A presença de áreas verdes urbanas influencia vários aspectos da qualidade e funcionamento de sistemas urbanos. Além de proporcionar contato com a natureza e oferecer atividades de lazer ativo e passivo, essas áreas podem contribuir para a saúde física e mental; criar identidades para bairros ou mesmo cidades inteiras; promover encontros e interação social; mitigar condições climáticas adversas e contribuir para a criação de microclimas locais; contribuir para a preservação ambiental e ornamentar o espaço urbano (1).
As atividades desempenhadas no entorno também são importantes. Segundo Jacobs (2), o sucesso ou fracasso de parques de bairro depende do tipo de uso do solo existente ao seu redor. Diversidade de usos e de pessoas gera diferentes necessidades e horários de utilização, que por sua vez auxiliam o parque a ser utilizado em diferentes horas do dia e da noite. A localização no contexto mais amplo também é essencial. Ao invés de posicionar o parque em áreas pouco densas, Jacobs aconselha justamente o contrário: posicioná-lo onde já há vida urbana, gente passando, fluxos de pedestres e interação microeconômica. Disso conclui-se que também são importantes aspectos como as conexões com o tecido urbano existente, a relação com as principais vias de fluxo (de automóveis e de pedestres) e a possibilidade de interação entre as atividades internas e externas ao parque, entre outros fatores.
Um parque bem integrado ao seu entorno pode oferecer maiores possibilidades de interação e de utilização: alguns usuários podem estar apenas passando, outros contemplando a vista, praticando esportes, conversando e outros ainda apenas observando o vaivém das pessoas. Esse caráter democrático estimula a copresença de pessoas com diferentes classes sociais, etnias, culturas e origens, o que por sua vez permite a interação entre os diferentes indivíduos ou, ao menos, a consideração mútua e a consciência sobre o outro. Apesar de a copresença não ser garantia de interação social, sua ausência é um sério obstáculo a essa interação (3).
Este estudo busca explorar os aspectos que podem fazer com que um parque seja considerado integrado ao seu entorno e aprofundar o estudo sobre como a configuração interna do parque – analisada como padrões de permeabilidade e visibilidade – pode influenciar os padrões de utilização de espaços abertos de uso público, utilizando técnicas da Sintaxe Espacial (4). Interessa-nos, além disso, explorar o conceito de barreiras para verificar que tipos de elementos são percebidos pelas pessoas como limitação ao seu movimento (5).Com isso, esperamos contribuir para um maior entendimento desses fatores, com vistas a aprimorar os processos de projeto de espaços urbanos abertos.
Hipóteses
Este estudo é mais exploratório do que propriamente hipotético-dedutivo. Através da comparação de diversos modelos descritivos com padrões de utilização do espaço observados empiricamente, buscamos relações e possíveis explicações, ainda que parciais, para a relação entre configuração espacial e apropriação. Entretanto, algumas hipóteses básicas permeiam nossos esforços de pesquisa, no sentido de fornecer uma delimitação dos aspectos a serem considerados:
- Áreas com maior visibilidade e com maior permeabilidade tendem a ser mais intensamente utilizadas.
- Áreas com menor visibilidade tendem a ser evitadas por pessoas com maior vulnerabilidade (especialmente mulheres e crianças);
- Barreiras virtuais possuem grande poder de atuar como conformadores de espaços e, portanto, de influenciar os comportamentos e a apropriação. Barreiras virtuais, neste caso, são entendidas como aqueles elementos que, apesar de não representarem impedimento real ao movimento pelo fato de poderem ser transpostos com pouco ou nenhum esforço, tendem a ser percebidas como barreiras ao movimento.
Quadro teórico-conceitual
Não é objetivo deste trabalho adotar uma postura determinista com relação ao papel do espaço sobre processos sociais, nem tampouco afirmar que comportamentos e percepções estão, de alguma maneira, desvinculados de estruturas de poder, de elementos culturais que somente podem ser entendidos desde uma perspectiva histórica, de hábitos muitas vezes arraigados, de um contexto socioeconômico mais amplo, e assim por diante. Todos esses aspectos certamente influenciam na forma como os espaços são produzidos, percebidos e utilizados. Por outro lado, o extremo oposto parece igualmente inadequado: considerar que o espaço é um elemento neutro ou que seja apenas um reflexo simultâneo e diretamente equivalente desse contexto mais amplo.
Sendo assim, pretendemos com este estudo entender melhor um aspecto bastante específico dentre a infinidade de pontos de vista que poderiam ser utilizados para analisar as relações entre espaço e comportamentos sociais: as interações existentes entre os níveis de visibilidade e relações de permeabilidade dos espaços abertos e sua apropriação pela população.
Visibilidade e acessibilidade: aspectos cognitivos
Uma das estratégias mais poderosas à disposição do arquiteto e urbanista, ao compor e organizar o espaço, é explorar as relações entre níveis de visibilidade (em duas direções) e de acessibilidade. Tais elementos interconectam-se e interagem de forma complexa para provocar significados, sugerir (e não determinar) comportamentos, facilitar ou dificultar alguns tipos de interação ou de contato, expor pontos de vistas diferentes, comunicar valores, etc.
Certamente o “mover-se” pelo espaço está diretamente relacionado ao “ver”. Apesar de ser perfeitamente possível mover-se pelo espaço sem vê-lo, é inegável que a capacidade de enxergar o espaço exerce forte influência sobre o ato de mover-se por ele. Presumivelmente, áreas que podem ser vistas com mais facilidade tendem a ser utilizadas com mais frequência do que áreas com pouca visibilidade. Isso aconteceria porque as pessoas seriam capazes de a) perceber que elas existem (em oposição a áreas que não podem ser facilmente visualizadas e portanto podem não ser percebidas por aqueles não familiarizados com o local); b) ver o que acontece nelas, o que por sua vez pode agir como motivação para juntar-se às atividades que ali acontecem (6); c) estimar sua segurança em termos do quanto ela pode ser vigiada por pessoas localizadas em espaços adjacentes. Além disso, a simples possibilidade de ver um espaço frequentemente “aproxima-o” da consciência de quem o vê e tende a torná-lo mais presente em seus pensamentos e decisões (7).
Além disso, pontos que podem ser vistos de vários lugares fornecem informações frequentes sobre onde um observador se encontrae, por isso, costumam ser utilizados como elementos de referência dentro de um sistema espacial mais amplo (8). Além disso, a possibilidade de visualizar previamente pontos próximos ao destino torna a tarefa de deslocar-se menos exigente do ponto de vista cognitivo: “Se mantivermos o tamanho constante e partir uma linha em segmentos e então conectar esses segmentos em ângulos que não permitem visibilidade contínua [...], não aumentamos significativamente a quantidade de energia necessária para mover-se por ela, mas aumentamos muito o esforço cognitivo necessário”. (9).
Explorando implicações da combinação visibilidade x acessibilidade
Além dessa função cognitiva, espaços com alta visibilidade costumam ser escolhidos para abrigar elementos arquitetônicos aos quais se deseja atribuir importância especial, tais como monumentos e edifícios religiosos e institucionais, por exemplo. Da mesma maneira, várias outras sensações ou significados podem ser sugeridos através da manipulação dos seus níveis de visibilidade.
Dessa forma, via de regra espaços com maior visibilidade tendem a ser associados com conceitos como importância, distanciamento, poder, formalidade, legibilidade, destaque, coletivo, público, sagrado e especial. Por outro lado, espaços com menor visibilidade são comumente associados a introversão, segredo, auxiliar, secundário, comum, cotidiano, privado e assim por diante.
Entretanto, o fato de quem nem todo espaço que possui alta ou baixa visibilidade suscite necessariamente todos os conceitos apontados acima mostra que são necessários outros elementos que, interagindo com o nível de visibilidade, consigam sugeri-los. Entre esses elementos estão a forma, o tamanho, o contexto cultural, a história do local e das pessoas que o vivenciam, as cores, o modo como ele se insere e relaciona com os elementos ao seu redor, entre outros. Entre eles está, também, o nível de acessibilidade que o espaço proporciona, entendido como a facilidade de alcançá-lo fisicamente.
Essa relação entre visibilidade e acessibilidade não é simples nem direta: “Podemos perceber que um dos meios mais presentes, eficazes e poderosos através do qual a arquitetura formula significado social é através da separação entre acessibilidade e visibilidade”. (10). O distanciamento físico ou a inacessibilidade de um elemento, por exemplo, quando associado a uma alta visibilidade, pode reforçar a noção de distanciamento numa escala social ou simbólica. Essa assimetria entre visibilidade e acessibilidade também pode ser utilizada para cumprir requisitos funcionais, tais como um palco em um teatro: apesar de altamente visível em relação ao sistema global, sua acessibilidade é restrita.
O Quadro 01 abaixo esboça uma primeira aproximação às possíveis implicações da manipulação de níveis altos e baixos de visibilidade e acessibilidade, e suas combinações.
Metodologia
A primeira etapa envolveu a revisão e aprimoramento da planta do parque através de medições in loco. Além disso, a localização dos usuários em um dia típico foi registrada através de um “instantâneo” em vídeo(11) e depois inserida em um Sistema de Informações Geográficas (SIG) para ser comparada com os padrões de visibilidade e permeabilidade. A partir desses dados foi gerada uma superfície de densidade de apropriação utilizando o algoritmo Kernel, com raio de 18m, considerado por Alexander et al (12) como o limite máximo para que duas pessoas possam interagir confortavelmente. Outras informações foram também agregadas ao layer de pessoas, tais como idade aproximada, tipo de atividade que estava desempenhando e sexo.
Para gerar os mapas-base para as análises sintáticas foi necessário definir o que seria considerado barreira ou não. Para a visibilidade, essa tarefa é relativamente simples, especialmente por se tratar de uma área plana sem grandes diferenças de nível, naturais ou artificiais. Para a permeabilidade, entretanto, era preciso definir até que ponto elementos do parque poderiam ser considerados barreiras. Lixeiras, bancos, canteiros a meia altura e outros elementos, por exemplo, podem ser entendidos como barreiras, mas também poderiam ser ultrapassados com certa facilidade caso o usuário assim o desejasse. Mais incertos ainda eram os canteiros de grama que demarcavam os caminhos do parque. A transição entre um e outro é bastante sutil, com praticamente nenhuma mudança de nível, o que gerou dúvidas sobre a pertinência de modelar os canteiros como barreiras ou não.
A metodologia utilizada optou por não responder a essa questão a priori. Ao invés disso, foram feitos vários mapas de barreiras e permeabilidades levando em consideração as combinações descritas a seguir (Figura 01), chamadas de “descrições”. Parte dos resultados da pesquisa, portanto, foi investigar qual combinação de barreiras e permeabilidades seria capaz de melhor descrever a apropriação do parque.
Os resultados obtidos com as descrições e análises sintáticas foram então comparados com a densidade de apropriação do parque.
Operacionalização das variáveis
A forma do espaço e, mais especificamente, os aspectos de visibilidade e acessibilidade, foram descritos através de elementos desenvolvidos pela teoria da Sintaxe Espacial (4), com especial ênfase para as isovistas e medidas de integração global derivadas dos grafos de visibilidade. Isovistas são representações poligonais da área visível a partir de um determinado ponto no espaço, em duas dimensões (Figuras 02a e 02b) (13). A área da isovista, principal medida de visibilidade utilizada neste trabalho, dá uma ideia da proeminência visual do ponto (tanto maior quanto maior for o número de pontos a partir dos quais é possível vê-lo) e do controle visual que ele possui (quantos pontos ele consegue enxergar, considerados conectados ao ponto original para a construção do grafo de visibilidade) (14)(15).
Como medida global, utilizamos neste trabalho a integração global (Integração Rn), que representa o quanto um determinado espaço está mais próximo (integrado) ou distante (segregado) de todos os outros espaços do sistema (4).A distância a ser considerada no cálculo da integração corresponde ao número de passos topológicos necessários para que toda a área possa ser visitada, considerando um passo topológico como a passagem de um ponto a outro quando os dois são mutuamente visíveis. Portanto, a integração global (Rn) é inversamente proporcional à quantidade de mudanças de direção necessárias para visitar todas as áreas de um determinado recorte e, além de indicar as áreas mais integradas ou segregadas, também fornece indícios de áreas que exigem, respectivamente, menor ou maior esforço cognitivo para a compreensão do espaço como um todo: “Isso fornece informação sobre o número de decisões que as pessoas deverão fazer para alcançar um determinado destino.” (16).
Estudo empírico e resultados
O Passeio Público localiza-se na área central de Curitiba - PR (Figura 03) e possui uma interface pouco permeável com seu entorno, no que diz respeito ao movimento, em virtude de uma grade metálica que o envolve em todo seu perímetro e permite poucos acessos (Figura 04).
Os resultados obtidos serão apresentados a seguir segundo o tipo de descrição de barreiras e permeabilidades adotado, conforme explicado na metodologia. As análises sintáticas nas diversas descrições serão também comparadas com a densidade de ocupação observada empiricamente, mostrada na Figura 05 abaixo. Por questões de limite ao tamanho do artigo, serão enfatizadas apenas as descrições 1 e 4.
Descrição 1
O mapa mostra barreiras “reais” à visibilidade, ou seja, muros, edificações e vegetação densa (Figura 06). Por isso, optamos por basear nossa análise, nesse nível de descrição, à visibilidade e proeminência visual, uma vez que a integração global não faria muito sentido por não estarem contempladas as barreiras ao deslocamento.
A partir dele é possível perceber que as áreas com maior visibilidade são as esquinas, o que é um resultado comum nesse tipo de mapa. Essas áreas de alta visibilidade coincidem com paradas de transporte coletivo e principais entradas do parque, mostrando coerência no posicionamento das entradas se o objetivo foi torná-las facilmente identificáveis e visíveis a partir das ruas circunvizinhas. Essas áreas de alta visibilidade dissolvem-se suavemente até chegar a um nível médio na grande área central do parque (em amarelo e verde claro), que corresponde à área mais intensamente utilizada pela população. Áreas de baixa visibilidade ficam praticamente restritas à porção oeste do parque, por conta de uma grande massa de vegetação posicionada no sentido norte-sul que funciona como barreira visual.
Nesse sentido, a entrada posicionada nesta parte oeste fica bastante prejudicada em termos de visibilidade. Não apenas a entrada deixa de aproveitar a maior visibilidade proporcionada pela rua que chega perpendicularmente ao parque, por estar deslocada ao sul, mas também acaba sofrendo os efeitos da massa de vegetação que bloqueia a visão para o interior do parque, do ponto de vista de quem está do lado de fora. Uma comparação com a entrada situada a sudeste mostra que não apenas a isovista da entrada oeste é menor, mas também que ela consegue penetrar pouco no parque, em comparação com a primeira (Figura 07).
As outras porções do parque, por outro lado, podem ser consideradas visualmente integradas com o exterior, já que suas partes internas podem ser vistas desde as calçadas situadas na porção leste e sul do parque. Entretanto, o mesmo não acontece do ponto de vista da acessibilidade física, uma vez que as cercas externas, apesar de não se constituírem em barreiras visuais, impedem a passagem de pessoas em quase toda a sua extensão, com exceção das três entradas já mencionadas. Isso permite que pedestres circulando do lado de fora tenham bom nível de visibilidade do interior do parque, o que pode funcionar como um estímulo para que eles entrem e desfrutem desse espaço. Entretanto, para fazê-lo eles precisam usar pontos bastante específicos.
Com relação ao padrão de apropriação do parque (Figura 05), vemos que a visibilidade, por si só, não consegue explicar adequadamente, uma vez que não é possível encontrar semelhanças significativas no padrão de distribuição das duas variáveis no espaço. Isso sugere que os padrões de permeabilidade física desempenham papel mais importante nessa equação. A Figura 08 abaixo mostra o parque sem o seu entorno, com o objetivo de examinar apenas sua configuração interna e as relações entre seus subespaços. Percebemos que a correlação com a apropriação aumenta quando considerado apenas o perímetro do parque, um fenômeno que se repete para as outras descrições.
Descrição 2
Adicionando ao sistema de barreiras os elementos que permitem visibilidade mas impedem completamente o movimento (cercas e lagos), passamos a utilizar a medida de integração visual global como base para as análises (Figura 09). Uma primeira constatação é que há uma diferença nos níveis de integração do exterior com o interior do parque muito mais acentuada do que a diferença de visibilidade descrita no item anterior. Fica claro, portanto, que a grade exterior exerce um impacto significativo nos níveis de integração internos.
Com as entradas restritas a alguns poucos pontos, o parque torna-se um espaço separado do tecido da cidade, agindo como uma barreira aos fluxos que poderiam passar através dele e aumentando as distâncias métricas e topológicas. Por outro lado, com a inserção das principais barreiras ao movimento, começa a ficar visível um esboço de estrutura de organização espacial, com os dois eixos principais acontecendo a partir das duas entradas situadas mais a oeste e prolongando-se para a parte central do parque, até encontrarem-se. Uma comparação com o mapa de densidade de apropriação (Figura 05) mostra que a correlação com a integração visual global começa a aumentar.
Descrição 3
Na descrição 3, obstáculos a meia altura foram adicionados (Figura 10) ao conjunto de barreiras. Os níveis de integração sofreram modificações pequenas, provavelmente pelo reduzido tamanho desse tipo de barreira comparado com o tamanho total do parque. Entretanto, é possível perceber algumas modificações importantes.
A primeira delas é que os eixos principais de integração tornaram-se mais afinados, concentrando-se em uma área menor e mais direcionada do que na Descrição 2. Isso acarreta também num sistema ligeiramente mais “profundo” em relação ao exterior do parque, uma vez que esses obstáculos acabam tornando os espaços interiores “mais distantes” em relação à rua. Além disso, o segundo eixo mais importante (situado mais ao sul) sofre um bloqueio importante por um obstáculo a meia altura, um pouco antes de encontrar-se com o outro eixo principal. Tal posição é, configuracionalmente, especial dentro do conjunto, uma vez que representa o encontro entre os dois eixos principais de permeabilidade (na verdade, os dois únicos eixos formados pela configuração do parque). Um objeto de forma mais destacada e elaborada poderia funcionar como importante elemento de referência e legibilidade para o parque, caso fosse posicionado nesse local.
A segunda modificação importante é a diferenciação interna de algumas áreas, criando pequenas ambiências, especialmente na porção mais central do parque onde se encontram os bancos e o parque infantil. Tal efeito não pode ser desprezado, uma vez que cria “áreas de tranquilidade” onde o fluxo de passagem é mais dificultado, proporcionando espaços onde o “estar” pode acontecer com mais conforto e segurança. Isso mostra-se coerente com o padrão de apropriação observado no local: tais ambiências tendem a ser utilizadas para atividades estáticas.
Descrição 4
Com a adição dos canteiros como possíveis barreiras, a segregação dos espaços internos foi ainda mais acentuada (Figura 11). De forma geral o parque é todo configurado para ser introspectivo: poucos pontos de entrada, circulação periférica com poucos pontos de penetração e desencontros e/ou descontinuidades em alguns eixos que apresentariam, se assim não fosse, potencial de integração centro/periferia. Entretanto, na porção mais segregada, a leste, a incorporação dos canteiros foi ainda mais impactante. É possível notar a queda nos níveis de integração uma vez que os canteiros impõem espaços de circulação estreitos e sinuosos a essa porção do parque.
Com relação à correlação com a densidade de apropriação, a descrição 4 foi a que obteve maior correspondência aos padrões observados no local. Isso sugere que os canteiros são efetivamente percebidos como barreiras ao movimento, uma vez que a quantidade de pessoas caminhando sobre eles ou utilizando-os de alguma maneira mostrou-se praticamente nula.
De modo geral, as áreas mais integradas segundo a análise sintática correspondem de fato àquelas mais intensamente utilizadas. Curiosamente, entretanto, a análise de integração considerando apenas o perímetro do parque e ignorando seu entorno mostrou maior aproximação com a densidade de apropriação (Figura 12). Em particular, o eixo formado a partir da entrada situada a oeste prolongando-se até encontrar o segundo eixo foi a porção mais apropriada pelas pessoas. Por outro lado, a porção mais segregada a oeste (colorida em tons de azul, na Figura 13) apresenta uma densidade de apropriação consideravelmente menor, como era intuitivamente esperado. Tal fenômeno é provavelmente explicado pelo já mencionado caráter introspectivo de parque, que o configura quase como um espaço autônomo, com relativa independência dos processos que acontecem do lado de fora. Caso ele fosse mais integrado à malha, é provável que a descrição mais fiel de sua apropriação fosse a que leva em conta o entorno.
Ainda assim, alguns pontos específicos desafiaram o poder preditivo da análise configuracional: o primeiro deles situa-se no extremo norte do parque, onde há equipamentos de ginástica (marcado com a letra “a” na Figura 12). Apesar de situar-se num “canto” do parque, relativamente segregado, apresentou alta apropriação. O outro, mais surpreendente, refere-se a uma pequena área para jogos de mesa situada ao sul (letra “b”na Figura 12), em um local altamente segregado e que, entretanto, também possui alta apropriação. Isso mostra a importância que alguns atratores possuem, gerando apropriação mesmo em áreas segregadas configuracionalmente.
Gênero e tipos de atividades
O mesmo tipo de análise foi realizado para verificar se há diferença na apropriação do parque por homens e mulheres (Figura 13). O resultado mostrou uma leve diferenciação, valendo destacar o fato de que na porção leste (mais segregada) do parque a porcentagem de mulheres é menor que a porcentagem no resto do parque (37,5% contra 43,2%, respectivamente). A diferença é pequena e não pode ser considerada significativa do ponto de vista estatístico, mas sugere que áreas com menor visibilidade e acessibilidade tendem a ser evitadas por grupos de usuários com maior fragilidade, como é o caso não apenas das mulheres mas também de crianças e idosos.
Conclusões
As análises realizadas corroboram parcialmenteas hipóteses definidas para o estudo. Os modelos descritivos e explanatórios da Sintaxe Espacial, apesar de extremamente restritos na gama de aspectos da realidade que incluemem suas análises, conseguem explicar (ou ao menos correlacionar-se com) grande parte da apropriação observada in loco. Isso nos leva a concluir que a forma física do parque por si só é de importância fundamental para os padrões de utilização do parque, mesmo sem considerar (apenas temporariamente e para fins analíticos) outros aspectos também relevantes tais como os usos do solo (do parque e do entorno), o perfil socioeconômico da população do local, a densidade populacional e a interrelação com outros espaços públicos verdes no entorno, entre outros.
Com relação à análise de visibilidade pura (descrição 1), ficou claro que esta possui pouca capacidade de explicar a distribuição de apropriação, conforme havia sido definido na primeira hipótese que, portanto, foi parcialmente rejeitada. Nenhum dos dois recortes estudados (com entorno e sem entorno) conseguiu mostrar boa correlação entre a distribuição de pessoas e os níveis de visibilidade pura, representada pelas áreas das isovistas em cada ponto, a não ser em um nível muito geral, diferenciando grandes áreas com maior e menor visibilidade e maior e menor apropriação, respectivamente.
Seguindo essa mesmalógica, foi possível observar certa diferença, ainda que pequena, na densidade de mulheres entre as áreas mais e menos visíveis, sendo menos numerosas nestas últimas, corroborando portanto a segunda hipótese.
Por outro lado, a medida de integração mostrou-se mais eficaz em explicar a densidade de apropriação, mas apenas à medida em que as descrições foram complementadas com os diversos tipos de barreiras. Isso sugere que a visibilidade por si só não é tão importante para a apropriação quanto o sistema de relações entre os campos de visão, capturado pela medida de integração.
Duas observações merecem ser feitas sobre esses aspectos: em primeiro lugar, “campos de visão” referem-se, na verdade, a campos de visão e livre movimento, no sentido de que eles revelam não apenas o que um pedestre pode visualizar mas também quais são as alternativas diretas de movimento das quais ele pode ter consciência a partir de um determinado ponto. Vemos, portanto, que visibilidade e permeabilidade atuam conjuntamente em um nível profundo e que sua separação, mesmo que para fins analíticos, impõe problemas ontológicos importantes.
Em segundo lugar, um exame cuidadoso mostra que, apesar de áreas com maior densidade de apropriação coincidirem com as áreas mais integradas de acordo com a descrição 4, e que essas áreas não possuem os níveis mais altos de visibilidade pura, áreas de baixa visibilidade mostraram níveis correspondentemente baixos de apropriação. Isso sugere a possibilidade de existência de um “limite de visibilidade” abaixo do qual os espaços são: a)percebidos como muito perigosos;e/ou b) considerados pouco convidativos; e/ou c) não são nem mesmo reconhecidos como possíveis destinos, por não serem suficientemente vistos pelos usuários. Acima desse nível, os espaços são (em princípio) capazes de atrair usuários, mas as análises mostram que isso acontece principalmente naquelas áreas que são adjacentes a – e diretamente visíveis a partir de – espaços bem integrados.
Por fim, o estudo mostrou que diferenças de caráter exclusivamente visual entre espaços podem ser percebidas como barreiras ao movimento, mesmo que, a rigor, não o sejam, corroborando a terceira hipótese. É o caso, por exemplo, de mudanças na textura do piso, que podem ser facilmente transpostas por qualquer pessoa e que, no entanto, quando incorporadas ao modelo foram capazes de ampliar a correlação com o padrão de apropriação observado em campo.
Desse modo, o estudo permite destacar a importância que elementos muitas vezes considerados secundários podem ter na apropriação de espaços abertos. Mobiliários, canteiros a meia altura e arbustos, dentre outros tantos elementos comuns em parques urbanos, possuem forte influência na leitura da configuração, mesmo não sendo necessariamente barreiras e, por isso, devem ser cuidadosamente considerados no processo de projeto de um espaço aberto.
Por esse motivo, acreditamos que as análises exploradas neste estudo podem ser ferramentas valiosas para processos projetuais. Seu papel, entretanto, deve ser visto com cuidado. Não se trata de encarar deterministicamente os resultados obtidos, com se eles tivessem a capacidade de prever a ocupação de uma área (existente ou projetada) apenas levando em consideração sua forma física. Seu papel é outro, o de auxiliar o projetista a construir conhecimento sobre o problema, explorando alternativas e cenários para entender melhor as possíveis consequências de determinadas escolhas no que diz respeito às formas escolhidas, sua disposição, suas relações e como elas podem ser lidas pelos usuários e influenciar suas atividades. Por ser um esforço de síntese, o projeto deve levar em consideração diversos outros aspectos, identificar possíveis conflitos e buscar alternativas que os resolvam satisfatoriamente.
notas
1
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000; ALEXANDER, Christopher; ISHIKAWA, Sara; SILVERSTEIN, Murray. A pattern language. New York: Oxford University Press, 1977; MATSUOKA, Rodney; KAPLAN, Rachel. People needs in the urban landscape: Analysis of Landscape And Urban Planning contributions. Landscape and Urban Planning, v. 84, n. 1, p. 7–19, 2008.
2
JACOBS (2000).
3
HILLIER, Bill; BURDETT, Richard; PEPONIS, John; PENN, Alan. Creating life: or, does Architecture determine anything? Architecture et Comportement/Architecture and Behaviour, v. 3, n. 3, p. 233– 250, 1987.
4
HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge: Cambridge University Press, 1984; HILLIER, Bill. Space is the machine. London: Space Syntax, 2007.
5
Neste trabalho estamos considerando apenas as barreiras físicas, e não as barreiras atitudinais que, entretanto, também podem ser relevantes em estudos sobre apropriação de espaços públicos.
6
JACOBS (2000); GEHL, Jan. Life between buildings: using public space. Washington, DC: Island Press, 2011.
7
Kahneman (2011) explica esse fenômeno do ponto de vista cognitivo e chama-o de “What you see is all there is”. KAHNEMANN, Daniel. Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011.
8
LYNCH, Kevin. The image of the city. Cambridge: The M.I.T. Press, 1960.
9
HILLIER, Bill. The architectures of seeing and going: Or, are cities shaped by bodies or minds? And is there a syntax of spatial cognition? In: 4th International Space Syntax Symposium, 2003, London. Proceedings... London: University College London, 2003. p. 06.1 - 06.34.Citação nas p. 06.2-06.3
10
KOCH, Daniel. Architecture Re-Configured. The Journal of Space Syntax, v. 1, n. 1, p. 1 -16, 2010, p. 13.
11
O parque foi inteiramente capturado em vídeo em uma “varredura” de aproximadamente 1 minuto, feita por três pessoas simultaneamente de forma que toda a área do parque fosse capturada em pelo menos um dos percursos. Posteriormente, a localização aproximada das pessoas, bem como outras informações, foi transposta para o CAD e o SIG.
12
ALEXANDER et al, 1977.
13
BENEDIKT, M L. To take hold of space: isovists and isovist fields. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 6, n. 1, p. 47 -65, 1979.
14
TURNER, Alasdair et al. From isovists to visibility graphs: a methodology for the analysis of architectural space. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 28, p. 103 -121, 2001; CASARIN, Vanessa; SABOYA, Renato; SANTIAGO, Alina. Analysis of accessibility at Moínhos de Vento Park in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, through Space Syntax methods. Journal of Civil Engineering and Architecture, 2012.
15
Apesar de haver, a rigor, uma diferença entre as áreas de proeminência e controle visual, elas foram consideradas coincidentes neste trabalho.
16
KALFF, Christopher;KÜHNER, David;SENK, Martin;CONROY DALTON, Ruth; HOELSCHER, Christoph. Turning the shelves: empirical findings and space syntax analyses of two virtual supermarket variations. In: Spatial Cognition 2010, 15-19 August 2010, Mt. Hood, Oregon.
sobre os autores
Renato T. de Saboya é professor adjunto do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC e subcoordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósARQ/UFSC). Doutor em Cadastro Técnico Multifinalitário e Gestão Territorial pela UFSC (2007). Desenvolve pesquisa em análises morfológicas e configuracionais aplicadas ao planejamento e ao projeto urbanos.
Sofia Bittencourt é graduanda do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC e bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET ARQ/UFSC) de agosto 2008 a julho 2007. Atual bolsista do Programa Ciências sem Fronteiras do curso de Architecture Design and Technology na University of Salford - Reino Unido.
Mariana C. Stelzner é graduandado Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET ARQ/UFSC) de abril 2009 a agosto 2011, onde desenvolveu dois estudos: 1. paisagem da Orla da Lagoa da Conceição/SC; 2. sintaxe espacial-inserção de parques em contextos urbanos, Curitiba/PR. Atualmente é estagiária no Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis.
Caio Sabbagh é graduando do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET ARQ/UFSC) de maio 2010 a março 2011.
Vera H. Moro Bins Ely é doutora em Engenharia de Produção (Ergonomia) pela Universidade Federal de Santa Catarina e Université Catholique de Louvain, é professora na graduação e pós-graduação (PósARQ/UFSC). Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente nos seguintes temas: Acessibilidade/Desenho Universal, Psicologia Ambiental e Morfologia Urbana.