Introdução
A ocupação urbana das faixas contíguas às praias tem sido um dos principais componentes da expansão física das cidades litorâneas brasileiras. Ela gerou vários bairros de alto padrão que estão entre os melhores dessas cidades, como Copacabana e Ipanema, Boa Viagem (Recife) e Pituba (Salvador). Tema dos mais interessantes para os estudiosos da história urbana, seu conhecimento é essencial para a compreensão da expansão dessas cidades.
Este artigo propõe-se a ampliar esse conhecimento mostrando como se processou a urbanização de um importante setor da planície costeira da capital paraibana, o mais extenso e o de ocupação mais recente: o Bessa. Enquanto em 1930 uma linha de casas de veraneio se estendia por quase 2 km ao longo da praia da Tambaú, a urbanização do Bessa só se iniciou duas décadas depois e ainda continua em andamento. Por ser mais recente, ela distingue-se da ocupação urbana do resto da planície, o que lhe dá um interesse particular.
Diferencia este artigo dos trabalhos de outros autores que trataram o Bessa (1) a sua abordagem: ele mostra como o setor foi sendo parcelado para fins urbanos e como as edificações foram se implantando nele, o que não foi feito por nenhum deles.
O Bessa situa-se ao norte da praia de Tambaú, a uns 2,5 km da Av. Epitácio Pessoa, a principal ligação entre o centro expandido da cidade e o litoral. Com quase 640 ha (seis vezes a área de Ipanema), mede 4,6 km de norte a sul e sua largura na direção leste-oeste varia entre 0,7 e 2 km. Quase plano, ele tem baixa altitude, suas cotas sendo inferiores a 7 m em relação ao mar.
Localizado entre o rio e o oceano, ele destaca-se pela beleza de suas praias e do seu litoral recortado, composto de duas meias-enseadas separadas por um pontal. Essa qualidade paisagística foi razão maior da fase inicial de sua urbanização.
Uma planta de 1949 mostra o Bessa ainda em estado rural, parcialmente coberto por uma vegetação arbórea e tangenciado pela estrada que levava ao porto de Cabedelo (Fig. 1). Hoje ele é uma área urbanizada, cujos bairros (Jardim Oceania, Aeroclube e Bessa) reúnem mais de 3.500 edificações, aí incluídos muitos condomínios verticais e variados comércios e serviços.
Mostrar como essa mudança ocorreu, desde 1950 até recentemente, é o objetivo deste artigo. Já seus objetivos específicos são (a) explicar como se processou o parcelamento do solo para fins urbanos e (b) traçar um histórico do processo de ocupação edilícia do setor.
Segundo Panerai (2), os tecidos urbanos são o somatório de três componentes: a rede de vias, os parcelamentos fundiários e as edificações. Aos dois primeiros refere-se o primeiro desses objetivos específicos, e ao terceiro refere-se o segundo objetivo.
O principal referencial teórico para este artigo foi o livro Análise urbana, de Philippe Panerai, que fez uma análise aprofundada dos elementos e processos envolvidos no fenômeno da expansão urbana e propôs alguns conceitos, como crescimento contínuo e descontínuo, linha de crescimento, polo de crescimento e barreira, que foram aqui utilizados (3).
O método aqui adotado para reconstituir o desenrolar da ocupação do Bessa foi comparar os diferentes estados por ela atingidos em quatro momentos: 1976, 1989, 1998 e 2008/2009. Esses momentos foram escolhidos por existirem fotografias aéreas neles obtidas que retratam o estado da urbanização do setor em cada um deles. Sem essas imagens teria sido impossível realizar o tipo de estudo que é objeto deste artigo.
A análise do parcelamento do solo baseou-se em pesquisa efetuada nos arquivos da Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), na cartografia existente, em entrevista com um dos autores de um dos loteamentos do setor e na análise morfológica do traçado de cada um desses loteamentos.
Já o estudo da ocupação edilícia foi feito por meio da confrontação de quatro plantas temáticas de nossa lavra que sintetizam esquematicamente as informações relevantes fornecidas pelas fotografias aéreas obtidas nos quatro momentos aludidos.
Dos primórdios da ocupação até 1976
A urbanização do Bessa iniciou-se com a criação, no início dos anos 1950, de um loteamento linear ao longo da praia, no extremo sul do setor. Denominado Oceania I, ele estendia-se por quase 1,7 km e compunha-se de uma fila de seis longas quadras quadrangulares cujos lados maiores acompanhavam a linha da costa. Ampliado em 1954, conforme projeto do engenheiro Luiz Carrilho Filho, ele cresceu cerca de 1 km para o norte e ganhou mais um fila de quadras, que foi colada à existente (Fig. 2). Mesmo com esse acréscimo, sua área equivalia a apenas um décimo da superfície do setor.
O segundo loteamento do Bessa foi o Jardim América, de projetista desconhecido e aprovado em 1953. Iniciativa de uma empresa imobiliária, ele se estendia por 108 ha, ou seja, 17% da área do setor, e situava-se no extremo norte deste, junto ao manguezal da antiga desembocadura do rio Jaguaribe (Fig. 2) Era na sua maior parte uma quadrícula ortogonal, à qual dava interesse uma estreita faixa central que lembrava certos eixos monumentais barrocos – como o que Otto Wagner propôs para Viena em 1911 (4); composta de pequenas quadras tal faixa concentrava as áreas verdes e os equipamentos comuns. Além dessa quadrícula, o traçado continha uma fila de quadras contíguas à praia que reproduzia a solução adotada no loteamento Oceania I. Segundo Ressa (5), esse traçado provavelmente teve por modelo o plano de Miami Beach, dos anos 1910, que também combinava uma trama ortogonal com duas vias paralelas que acompanhavam a linha da costa.
Só vinte anos depois é que um novo loteamento, também realizado por uma empresa imobiliária – o Jardim Bessamar, com 73 hectares –, surgiria no setor. Concebido por projetista desconhecido e lindeiro ao limite sul do Jardim América, ele deu continuidade ao traçado deste e elevou para quase 40% o percentual da área loteada no Bessa (Fig. 3).
A maioria das quadras desses três loteamentos tinha largura de 60 m e comprimentos diversos situados entre 130 e 180 m. O lote mais comum era o medindo 12m por 30m, mas perto da praia havia lotes maiores.
A princípio, a única ligação do Jardim América e do Jardim Bessamar com o resto da cidade era a estrada de Cabedelo (6), a partir da qual se chegava também ao Jardim Oceania I. Outro acesso a este era a via costeira que saía da praia de Tambaú no rumo norte. Depois que, nos anos 1980, uma ponte uniu o último loteamento com o Jardim Bessamar podia-se chegar a este e ao Jardim América através da Av. Campos Sales, a via principal do Jardim Oceania I.
Inicialmente esses loteamentos foram sendo ocupados lentamente por casas de praia, em razão da preferência que muitos veranistas davam a lotes situados nas praias menos distantes, isto é, Tambaú, Cabo Branco e Manaíra. Só depois de 1970 é que moradias permanentes tornaram-se mais comuns no Bessa.
A maioria das casas ocupavam as quadras contíguas à praia. No Jardim América, umas poucas edificações foram sendo erguidas aqui e ali, em algumas quadras internas.
A Fig. 4 mostra que em 1974 a ocupação se limitava a dois núcleos distintos, separados por um coqueiral e um maceió (7) – uma barreira na terminologia de Panerai (8). Ocupando de forma muito rarefeita as duas filas de quadras mais próximas do mar, o do norte (o Jardim América) constituía, segundo a mesma terminologia, um pólo de crescimento dentro de uma malha projetada. Linear e extenso, o núcleo do sul compunha-se de construções que margeavam a Av. Campos Sales, e que eram bem mais numerosas no lado leste desta; ele seguia aquele padrão de urbanização que Panerai denominou linha de crescimento ou aldeia-rua, a “primeira forma de ocupação urbana do território”, que “continua a existir em nossos dias na expansão dos subúrbios”, como ele assinalou (9).
Um retrato mais detalhado da ocupação é dado pelas ortofotocartas da PMJP de 1976 (publicadas em 1978), na escala de 1:2.000.
Para apresentar os dados sobre a ocupação da área que tais cartas contêm, construímos uma planta na qual as edificações existentes em 1976 foram representadas por pontos verdes (Fig. 5). Estes foram lançados numa versão modificada – de nossa lavra – da planta de 1992, elaborada pela PMJP.
Nossa planta revela que em 1976 existiam apenas 206 construções (aí não incluídos uma erguida numa praça e os casebres situados a oeste de um caminho paralelo à Av. Campos Sales), distribuídas em 169 quadras (aí não compreendidas as destinadas a áreas verdes), o que dá uma média de pouco mais de uma edificação por quadra. Somente 56 quadras (um terço do total) estavam ocupadas, a maioria delas (60%) estando situadas no núcleo do norte. Esses números atestam a rarefação da ocupação nesse primeiro momento. Excetuados os aludidos casebres (que foram removidos quando se lotearam as glebas onde eles se situavam), no núcleo do sul a grande maioria das construções flanqueava a referida avenida. No do norte, a ocupação era menos linear, formando dois aglomerados principais: um margeando a praia e o outro, situado no canto sudeste do Jardim Bessamar. Não havia ainda edifícios verticais no setor.
A ocupação entre 1976 e 1989
Após 1976, a ocupação do Bessa foi condicionada pelas normas do código municipal de urbanismo aprovado no último dia de 1975 (10).
A norma que causou maior impacto no desenho dos novos loteamentos foi a que proibia o cruzamento de ruas locais e exigia que elas se encontrassem em junção em T. Impedindo o uso das tradicionais quadrículas ortogonais, ela foi inspirada numa crítica feita por Camillo Sitte no seu célebre Der Städtebau nach künstlerischen Grundsätzen (11), onde ele evidenciou o perigo que os cruzamentos nelas existentes representavam para a circulação veicular.
Como observou Kostof (12), a junção em T não só reduzia os riscos de colisão de veículos como também realçava a vista frontal de um prédio nela situado com frente para a rua que nela terminava.
Importante era também a exigência de se reservar nos loteamentos pelo menos 10% de sua área para espaços verdes públicos e 5% para equipamentos comunitários. Ela teria fortes repercussões sobre o traçado dos loteamentos.
Ao contrário, a lei federal nº 6766 de 1979, que disciplinava o parcelamento do solo urbano, não teve influencia significativa sobre a morfologia dos loteamentos do Bessa posteriores a ela. Mas talvez por receio de que tal lei trouxesse restrições muito severas, vários proprietários lotearam suas glebas antes que ela entrasse em vigor.
Assim, na primeira metade de 1979, cinco loteamentos situados no Bessa foram aprovados pela PMJP, levando a que a maior parte do setor já estivesse loteada no final desse ano (Fig. 6).
O maior deles, o Jardim Oceania IV–1ª etapa, com quase 130 ha, dividia-se em três blocos, o mais amplo dos quais confinava com o Jardim Bessamar e o loteamento Oceania I.
O traçado desse bloco maior contrastava com os dos outros loteamentos do setor, pela sua forte irregularidade, decorrente da interdição dos cruzamentos viários e do desejo, dos seus projetistas (os arquitetos Aquino e Montenegro) de conciliá-lo com três canais existentes na gleba, cujas margens eles destinaram a áreas verdes. Essa irregularidade planejada permite que tal projeto seja incluído naquela categoria que Kostof denominou planned picturesque (13), que reúne traçados planejados de aparência intencionalmente irregular.
Outro bloco do mesmo loteamento, lindeiro ao limite sul do setor, também pode ser incluído nessa categoria, devido a suas vias curvas, aos formatos variados de suas quadras (das quais só uma é retangular), das junções viárias em T e do desencontro de ruas.
Os outros quatro loteamentos eram pequenos e o desenho deles não tinha nenhum interesse especial. Sua localização e seus nomes aparecem na Fig. 6. Só se conhece o nome do projetista de um deles, o Loteamento Santa Lúcia, traçado pelo engenheiro João Azevedo.
A maior parte das quadras desses cinco loteamentos tinha largura medindo entre 56 e 70 m e comprimento, entre 150 e 250 m. Os lotes mais comuns tinham testada medindo entre 12 e 15 m e profundidade, entre 28 e 35 m.
O acesso a esses cinco loteamentos se fazia através da Av. Campos Sales e da ligação desta com a estrada de Cabedelo: a Av. Flávio Ribeiro Coutinho.
Nos anos 1980 três loteamentos foram criados, fazendo com que o processo de parcelamento do setor – iniciado pouco depois de 1950 - quase se completasse no final de 1989. Sobraram apenas cinco áreas residuais, que já haviam sido ou seriam subdivididas através do prolongamento de ruas e/ou do desmembramento de lotes.
O maior desses loteamentos era o Jardim Oceania IV–2ª etapa, com uns 120 ha (Fig. 7). Seu projetista, o Aquino acima mencionado, seguiu a mesma diretriz de conciliar o traçado com os canais existentes e destinar suas margens a áreas verdes. O desenho que ele deu ao parcelamento era moderadamente irregular, mas contrastava com a regularidade do vizinho Jardim Bessamar.
Os outros dois loteamentos, eram pequenos e o desenho de um deles, o Portal do Bessa, de projetista desconhecido, também pode ser incluído na categoria do planned picturesque. O outro, o Oceania V, traçado pela engenheira Ângela Melo, era uma quadrícula sem cruzamentos viários. A localização deles aparece na Fig. 7.
A maioria das quadras desses três loteamentos tinha largura de 60 m e comprimentos diferentes compreendidos entre 140 e 250 m. O lote mais comum era o medindo 12m por 30m.
O acesso a esses três loteamentos se fazia através da estrada de Cabedelo, da Av. Flávio Ribeiro Coutinho e da Av. Campos Sales.
Embora todos esses loteamentos fossem empreendimentos privados (de famílias ou empresas imobiliárias) sua infraestrutura seria implantada gradualmente pelo poder público ao longo de muitos anos.
O aludido código de urbanismo também condicionou a ocupação edilícia do Bessa a partir de 1976. O setor foi dividido em duas zonas residenciais destinadas prioritariamente a habitações unifamiliares, isoladas ou conjugadas, uma pequena zona comercial de bairro e uma zona turística à beira-mar. Os índices urbanísticos adotados induziam à construção de edificações com a altura máxima de dois pavimentos.
Em 1979, esse código foi alterado pela Lei Municipal nº 2.699, que criou uma zona axial de uso misto (ZA4). Nas zonas residenciais, a principal mudança foi a permissão para se construir prédios multifamiliares com até três pavimentos e, só numa delas, condomínios verticais com mais de três pisos (que foram permitidos também na ZA4). Para estes não foram estabelecidos limites de altura, mas seu índice de aproveitamento máximo foi limitado a 2 na ZA4 e 3 na zona residencial.
Em 1982, o governo estadual emitiu um decreto (de n.º 9.842) proibindo a construção de edifícios com mais de três pisos na avenida da praia. Justificou-se tal medida com a alegação de que esses prédios saturariam as redes infraestruturais e congestionariam as ruas.
No ano seguinte, tal decreto foi anulado, mas em 1989 a nova constituição estadual determinou que na orla marítima os prédios obedeceriam a um escalonamento de gabaritos indo de 12,9 m (na via litorânea) a 35 m – a 500 m de distância em direção ao interior. Tal restrição, ainda vigente, daria uma conformação singular à paisagem construída do litoral pessoense.
Para mostrar a situação da ocupação edilícia do Bessa em 1989, elaboramos – com dados retirados de fotos aéreas desse ano, da PMJP, e usando como base a atual planta digital oficial da cidade – uma carta temática na qual as construções “normais” com até três pavimentos foram representadas por pontos verdes, as com mais de três pisos, por pontos vermelhos, e as edificações precárias, por pontos azuis (Fig. 8).
A comparação dessa carta com a planta da Fig.5, relativa a 1976, revela que entre esse ano e 1989 foram construídas no Bessa 1.253 edificações “normais” (aí não incluídas duas erguidas numa área verde), o que fez com que o número delas chegasse a 1.459 unidades no fim do período. Elas distribuíam-se por 344 quadras (aí não incluídas as destinadas a áreas verdes), o que dá uma média de 4,2 prédios por quadra. Permaneciam não edificadas 129 quadras (37,5% do total), das quais 56 localizavam-se no loteamento Jardim Oceania IV–2ª etapa, que acabara de ser aprovado e estava ainda inteiramente desocupado.
A maior parte (1.171 unidades) das novas edificações tinha até três pavimentos. Elas foram construídas não só próximo da praia, mas também em diferentes pontos do interior do setor, testemunhando um processo de interiorização da ocupação semelhante ao ocorrido na orla sul carioca, como mostrou Panerai (14). Já os prédios mais altos eram em número de 82 e situavam-se, em geral, nas imediações da Av. Campos Sales e da Av. Flávio Ribeiro Coutinho, o limite sul do setor.
Na ocupação edilícia ocorrida entre 1976 e 1989 notam-se duas tendências: (a) a ocupação de uma faixa, com largura média de 500 metros, contígua à praia e à última avenida; (b) a ocupação de alguns locais do interior do setor, fora dessa faixa, por pequenos conjuntos residenciais.
A negligência do poder público levou a população pobre a se estabelecer na margem do rio Jaguaribe, em casebres precários. Em 1989, estes ocupavam o leito da projetada, mas não implantada, avenida do Jardim América que margearia tal rio. Infelizmente as fotografias aéreas desse ano, por nós analisadas, não permitem quantificar esses barracos.
A ocupação entre 1989 e 2009
Após 1989, a legislação urbanística de João Pessoa sofreu algumas mudanças que tiveram forte impacto na ocupação do Bessa. Em 1993, o código de urbanismo foi modificado pela Lei Complementar nº 4, que alterou os índices de aproveitamento vigentes na cidade. O do setor Bessa passou a ser 1,5. Em 2001 novas alterações foram introduzidas pelo Decreto nº 4.225, que elevou esse índice para 4 nos bairros Jardim Oceania e Aeroclube, e para 2 no bairro do Bessa (em 1998 um decreto municipal dividiu o setor nesses três bairros)(15).
Entre 1989 e 2009 a ocupação do setor foi bastante estimulada pela pavimentação de várias de suas vias principais. Antes de 1989 só havia no Bessa dois eixos arteriais pavimentados: o longitudinal costeiro (composto pelas avenidas Campos Sales e Afonso Pena) e a Av. Flávio Ribeiro Coutinho, ligando a praia à estrada de Cabedelo. Após tal ano foram pavimentadas (a) duas outras ligações entre essa estrada e a praia, (b) um segundo eixo longitudinal, situado entre as duas etapas do loteamento Jardim Oceania IV, assim como suas conexões com a malha viária principal, e (c) um conjunto de vias que converteriam o eixo costeiro num binário.
Para entender como se processou a ocupação edilícia do setor entre 1989 e 2009, elaboramos duas plantas temáticas semelhantes à que constitui a Fig. 8, uma referente a 1998 e a outra, a 2008/2009. Nelas os pontos verdes representam as construções “normais” com até três pavimentos, os vermelhos, as com mais de três pisos, e os azuis, as edificações precárias.
A primeira delas (Fig. 9) mostra esquematicamente a situação retratada por fotografias aéreas de 1998, pertencentes à PMJP.
Ela revela que em 1998, das 341 quadras existentes (esse número é menor que o de 1989 porque após esse ano dois grupos de quadras foram remanejados), 60 (ou seja, 17,6%) permaneciam vazias, a maioria destas (31 unidades) estando situada no loteamento Jardim Oceania IV–2ª etapa, aprovado em 1989. Confrontando as figuras 8 e 9, constata-se que o número de edificações “normais” passou de 1.459 unidades em 1989 para 2.450 em 1998 (um aumento de quase 68%), ou seja, quase mil dessas edificações foram erguidas no setor entre esses dois anos. A média de construções por quadra ainda era baixa: 7,2 unidades.
Das construções “normais” existentes em 1989, 1.377 tinham até três pavimentos. Em 1998 esse número elevou-se para 2.180 unidades (um acréscimo de 58,3%). Já o número de prédios com mais de três pisos passou de 82 em 1989 para 270 em 1998 (um incremento de 230%).
Houve uma substancial interiorização da ocupação edilícia – a partir da faixa litorânea e do limite sul do setor –, especialmente nos loteamentos Jardim América e Jardim Bessamar bem como nas áreas situadas nas imediações da Av. Flávio Ribeiro Coutinho e a leste do eixo viário longitudinal situado entre as duas etapas do loteamento Jardim Oceania IV. Foi no interior do setor que se implantou a maioria das edificações construídas entre 1989 e 1998.
No que concerne aos prédios com mais de três pisos, verificou-se que em 1998 boa parte deles localizava-se nas vizinhanças das avenidas Flávio Ribeiro Coutinho e Argemiro de Figueiredo (o novo nome da Av. Campos Sales). Explicam essa tendência a boa acessibilidade que essas artérias asseguravam, a maior proximidade da primeira em relação ao centro da cidade e a Tambaú, e a proximidade da segunda em relação à praia.
A maioria desses prédios foi edificada em lotes vazios, diferentemente do que ocorreu no vizinho bairro de Manaíra (ao sul) e também em Tambaú, onde com frequência casas foram demolidas para dar lugar a eles.
No que respeita às habitações precárias, cresceu muito o número daquelas situadas no Jardim América: em 1998 elas ocupavam quase que inteiramente a margem do rio situada nesse loteamento. Ademais, surgiu outro aglomerado linear ribeirinho, com pouco mais de 200 m de extensão, nas imediações da divisa entre os loteamentos Jardim Bessamar e Jardim Oceania IV – 2ª etapa.
Quanto à planta relativa a 2008/2009 (Fig. 10), ela representa a situação retratada por fotos aéreas do Google Earth obtidas nesses anos.
Tal carta mostra que em 2008/2009 a maioria dos lotes já estava ocupada por edificações, só existindo um percentual elevado de terrenos vazios no vasto e recente Jardim Oceania IV–2ª etapa e num trecho do Jardim Bessamar. Das 341 quadras existentes (aí não incluídas as destinadas a áreas verdes), apenas 14 permaneciam vazias, oito das quais situadas nesses dois loteamentos.
O número de edificações “normais” passou de 2.450, em 1998, para 3.706, em 2008/2009 (aí não incluídas as existentes em áreas verdes), o que representa um incremento de pouco mais de 50%. A média de construções por quadra elevou-se para quase onze.
Das edificações existentes em 1998, 2.180 unidades tinham até três pavimentos. Em 2008/2009, essa quantidade tinha aumentado para 3.211 (um acréscimo de quase 50%).
O número de prédios com mais de três pisos passou de 270 em 1998 para 495 em 2008/2009 (um aumento de 83,3%). Esse crescimento deveu-se em parte à modificação da legislação urbanística. Como aconteceu no período 1989-1998, a grande maioria desses prédios foi edificada em lotes vazios.
A interiorização da ocupação se intensificou, impulsionada, na metade sul do setor, por dois novos vetores de urbanização que surgiram com a pavimentação do eixo viário longitudinal central e de sua ligação com a estrada de Cabedelo. Acompanharam esse processo os prédios com mais de três pavimentos, muitos dos quais se instalaram ao longo desse eixo ou nas imediações dele.
No que concerne às habitações precárias, o aglomerado do Jardim América cresceu pouco, sem se estender, adensando-se através da ocupação dos seus vazios. As imagens analisadas permitem estimar grosseiramente que ele tinha pouco mais de 100 barracos em 2008/2009. Já o aglomerado lindeiro ao Jardim Bessamar se ampliou bastante, no comprimento e na largura. É possível estimar, a partir das mesmas imagens, que ele reunia cerca de 70 barracos na mesma época.
Por outro lado, um levantamento de campo feito em 2011, sob a direção das arquitetas Chaves e Xavier, constatou que 34% dos lotes do setor Bessa ainda estavam vazios nesse ano (16). No bairro menos edificado, o Aeroclube (que contém o Jardim Oceania IV–2ª etapa), o percentual correspondente era quase 60%, enquanto nos dois outros bairros caía para 26%.
O trabalho mostrou ainda que em 2011 havia no setor 369 estabelecimentos comerciais e de serviços (além de 35 escolas e 34 locais de culto religioso), 80 dos quais estavam acoplados a habitações. Este número é significativo, em comparação com as 3.562 edificações residenciais – prédios de apartamentos e casas – existentes no setor na mesma época, segundo tal trabalho. A confrontação desses dados com as referidas fotografias aéreas de 1989, da PMJP, permite inferir que a grande maioria desses estabelecimentos surgiu após esse ano e foi implantada em terrenos vazios – diferentemente do que aconteceu nos bairros de Manaíra e Tambaú, onde com frequência eles foram instalados em lotes ocupados por casas.
Conclusão
Um requisito para que a urbanização do Bessa ocorresse foi a ocupação da faixa costeira situada ao sul do setor, que já estava adiantada em fins dos anos 1940 e que se iniciara num antigo núcleo existente na praia de Tambaú, no entorno do local onde hoje termina a Av. Rui Carneiro. Desse núcleo, a urbanização avançou tanto para o sul quanto para o norte (Fig. 11).
A ocupação urbana do Bessa iniciou-se no começo dos anos 1950, de duas formas independentes. Uma foi a edificação de casas de veraneio nas proximidades do mar, num loteamento (um pólo de crescimento planejado) criado na extremidade norte do setor. A outra foi a construção de casas de igual natureza entre a praia e uma via paralela a esta (uma linha de crescimento) que principiava no final da faixa costeira ocupada acima referida e seguia para o norte, em direção a uma barreira: o maceió da ponta do Bessa (os termos em itálico exprimem conceitos de Panerai).
Portanto, a urbanização do Bessa começou de maneira bipolar, com dois vetores de crescimento: um que dava continuidade ao que vinha de Tambaú, e o outro que se originava na estrada de Cabedelo e dirigia-se para a praia atravessando o loteamento Jardim América (Fig. 12).
Esse tipo de expansão insere-se na categoria que Panerai denominou crescimento descontínuo, que é aquele iniciado em mais de um foco (17).
Em 1976 essas tendências de ocupação se mantinham, mas a área ocupada se ampliara: no polo setentrional, através da adição de um novo loteamento, que prolongava o existente, e do aumento do número de casas; na linha de crescimento, ao sul, com a construção de edificações no lado poente da via que acompanhava a praia, e ao longo de uma rua paralela que surgiu a oeste dela. Separavam essas duas expansões a barreira representada pelo referido maceió. Naquele ano, havia no Bessa apenas pouco mais de 200 edificações, nenhuma com mais de três pisos.
Entre 1976 e 1989 novos fatos se agregaram ao processo de urbanização em foco (Fig. 13): (a) a ocupação edilícia avançou para o interior a partir da faixa litorânea ocupada e da Av. Flávio Ribeiro; (b) foi parcelada quase toda a área ainda não loteada; (c) surgiram prédios com mais de três pavimentos, que em 1989 eram em número de 82; (d) uma via pavimentada interligou o polo e a linha de crescimento, atravessando a barreira; (e) formou-se, junto ao rio, uma favela. Em 1989, o Bessa já tinha quase 1.400 edificações com até três pavimentos (aí não incluídos os casebres precários).
Nos vinte anos seguintes a maioria desses processos continuou e se acentuou. A interiorização da ocupação avançou tanto a partir dos vetores da fase anterior quanto seguindo novos vetores que surgiram com a pavimentação de vias arteriais (Fig. 14), o que fez com que hoje só existe um percentual significativo de lotes vazios em dois loteamentos. Multiplicaram-se os prédios com mais de três pavimentos, que chegaram a quase 500 unidades em 2008/2009. Multiplicaram-se também os estabelecimentos comerciais e de serviços (localizados quase todos ao longo das principais artérias do setor), cujo número era superior a 400 em 2011. Estendeu-se e adensou-se a favela existente e surgiu outra, também ribeirinha, ao sul. Em 2008/2009, os três bairros do Bessa já continham mais de 3.200 edificações com até três pavimentos (aí não incluídos os casebres precários).
Dá especificidade à urbanização do Bessa o fato de ela ter ocorrido a partir de dois focos, diferentemente da ocupação urbana do litoral sul do Rio de Janeiro, que, como mostrou Panerai, ocorreu de forma unidirecional e contínua, partindo da área mais próxima do centro em direção à periferia (18).
notas
NA
Este artigo derivou da dissertação de mestrado de Marcela Sarmento, orientada por Alberto Sousa (O processo de ocupação urbana de um setor litorâneo de uma capital brasileira: o caso do Bessa, em João Pessoa-PB. João Pessoa, PPGEUA-UFPB, 2012).
1
Como Lenygia Morais, na sua dissertação de mestrado Expansão urbana e qualidade ambiental no litoral de João Pessoa (João Pessoa, PPGG-UFPB, 2009).
2
PANERAI, P. Análise Urbana. Brasília, Editora UnB, 2006, p. 78.
3
Ibid.
4
KOSTOF, S. The City Shaped: Urban Patterns and Meanings through History. Londres, Thames & Hudson, 2006, p. 259.
5
RESSA, P. Quatro décadas de grandes expansões planejadas na capital paraibana (1913-53). Dissertação de mestrado. João Pessoa, PPGEUA-UFPB, 2012.
6
No início dos anos 1970, essa estrada, que fora pavimentada pelo governo estadual em 1942, foi ligada às rodovias federais BR-101 e BR-230, passando a ser considerada um trecho da última. Essa mudança de status não teve repercussões importantes na ocupação do Bessa.
7
Maceió é o nome que se dá, no nordeste brasileiro, a um pequeno corpo de água adjacente a uma praia e interligado com o mar.
8
PANERAI, P. Op. cit., p. 67.
9
Ibid., p. 18.
10
JOÃO PESSOA. Lei nº 2.102, de 31 de dezembro de 1975 (Código de Urbanismo de João Pessoa).
11
SITTE, C. L’art de bâtir les villes: l’urbanisme selon ses fondements artistiques. Paris, Éditions du Seuil, 1996 (tradução francesa de Der Städtebau...).
12
KOSTOF, S. Op. cit., p. 141.
13
Ibid., p. 70-74.
14
PANERAI, P. Op. cit., p. 57.
15
O bairro do Bessa corresponde aos loteamentos Jardim América e Jardim Bessamar. O bairro Jardim Oceania abrange vários loteamentos, os maiores dos quais são o Oceania I e o Jardim Oceania IV–1ª etapa. O bairro Aeroclube é o único que está afastado da praia; seu maior loteamento é o Jardim Oceania IV–2ª etapa.
16
CHAVES, H. & XAVIER, R. Levantamento de uso e ocupação do solo dos bairros Jardim Oceania, Aeroclube e Bessa. João Pessoa, UNIPÊ, 2011.
17
PANERAI, P. Op. cit., p. 58.
18
Ibid., p. 57.
sobre os autores
Alberto Sousa é professor associado da Universidade Federal da Paraíba. Arquiteto e urbanista, obteve seu grau de doutor na Université de Paris I, em 1990. Escreveu vários livros, o mais recente dos quais é Sete plantas da capital paraibana, 1858-1940, publicado em 2010.
Marcela Sarmento é professora do IFPB, campus Cajazeiras. Arquiteta e urbanista, obteve seu grau de mestre na Universidade Federal da Paraíba em 2012.