K. The greatest grid: the New York Plano f 1811. In: SCHAEFFER, Daniel (org.). Two centuries of american planning. Baltimore, Johns Hopkins, 1988, pp.11-13.
bibliografia complementar
APPELBAUM, Stanley. The Chicago World’s Fair of 1893. A Photographic Record. New York, Dover, 1980.
BAUMEISTER, Reinhard. The cleaning and sewage of the cities. New York, Engineering News Publishing, 1891.
HINES, Thomas S. Burnham of Chicago. Architect and Planner. Chicago, University of Chicago Press, 1974.
MAERTENS. Hermann. Der optische Massstab oder die Theorie und Praxis des ästhetischen Sehens in der bildenen Kunst. Bonn, Cohen, 1877.
MANCUSO. Franco. Las experiencias del zoning. Barcelona, Gustavo Gili, 1980.
SITTE, Camillo. Der Stätdebau nach seinen künstlerischen Grundsätzen. Wien, Karl Graeser, 1889. (A construção de Cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo, Ática, 1992).
STÜBBEN, Joseph. Der Städtebau. (Entwerfen, Anlage und Einrichtung der Gebäude). Handbuch der Architektur. Darmstadt, Bergstrasser, 1890. (3 ed., Leipzig, Gebhardt, 1924).
STÜBBEN, Joseph. Practical and Aesthetic Principals for the laying out of cities. Trnasactions of the American Society of Civil Engineerings. XXIX, 1893, pp. 718-36 (radução francesa : La Construction des Villes. Règles pratiques et esthétiques à suivre pour l'élaboration des plans des Villes. Bruxelles, Lyon-Claesen. 1895. – trad. Charles Buls).
sobre o autor
José Geraldo Simões Junior é Arquiteto (FAUUSP,1983), Mestre em Administração Pública (FGV/SP, 1990) e Doutor em História Urbana (FAUUSP, 1995) com pós-doutorado pela Technische Universität Wien. Atualmente é Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador do CNPq.