Saneamento da cidade e do porto de Santos
A cidade de Santos teve um destaque no contexto da urbanização do estado de São Paulo da Primeira República. Não só porque estabeleceu uma relação umbilical com a Capital, com o seu porto, como pela posição territorial estratégica, com a implantação da infraestrutura ferroviária e sua ligação com todo o estado após o desenvolvimento da cultura cafeeira no oeste paulista. A instalação, sob concessão do Governo imperial, da São Paulo Railway Company em 1867, evidencia um posicionamento do Governo da União direcionando a ocupação da cultura cafeeira pelo oeste paulista, principalmente, após 1850, com a promulgação da Lei de Terras. O fato de Santos abrigar um porto, que, desde o último quartel de século XVIII (1), possuía intensas atividades de exportação de mercadorias, definiu a sua configuração como cidade, não voltada apenas para as funções comerciais locais, mas também para as funções administrativas das atividades exportadoras e de manutenção do porto em um contexto territorial brasileiro.
Ainda em 1886, preocupado com a intensificação das atividades portuárias de São Paulo, o Governo imperial publicou os editais para a concorrência das obras portuárias, vencida pelo grupo carioca Gaffrée, Guinle e Cia. Esbarrando nas péssimas condições sanitárias que a cidade apresentava, o grupo solicitou providências do Governo federal para o estabelecimento de medidas saneadoras, que já vinham sendo adotadas timidamente pela Intendência Municipal (2). É certo, porém, que o próprio Governo federal e a Companhia Docas acreditavam que as obras portuárias trariam um efeito saneador para a cidade. O Ministro da Agricultura, Francisco Glicério, publicou um Decreto, em 7 de novembro de 1890, autorizando à Companhia executar as obras do cais até o Paquetá, obrigando-a a fazer o serviço provisório necessário ao saneamento da parte do litoral compreendida naquele prolongamento. Mas, de fato, não seriam suficientes. Nem o Governo municipal, com limitações orçamentárias até para a contração de dívidas e nem a Companhia Docas, interessada apenas em colocar em funcionamento as suas novas instalações portuárias, conseguiriam alterar as estatísticas de óbitos por doenças infectocontagiosas nos primeiros anos da República (3).
Com a reforma administrativa executada nas secretarias estaduais em 1892, as questões portuárias e de saneamento de Santos mudaram de foco. É claro que, com a ampliação da autonomia estadual após a promulgação da Constituição de 1891, o Governo do estado ganharia atribuições estratégicas, traçadas sob uma perspectiva federalista. O caso de Santos tornava-se, então, uma prioridade nas intervenções do Governo, pautado pela situação das epidemias. A priorização não se atinha só à urbanização da cidade, mas, sobretudo, à sobrevivência das obras do porto, sem as quais, o café não teria o seu escoadouro. Com a criação, em 1892, da Comissão de Saneamento – que naquele ano, só cuidaria de São Paulo e Santos – e, em 1893, da Comissão Sanitária, que mandaria para Santos vários inspetores sanitários de modo a disciplinar os hábitos insalubres da população local, principalmente em relação às moradias e às atividades comerciais, o estado passava a atuar mais incisivamente nas questões sanitárias. Neste momento, no entanto, as ações estaduais não iam além dessas medidas policialescas e da investigação das causas das epidemias na cidade (4).
Mesmo com estratégias expansionistas definidas, o município também ficaria limitado a desenvolver sua atuação relativa à urbanização. Diante das intervenções estaduais planejadas, e, principalmente, a partir das sobreposições políticas, as possibilidades de expansão urbana ficariam restritas a soluções técnicas que estavam fora do alcance do município, permitindo-lhe no máximo, desenvolver ações regulatórias, alargamento de vias, demolições e modernização da cidade existente. A implantação de novos loteamentos, como a Vila Nova e a Vila Mathias (5), indicavam uma expansão do centro à orla, sob condições insalubres, limitadoras de um desenvolvimento urbano à altura da Capital. O discurso de posse do Presidente do Estado, Bernardino de Campos, enfatizando o problema das epidemias em Santos deslocava o olhar da opinião pública para um problema que não seria resolvido tão cedo, sob a alegação de falta de recursos (6). Mas prioritárias, as ações saneadoras foram logo indicadas.
As atividades da Comissão de Saneamento de Santos iniciaram-se com medidas pouco radicais, como limpeza das ruas e valas, aterros em pequenos trechos, remoção de lixo e incineração, etc. todas comandadas pelo engenheiro João Pereira Ferraz, Chefe da Comissão. Nem os insuficientes serviços de abastecimento de água prestados pela City of Santos Improvements, nem o defeituoso sistema de esgotos mantido pela Companhia de Melhoramentos de Santos(7) foram denunciados neste momento pela Comissão (8). De fato, a Secretaria não pretendia realizar nenhuma ação sem antes examinar as causas das graves epidemias e identificar as condicionantes para o saneamento do porto. Questão discutida não somente no âmbito da Secretaria da Agricultura, mas que representava uma estratégia para todo o Governo, o saneamento de Santos (ou do porto) tornou-se a pedra fundamental das políticas desenvolvidas pelo mesmo (9).
Bernardino de Campos, então Presidente do Estado de São Paulo em 1892, solicitou ao Secretário do Interior, Vicente de Carvalho que fizesse um contato com o engenheiro Estevan Antonio Fuertes, diretor e professor, desde 1873, da Escola de Engenharia Civil da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos (10), convidando-o a colaborar com a melhoria do estado sanitário de Santos. A carta, encaminhada no dia 16 de março de 1892, não fazia qualquer menção à elaboração de um plano sanitário, mas solicitava ao engenheiro a sua contribuição para destruir as más condições higiênicas da cidade e do porto de Santos. Tateando em assunto pouco conhecido e estudado no Brasil, como era o caso da engenharia sanitária, é possível que o governador não soubesse exatamente o que contratar, mas é certo, porém, que tinha as referências para aquela contratação. A carta iniciava-se ressaltando ao professor a importância do porto de Santos, “o segundo da República, pela importância do seu comércio de navegação”. O porto recebia o destaque pelas numerosas linhas férreas que o ligavam com as zonas mais ricas do estado e com os estados vizinhos, além das 20 linhas regulares de navegação transatlântica para a América do Norte e Europa e assim concluía:
“A sua exportação atual de café sobe a mais de 250.000.000 de quilos anualmente, devendo ser de 400.000.000 dentro de 3 anos, e duplicará sem dúvida em breve prazo, pois assim o garante a corrente a imigração estabelecida para o nosso estado, onde, só no último ano, 1891, entraram mais de 140.000 imigrantes.” (11)
A descrição sobre a importância do porto foi seguida do terrível flagelo da febre amarela que o ameaçava. Em outras palavras, o porto tinha contra si tal doença, devastando cruelmente as tripulações dos navios, desenvolvendo-se com caráter epidêmico entre a população da cidade e penetrando em cidades do interior do estado. Estes foram os termos em que a febre amarela foi apresentada ao professor porto-riquenho, tendo o porto como preocupação central. Convicto da competência daquele professor, o Secretário ofereceu-lhe 500 dólares para estudar o caso e desenvolver o trabalho. De certa forma, como se percebe, não era exatamente a população que estava no foco daquela contratação, mas a sobrevivência do segundo maior porto brasileiro. A execução de obras saneadoras no porto de New Orleans já era conhecida e foi lembrada pelo Secretário, indicando aquela experiência bem sucedida como a grande referência para os trabalhos que poderiam ser desenvolvidosem Santos. Mas a escolha ia além. Tratava-se de uma opção claramente inclinada pelo “impulso da simpatia natural” aos profissionais norte-americanos, explicitada nas palavras de Vicente de Carvalho:
“No caso contrário, isto é, se não poderdes aceitar este convite, o Governo pede-vos que, igualmente, por telegrama, indiqueis para esse fim um vosso compatriota competente, informando-nos das condições em que aceita a incumbência.(...).
Recorrendo a preferência à capacidade de um profissional americano para dirigir esses trabalhos, atendemos não só a um impulso de simpatia natural, como pretendemos tirar partido da experiência colhida pelos profissionais desse país, na execução de obras semelhantes, qual, por exemplo, o saneamento de Nova Orleans.” (12)
A indicação de Fuertes, também explicitada na carta, partiu do geólogo e Chefe da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, Orville Derby. Aceito o convite para realizar o trabalho, Fuertes veio a São Paulo em junho de 1892, permanecendo até outubro, quando fez duas visitas a Santos e encaminhou uma série de recomendações antes de elaborar o plano de saneamento que entregou ao Governo em 1895. Nestas recomendações, a questão dos esgotos já aparecia com veemência, desviando a preocupação do Governo antes centrada no saneamento do porto para os graves problemas dos serviços de esgotos da cidade. Exigir da empresa contratada o cumprimento de cláusulas estabelecidas no contrato de 1889 para os serviços de esgoto, compeli-la a assentar vinte flushing tanks, fazer a limpeza das valas de águas pluviais, foram algumas destas recomendações. De fato, o engenheiro apontava os defeitos do sistema de esgotamento sanitário e a falta de um sistema de drenagem das águas pluviais, questões que apareceriam com destaque em seu plano, concluído em 1895. Mas este continha, efetivamente, mais do que recomendações, ao reunir uma série de propostas que ultrapassavam o simples desenho de redes infraestruturais.
Estevan Fuertes dirigia suas preocupações para a implementação de ações integradas, ressaltando que medidas sanitárias, construções e aparelhamentos deveriam funcionar sistematicamente e em perfeito estado de limpeza e manutenção. Ao introduzir o seu plano ao Governo, dizia que os vários elementos das necessidades sanitárias, em adição às de polícia do porto propriamente ditas eram a regularização dos serviços de quarentena, domicílios, abastecimento de água, esgotos, drenagem, remoção de lixo e irrigação das ruas, todos relacionados entre si:
“Todos estes melhoramentos se relacionam, se afetam reciprocamente em alguns casos; se de fato, for algum desprezado, certamente que daí há de redundar desequilíbrio para outras medidas de saneamento; em geral um descuido qualquer neste assunto será em prejuízo da saúde pública.” (13)
A viabilidade de constituir uma cidade, para ele, estava baseada na articulação de elementos que adotados, permitiriam o desenvolvimento urbano, a construção de novas edificações e o adensamento populacional. Estava, portanto, na infraestrutura sanitária, a base inicial para determinar o sucesso de uma cidade moderna, deixando para depois assuntos que não eram da sua competência profissional, como a “arborização e o ajardinamento dos terrenos”. Obedecendo, por outro lado, a determinações do Governo para estabelecer medidas de caráter saneador, não lhe cabia ir além de um plano sanitário. Fuertes o desenhou, porém, sob uma perspectiva mais ampla do que a simples construção de redes. E neste contexto ele introduziu questões como o crescimento urbano ou a valorização imobiliária decorrente de melhoramentos implantados pelo Poder Público. A relação entre infraestrutura sanitária e expansão urbana evidencia um posicionamento que seria inerente às preocupações do planejamento urbano e que somente a partir de 1905 seriam incorporadas, na prática, por Saturnino de Brito (14) no âmbito de demandas específicas. Embora o estímulo à expansão urbana não estivesse na agenda do Governo naquele momento, foi tema do engenheiro em seu discurso:
“Pode-se fazer recomendação semelhante com referência aos pântanos atravessados pela estrada de ferro, ao pé das montanhas. Com a cidade limpa e administração sanitária conveniente, estes pântanos não afetam prejudicialmente a saúde pública. Também por muitos anos ainda a população não se estenderá na direção das montanhas, visto que todos os promotores do crescimento da cidade tendem necessariamente para mar. Contudo, quando chegar a ocasião de tratar deste assunto, o único remédio será uma canalização que cortará a área plana em subdivisões cujos diversos canais levarão as águas para o mar. Será então fácil mudar a vegetação, plantando capim e outras plantas que forem desejadas. Parece, porém, que atualmente não há necessidade de entrar nesta questão.” (15)
Se o tema da expansão urbana ainda estava fora das perspectivas do Governo, as soluções para o saneamento da cidade existente estavam no horizonte imediato de seus esforços. No limiar das práticas governamentais de estabelecer medidas objetivas de caráter saneador, o engenheiro introduziu ideias e conhecimentos que faziam parte dos estudos e pesquisas nas suas atividades de docência na Universidade de Cornell e que já incluíam os primeiros embriões do que posteriormente seria chamado de “comprehensive planning” no campo disciplinar do urbanismo norte-americano.
O plano de saneamento de Estevan Fuertes de 1895
O plano Fuertes não só atendeu às expectativas, como apresentou ao Governo do estado de São Paulo uma dimensão mais ampla do problema e o caráter sistêmico das intervenções, vinculadas a uma ideia de expansão, de projeções futuras para um disciplinado destino urbano, bem de acordo aos mais avançados preceitos da engenharia sanitária e do planejamento urbano. É como podem ser interpretados os seus dois volumes, publicados em 1895, um contendo o relatório intitulado “Saneamento da Cidade e Porto de Santos por E. A. Fuertes, engenheiro contratado pelo Governo de S. Paulo e Rudolph Hering e J. H. Fuertes, engenheiros consultores” e outro contendo um conjunto de plantas e desenhos, desde os levantamentos topográficos aos detalhes construtivos das redes propostas.
Primeiro, suas proposições basearam-se em um sistemático levantamento de dados e informações, no âmbito da investigação científica, objetiva e direcionada à concepção dos sistemas propostos. Restrito à coleta de informações físicas, tais como a meteorologia, a pluviometria ou a geologia, Fuertes procurou desenvolver análises baseadas nos cruzamentos destas informações como, por exemplo, a comparação entre a formação granítica das rochas das encostas dos morros e a rapidez com que as águas, em variadas situações pluviométricas, chegavam às ruas da cidade. Segundo, suas propostas não ficaram restritas à região urbanizada, mas consideraram escalas mais abrangentes. Minuciosos levantamentos topográficos foram executados, da faixa litorânea do estado de São Paulo; de toda a região no entorno de Santos; de toda a ilha de Santos e São Vicente; do distrito da barra e da área já urbanizada, indicando, nestes dois últimos, não só a locação das ruas, como também o cadastro de lotes e construções.
A precisão destes levantamentos revela o conhecimento da prática adotada dos chamados “geodetic surveys” norte-americanos (16), que utilizavam metodologia própria, desenvolvida nos Estados Unidos, como destacou Derby quando assumiu em1886 a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (17). Estas variadas abrangências evidenciam a preocupação em dar soluções que se abriam para diversas escalas espaciais: de âmbito territorial, como a localização de uma Estação de Quarentena na Ilha Bela, ou de âmbito regional, como a locação dos pontos de captação de água e o traçado da adução até a cidade e, até mesmo, de âmbito local, ao tratar da locação dos reservatórios de água, estações elevatórias dos esgotos, habitações, linhas de bonde e calçamentos. Terceiro, a abrangência das temáticas combinadas demonstram que, de uma trama de redes sanitárias ao desenho de novas unidades habitacionais, a construção de uma cidade higiênica dependia da implantação de vários elementos integrados sistemicamente. Neste sentido, apreende-se do plano de Fuertes que suas propostas, ainda que refutassem qualquer posicionamento a respeito de uma nova trama viária ou sistema de transportes ou mesmo um sistema de parques e áreas verdes, considerava cada um dos elementos sanitários como partes integrantes de um todo. Assim, a solução apresentada incluía um desenho de redes articuladas.
É possível imaginar o que significou o plano de Fuertes para o Governo, naquele momento, e também os desdobramentos, nos anos seguintes ao seu encaminhamento. Independente de seu caráter sistêmico, o plano trazia soluções práticas que, se implantadas imediatamente, poderiam melhorar as condições sanitárias com a urgência esperada. Mas não era só: possibilidades reais de transformação foram indicadas, orientando, em certa medida, todas as ideias e intervenções que foram aplicadas em Santos até 1927, quando foi inaugurado o último canal de drenagem do sistema projetado por Saturnino de Brito em seu plano. Neste sentido, as propostas para os sistemas de água, esgoto e drenagem orientaram todo o debate acerca da urbanização santista até aquele ano. Diante destes aspectos principais, delineia-se algumas características do plano Fuertes que vale a pena mencionar:
1 - Pragmatismo das soluções. A exemplo da atuação do governo estadual paulista, que se utilizou de todos os meios disponíveis e conhecidos para atacar as epidemias das doenças infectocontagiosas, com a criação de instituições científicas modernas, Fuertes buscou compreender a fundo as experimentações científicas, sempre atualizado com relação aos procedimentos mais eficazes para cada tipo de doença conhecida. O engenheiro desmistificava a idéia de que havia uma relação entre condições naturais e algumas doenças, refutando, de certa forma, aspectos da Teoria dos Meios (18). Inserido no debate científico, Fuertes já introduzia o seu conhecimento sobre a microbiologia e a presença da bactéria como elemento infectante e para isso, desenvolvia um conjunto de ações que considerava mais adequadas. Fuertes se utilizou de estatísticas para observar os efeitos do saneamento sobre os vários tipos de enfermidades e demonstrava quantas vidas haviam sido salvas com a sua implantação. Para cada tipo de moléstia, sugeria um melhor meio profilático: febre tifóide: evitar a contaminação pelos esgotos; difteria e escarlatina: isolamento e desinfecção; varíola: vacinação.
2 - Medidas arrojadas e abrangentes associadas ao conhecimento do território. As ideias relativas ao isolamento e à quarentena levaram Fuertes a projetar uma Estação de Quarentena e um Desinfectórioem Ilha Bela, a quilômetros de distância de Santos, destino final dos imigrantes europeus. Seu pragmatismo levou-o a acreditar que os imigrantes e seus objetos já chegavam infectados e poderiam ser disseminadores de doenças pelo contágio. Neste sentido, era preciso deter as pessoas e isolá-las até que as bactérias fossem destruídas. A Estação de Quarentena é uma cidade de maquinários e substâncias químicas desinfectantes para debelar o mau que chegava incubado nos navios, pessoas e seus objetos.
3 - Conhecimento sobre a base física e a identificação do território. Fuertes tinha domínio do método survey norte-americano, desenvolvido e praticado por Orvile Derby na Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. No âmbito deste conhecimento, relacionava as questões de drenagem à geologia, clima e pluviometria. Ainda que tenha sido bastante minucioso em relação aos dados físicos, foi pouco abrangente quanto aos dados populacionais. Fuertes só se utilizou de dados populacionais para estabelecer parâmetros de projeto (dimensionamento das redes). Além disso, trazia uma visão negativa dos imigrantes, que chegavam sem os devidos hábitos de higiene.
4 - O desenho da higiene: as habitações. Foi a principal aproximação de Fuertes com os inspetores sanitários da Comissão Sanitária. Enquanto estes tinham uma atitude intervencionista, às vezes retirando os moradores de seus domicílios e até demolindo as habitações insalubres, Fuertes pensou na formulação de regulamentos, sugerindo atitudes mais educativas e orientadoras. Criticava os quintais (focos de infecção) e propunha novos modelos de habitação, construída para privilegiar a entrada de luz e circulação do ar, além de estabelecer a relação entre a casa e o meio externo (nas conexões com as redes).
5 - Sistemas e fluxos e o desenho das redes de abastecimento de água, coleta de esgotos e drenagem de águas pluviais. Fuertes adotou um sistema completo e articulado. O desenho da infraestrutura concebido pelo engenheiro orientaria uma possível estruturação urbana, articulando sistema de redes com o sistema de circulação, ainda não concebido. Com as proposições de Fuertes concluído em 1894, Santos teria um plano completo para guiar a ampliação da distribuição de água e dos reservatórios, diferentemente da capital, que ainda estava longe de tê-lo.
O sistema de abastecimento de água definia, de início, a localização de novos mananciais, facilmente identificada pelo levantamento topográfico oferecido pelo engenheiro. Sem muitas dificuldades, Fuertes apresentou três possibilidades: o rio Cubatão, o rio Branco e as águas do vale por onde passava a estrada da SP Railway. O engenheiro constatou que o problema não estava na quantidade de água existente nos mananciais, mas nas falhas de distribuição no velho contrato com a Companhia de Melhoramentos de Santos. O sistema proposto consistia na complementação de mais um cano mestre além dos dois existentes, buscando água para além dos limites municipais, no rio Cubatão, o manancial escolhido. Havia duas preocupações presentes: uma com os detalhes do sistema, pensando a instalação de registros para o controle do consumo de água e a relação do uso das edificações com o consumo e outra em relação à abrangência da rede. Fuertes desenvolveu um traçado para a área central e outro para a área expandida. Pensar o sistema era importante para fazer a água circular, evitando extremos “mortos” e instalando reservatórios.
O sistema de esgotos estava traçado sobre três distritos: a “cidade velha”, a Vila Mathias e a parte sul da ilha. Estes distritos teriam suas canalizações convergindo para coletores que iam dar em um único coletor geral localizado na Vila Macuco que, chegando até o mar, lançaria os despejos em águas profundas na região do Outeirinhos. A determinação dos distritos seguiu não só a lógica do funcionamento da rede projetada, mas a densidade populacional existente em cada ponto da cidade. Curioso notar que os esgotos coletados na Barra funcionariam em contra-vertente, contando com um complexo bombeamento através do sistema shone. O sistema, que também foi utilizado por Saturnino de Brito, consistia na instalação de vários ejetores junto à rede coletora, elevando os esgotos até o ponto onde poderia funcionar por gravidade, já próximo da região de lançamento. A separação absoluta entre águas servidas e pluviais foi outra indicação do engenheiro, que considerou o ponto de vista econômico. Desde que as ruas fossem todas calçadas, os declives das superfícies nulos e a quantidade de chuva e drenagem grandes, era conveniente aliviar os esgotos da carga adicional da lama das ruas, assim como as exigências excessivas da água canalizada para lavagens.
O sistema de drenagem foi o principal avanço de Fuertes no estabelecimento de desenho de uma nova estrutura urbana para Santos, evidenciando a possibilidade da infraestrutura orientar a expansão urbana. Pela primeira vez, pensava-se uma solução para o enxugo da pantanosa região ainda desocupada da ilha, através de uma rede de drenagem tão profunda quanto possível, de forma a baixar ao máximo o lençol freático superficial. O sistema, baseado em um precioso levantamento topográfico, com a divisão da cidade em um certo número de distritos, correspondentes às áreas naturais de drenagem, apresentava a projeção de uma série de galerias, primeiro, para área urbanizada existente e, em seguida, para o distrito da Barra, para onde desenhou alguns drenos que, iniciando-se em pontos especificados pela cota altimétrica, seguiriam em linha reta, aumentando constantemente seu diâmetro de vazão até chegar ao mar ou a um dique que acompanhava parte da orla. Deste dique partiam três canais de descarga das águas pluviais, com vertedouros para realizar a limpeza dos drenos com água marinha. Embora fosse diferente do sistema projetado por Saturnino de Brito, a partir de 1905, o traçado dos drenos guarda muitas semelhanças com o traçado daquele engenheiro. E não só. A ideia de utilizar a água do mar para realizar a limpeza dos condutos através de adufas abertas mecanicamente demonstrava a semelhança de soluções das duas propostas quanto ao funcionamento dos mecanismos projetados.
Os sistemas de drenagem e esgotos eram, certamente, os pontos altos do projeto de Fuertes. Não só pela concepção de uma rede que articulava área urbanizada e área não urbanizada (arrabaldes e Barra), mas também pelo engenhoso sistema de maquinários que conferia à sua proposta uma atualização tecnológica quanto ao avanço da engenharia sanitária. Um exemplo é a combinação da estação de bombas elevatórias dos esgotos em Outeirinhos com a usina de incineração de lixo. O calor gerado pela combustão da incineração produziria vapor para mover as bombas e os compressores de ar.
A repercussão inicial do plano, logo após a sua entrega, foi sentida nos anos seguintes, ainda que o Governo não tivesse os recursos para executar as propostas como um todo. Constituindo um sistema, e devendo por isso, ser implantado integralmente, conforme já havia alertado Fuertes, o plano passou a ser discutido e interpretado como uma solução para o precário esgotamento sanitário da cidade (19). Mesmo com tais esforços, somente em 1905 a cidade de Santos começaria a mudar as suas feições com a chegada do engenheiro Saturnino de Brito para chefiar a Comissão de Saneamento do estado. Imbuído da responsabilidade de efetivar um conjunto de intervenções saneadoras, Saturnino de Brito foi o principal responsável, não só pela efetivação das obras necessárias ao enfrentamento das epidemias de febre amarela, como também pelas transformações da paisagem urbana que ainda hoje permanece como parte integrante da identidade de seus moradores.
4 – Considerações finais
Passados quinze anos após a entrega do Plano Fuertes ao governo do estado, o saneamento de Santos ainda se mantinha como um dos principais assuntos das discussões políticas que uniam os governos municipal e estadual, interessados em resolver, de uma vez por todas, os graves problemas de insalubridade que ainda grassavam vítimas naquela cidade. Se é certo que aquele plano não se efetivou por completo, serviu de base para estudos posteriores, inclusive para os de Saturnino de Brito que o citou timidamente em um dos seus relatórios para a Comissão de Saneamento do estado quando a chefiava.
Pouco se pode dizer da aplicação deste plano sanitário, considerando principalmente a vaga interpretação que lhe foi emprestada pelos vários chefes da Comissão de Saneamento nos anos seguintes. Há que se notar, contudo, a importância de Fuertes para a formação de um grupo de estudantes brasileiros aspirantes bachareis em engenharia civil que estudaram em Cornell neste período (20) e que tornaram a sua vinda para Santos um episódio pontual perto da longa proximidade entre Brasil e Estados Unidos neste contexto. Fuertes fez parte desta história e coloca em outro patamar as discussões acerca das ressonâncias e transferências na formação do urbanismo e planejamento urbano no Brasil.
O seu plano seguia em grande medida o conjunto de conteúdos que expunha nas suas aulas de engenharia municipal (21), conteúdos que teriam chegado aqui também pelos engenheiros brasileiros que já tinham sido seus alunos naqueles anos finais do Império brasileiro. Se tais ensinamentos ressoaram por aqui através da atuação destes engenheiros no Brasil, pouco se sabe. Pesquisar a atuação de cada um deles é, portanto, uma tarefa que poderá revelar com mais consistência os elos que já ligavam os interesses de parte da burguesia paulista aos modos de pensar norte-americanos.
notas
NE
Este artigo é parte resultante da Dissertação de Mestrado “Os planos da cidade: as políticas de intervenção urbana em Santos – de Estevan A. Fuertes a Satrurnino de Brito (1892 – 1910) orientado pela Prof. Dra. Maria Lucia Caira Gitahy.
1
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700 – 1836). São Paulo, HUCITEC, 2000.
2
HONORATO, Cezar. O polvo e o porto. A Cia. Docas de Santos (1888-1914). São Paulo: Hucitec – Prefeitura Municipal de Santos, 1996. P.107.
3
Entre 1889 e 1914, a cidade de Santos assistiu a quase 50 mil óbitos por doenças infecto-contagiosas, entre os anos de 1889 e 1914, conforme ÁLVARO, Guilherme. A campanha sanitária de Santos. Suas causas e efeitos. São Paulo, Casa Duprat, 1919.
4
GAMBETA. Wilson. Soldados da saúde: a formação dos serviços de saúde pública em São Paulo (1889 – 1918). Dissertação de Mestrado, São Paulo, FFLCH USP, 1988.
5
LANNA, Ana Lucia Duarte. Uma cidade na transição. Santos: 1870 – 1913. São Paulo / Santos, Prefeitura Municipal de Santos e HUCITEC, 1996. P. 98 a 103.
6
SÃO PAULO (Estado). Relatório apresentado ao Dr. Vice Presidente do Estado de São Paulo pelo Dr. Alfredo Maia. Secretário dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. São Paulo, Typ. De Vanorden & Comp., 1892. P. 23. Fonte do Arquivo do estado de São Paulo
7
Estas duas companhias mantinham contratos com a Câmara Municipal de Santos para realizarem os serviços de abastecimento de água e de coleta de esgotos, respectivamente. Sobre isso ver LANNA, Op. Cit., 95. e SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos. São Vicente, Caudex, 1986.
8
Embora a Câmara Municipal já registrasse em seus relatórios anuais a grave falta de abastecimento de água que a cidade sofria com os serviços prestados pela Companhia. SANTOS (Município). Câmara Municipal e Intendência. Relatório apresentado ao Conselho de Intendência Municipal da cidade de Santos (Estado de São Paulo) em sessão de 19 de fevereiro de 1891 pelo seu ex-presidente Dr. José Xavier Carvalho de Mendonça. Santos, Typ. A Vapor do Diário de Santos, 1891. P.61. Fonte do Arquivo do estado de São Paulo
9
SÃO PAULO (Estado). Relatório apresentado ao cidadão Dr. Presidente do Estado pelo Dr. Jorge Tibiriçá – Secretário dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas sobre os serviços a cargo do respectivo Secretário no ano de 1893. São Paulo, Typ. Paulista e Vapor Vanorden, 1894. Fonte do Arquivo do estado de São Paulo.
10
FUERTES, Estevan Antonio. Estevan A. Fuertes papers, 1900-1903 (2 cubic ft.). Correspondence, invoices, blueprints, drawings and plans for the Fuertes Observatory on the Cornell University campus. (Archives 16-4-2816). Fonte da Kroch Library Rare & Manuscripts – Cornell University.
11
SÃO PAULO (Estado). Relatório apresentado ao Senhor Doutor Vice Presidente do Estado de São Paulo pelo Secretário dos Negócios do Interior, Vicente de Carvalho a 7 de abril de 1892. São Paulo, Typ. A Vapor de Vanorden & C., 1892. P. 16. Fonte da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
12
Idem. Ibidem. Grifo nosso
13
SÃO PAULO (Estado). COMISSÃO DE SANEAMENTO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Saneamento da cidade e do porto de Santos por E. A. Fuertes – engenheiro contratado pelo Governo de S. Paulo e Rudolph Hering e J. H. Fuertes, engenheiros consultores. São Paulo, Typ. Do Diário Oficial, 1895. P. 3. Fonte da Escola Politécnica da USP.
14
O engenheiro Saturnino de Brito passou a chefiar a Comissão de Saneamento do estado de São Paulo em 1905 e apartir deste ano passou a estudar e elaborar medidas de caráter sanitário para a cidade de Santos que culminaria em um abrangente plano urbanístico concluído em 1910. Sobre isso ver ANDRADE, Carlos Roberto M. de. A peste e o plano: o urbanismo sanitarista do engenheiro Saturnino de Brito. Dissertação de Mestrado, São Paulo, FAU USP, 1992.
15
SÃO PAULO (Estado), 1892. Op. Cit., P. 6.
16
A palavra “survey” que, traduzida ao português refere-se meramente a um levantamento ou pesquisa de campo possui uma definição específica no campo da geologia e engenharia norte-americanas. Combinada ao tipo de levantamento que se adotava para cada caso, a palavra “survey” poderia indicar um tipo de levantamento geológico, ou “geologic survey” até, determinados tipos de levantamentos topográficos em cidades, como o “city surveying”. FIGUERÔA, Silvia Fernandes de Mendonça. Modernos Bandeirantes: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo e a exploração científica do território paulista (1886 – 1931). São Paulo, 1987. Dissertação de Mestrado, FFLCH USP, 1987.
17
SÃO PAULO (Província). Boletim da Comissão Geográfica e Geológica da Província de São Paulo – prospecto histórico. São Paulo, 1889. P. 13 a 14. (in DERBY, Orville. Orville Derby miscelany 1874 – 1951. Fonte: Kroch Library Rare & Manuscripts – Cornell University).
18
A Teoria dos Meios, formulada pela primeira vez por Hipócrates e seus discípulos nos séculos V e IV a.C. e reformulada por Vitruvio chegou até a era moderna, proferindo a ideia, através de Cabanis (1757-1808)de que as condições do meio atuam tanto sobre o físico, quanto sobre a moral, só podendo ser entendidas de forma conjugada. Esta ideia encontraria forte abrigo nos positivistas do início do século XX. ANDRADE, op. Cit., P. 21 e 22.
19
SÃO PAULO (Estado).Relatório sobre o serviço de esgotos de Santos apresentado ao Dr. Theodoro Dias de Carvalho Junior, Secretário dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas pelo Dr. Ignacio Wallace da Gama Cochrane, chefe da Comissão de Saneamento . São Paulo, Oscar Monteiro, 1896.
20
FREITAS, Marcus Vinicius de. Hartt – expedições pelo Brasil Imperial, 1865 – 1878. São Paulo, Metalivros, 2001.
21
FUERTES, Estevan Antonio, Op. Cit.
sobre o autor
Sidney Piochi Bernardini é Arquiteto e Urbanista, graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Santos. Mestre em Estruturas Ambientais e Urbanas pela FAU USP e Doutor em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU USP. Membro do Grupo de Pesquisa “História do Trabalho e da Técnica como Fundamentos Sociais da Arquitetura e Urbanismo (HTTFSAU)” coordenado pela Prof. Maria Lucia Caira Gitahy, do Departamento de História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo da FAU USP. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Paulista (UNIP).