1. Introdução
Desde a criação do estado do Tocantins (1988), a região do antigo norte de Goiás vem passando por um ciclo desenvolvimentista, atraindo investimentos econômicos e população atrás de um novo “El Dorado”. No campo essas transformações são bem sentidas com o desaparecimento de formas tradicionais de produção e sua substituição pelo agronegócio, que busca sempre novas fronteiras para sua expansão. Nas cidades a face dessas transformações aparece no crescimento desordenado, sem planejamento e sem políticas públicas que atendam a parcela mais pobre da população, aliado com o modelo de especulação imobiliária e de apropriação da valorização decorrentes de investimentos públicos.
Palmas, a capital do Estado, situada às margens do reservatório da Usina Hidrelétrica de Lajeado (UHE Lajeado, iniciada em 1998 e concluída em 2001) no Rio Tocantins, é um exemplo dessas grandes mudanças advindas. Apesar do projeto moderno, tem-se a repetição de um modelo de cidade excludente do Brasil, onde o poder público é incapaz de captar e resguardar a valorização das terras para a coletividade (1), ficando o “ônus” desse processo de urbanização na conta da sociedade, e propiciando, nas palavras de Campos Filho (2), “um governo urbano cada vez mais pobre e que enfrenta cidades cada vez mais caras”. Na mesma medida, Maricato (3) chama atenção ao laissez faire, o “deixai fazer” da política liberal, que predomina na falta de planejamento e de gestão nas cidades do Brasil.
O que chamou atenção de início foi o processo de urbanização recente de Luzimangues, distrito do município de Porto Nacional com uma proximidade muito grande com a capital – correspondendo à travessia de 8 km da Ponte da Amizade e da Integração (2002). Essa proximidade física faz com que seus moradores dependam mais da rede de serviços da capital do que da sede do município de Porto Nacional, distante mais de 60 km. A localidade vem passando por um rápido processo de transformação rural/urbano e a ocupação por empreendimentos imobiliários, em desconformidade aos preceitos e diretrizes atuais da política de desenvolvimento urbano, consolidados na Constituição Federal (4) e no Estatuto da Cidade (5) — ordenando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana (Art. 2º).
Diferentes fatores, somados às expectativas recentes da instalação de um polo industrial intermodal com a chegada da Ferrovia Norte/Sul (FNS), fizeram crescer os interesses dos proprietários privados e o surgimento efetivo dos primeiros loteamentos urbanos. Esse novo “espaço urbano” tem como objetivo principal sua exploração pelo capital particular do mercado de terras.
2. Cenário de grandes mudanças
O território do antigo norte de Goiás, hoje estado do Tocantins, está inserido numa lógica nacional de ocupação que relegou ao centro-norte do país um papel subalterno na divisão do trabalho. Lira (6) divide em três períodos a ocupação do norte de Goiás: “1) o período da mineração: descoberta do ouro (1725) e da hidrovia do Tocantins; 2) período republicano: a ferrovia [Estrada de Ferro Goiás], a 'Marcha para o Oeste'; 3) o período pré e pós-64: Brasília, Belém-Brasília e 'Amazônia Legal’”.
Já no século XX é que ocorrera a maior dinamização da ocupação dessa região centro-norte, inserido no modelo nacional de expansão capitalista e na política de Estado da “Marcha para o Oeste”, que começa a ser implantada pós 1930. Na execução dessa política está inserida a construção de uma obra que altera o eixo de desenvolvimento na região, a BR-153 (antiga BR-14), a Belém-Brasília (7), com a mudança da capital nacional do Rio de Janeiro para Brasília, em 1960, alterando a política de ocupação.
Para a região estudada um fator importante, senão um dos mais importantes, foi a divisão do estado de Goiás e a definição e surgimento da sua nova capital Palmas. O movimento separatista, que chega a termo com a Constituição de 1988 e cria o estado do Tocantins, provoca toda uma nova onda desenvolvimentista incentivando a ocupação da região.
Por fim, o vetor de crescimento mais recente consiste na construção da Ferrovia Norte/Sul (FNS), promessa de desenvolvimento industrial para o Estado, mas também fator de mudanças das relações produtivas no campo, especialmente dentro das suas áreas de influência, com a expansão do agronegócio, a mecanização do campo, a expulsão de populações rurais para as cidades, com menos oportunidades no campo e o encanto de melhorias de vida na cidade (busca de melhores empregos, educação, lazer, etc.), entre outros.
A expectativa vendida pelos governos é que a instalação e a consolidação dos pátios ferroviários e das plataformas intermodais ao longo da estrada de ferro impulsionarão os “polos de desenvolvimento industrial”, viabilizando as exportações e as importações, e gerando novas oportunidades de emprego.
3. Luzimangues – A gênese de uma “nova cidade” na periferia de Palmas?
3.1 Antecedentes
A história do povoamento de Luzimangues se confunde com a própria história do município de Porto Nacional, a região vem sendo ocupada desde a primeira metade do século XIX, com uma distribuição esparsa pelo cerrado de propriedades rurais voltadas à agricultura de subsistência e à criação de gado. Posteriormente a localidade aparece descrita como a região de “Mangues”, e assume mais recentemente a curiosa denominação de “Luzimangues”, fusão dos nomes dos rios Santa Luzia e Mangues. Esta região fez parte dos estudos para localização da nova capital do Estado (8), sendo declarada de utilidade pública, para efeito de desapropriação (9).
Com o advento da capital do Estado na margem direita do Rio Tocantins (1989), a dinâmica de ocupação na região vai sendo lentamente alterada. Em 2001 com a conclusão das obras da UHE Lajeado e o início da formação do seu reservatório, o antigo Distrito de Luzimangues foi inundado e grande parte da sua população foi transferida para um reassentamento rural.
Após o enchimento do Lago de Palmas (2001) e a construção da Ponte da Amizade e da Integração (2002), ligando Palmas a Porto Nacional, e daí interligando com Paraíso do Tocantins e à BR-153, começa a haver um crescente interesse dos proprietários de terras e do mercado imobiliário em novos loteamentos. Em 2002, a Prefeitura de Porto Nacional aprova uma lei que lhe autoriza efetuar a análise e aprovação das atividades de ocupação do solo urbano às margens do lago (10), e outra lei definindo área de expansão urbana no Distrito de Luzimangues (11). Surgem os primeiros loteamentos urbanos, sem um efetivo controle por parte do poder público — neste primeiro momento são loteamentos nas mais diversas situações, regulares ou não.
Em Palmas, ocorreram movimentos que também teriam influência neste processo, como a discussão da revisão do seu Plano Diretor (período de 2005 a 2007), no qual foi avaliado que um dos principais problemas da cidade eram os vazios urbanos. Durante um curto período ficou suspensa a aprovação de novos loteamentos e na definição da lei do plano (Lei Complementar nº 155/2007) foi redefinido o seu perímetro urbano, passando por uma redução significativa. Outra questão relevante é que parte das terras retidas pelo Governo do Estado em Palmas, e caracterizadas como vazios urbanos, não poderiam ser utilizadas, pois eram alvo de contestação judicial, conhecida como “Ação Discriminatória”. Alguns dos antigos donos das fazendas discordavam do processo de desapropriação por parte do Estado no início da implantação da cidade e moveram ações judiciais para reavê-las. A decisão final foi proferida em 2011, sendo contrária ao Estado, e repassando grandes áreas no território urbano da capital para particulares.
Junte-se a isso o fato da expansão e facilitação de crédito, ocorridas no ramo imobiliário a partir de 2009 em todo o território nacional, ter influenciado, em alguma medida, a alta dos preços de terrenos em Palmas, contribuindo para a procura pelos lotes do distrito da cidade vizinha — mais baratos e com facilidades de pagamento.
Essas alterações atingem recentemente até mesmo o reassentamento rural implantado em 2001, ocorrendo uma grande pressão para o desvirtuamento da função inicial de terra rural, devido à proximidade dos loteamentos urbanos e o vislumbre de também poder participar dessa renda da terra (12).
Pelos dados mais recentes do Censo 2010 (13), temos um total de 809 domicílios particulares e coletivos, abrangendo a área urbana e rural; um total de população de 2.310 habitantes, sendo 1.078 (46,7%) mulheres e 1.232 (53,3%) homens. A média de pessoas por domicílio é de 2,86. A população total do distrito corresponde a 4,7% da população total do município de Porto Nacional (49.146 habitantes).
Apesar da expansão urbana ir se desenrolando através de diferentes períodos, ela acaba se consolidando juridicamente com a definição dos instrumentos urbanísticos do município de Porto Nacional (2006). Isso se dá através do seu “Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável — PDDS” (14), e suas leis complementares de “Uso e Ocupação do Solo nas Macrozonas Urbanas” (15) e do “Parcelamento do Solo Urbano” (16). Estas leis deveriam de forma articulada “orientar as ações públicas e privadas de promoção do desenvolvimento sustentável do município, com ganhos reais na melhoria das condições de vida de todos os seus habitantes” (17).
O PDDS vem com o objetivo de ser um “instrumento fundamental para se garantir o empoderamento de seus agentes sociais no ordenamento territorial, a fim de alavancar as atividades econômicas” (18), mas desde a data da sua aprovação até a atualidade, a lei pouco vem contribuindo para o desenvolvimento sustentável da cidade. Tenta garantir, por exemplo, a participação popular por meio da criação do Conselho Municipal de Planejamento e Desenvolvimento (Art. 79) para o acompanhamento da sua implementação, porém nunca foi instituído. Acaba sendo um planejamento hermético que, segundo Lira (19), deixa muitas dúvidas, não é muito claro e a população não tem acesso. O desenvolvimento da cidade se desenrola “descolado” do plano, pois não se tem gestão ou controle social do espaço urbano.
Realizado em paralelo a essa discussão do PDDS, houve um outro estudo com o objetivo centrado na organização espacial da região de Luzimangues. Foi elaborado um projeto de Macrozoneamento (2006) e, posteriormente, o Macroparcelamento (2008) do distrito, vislumbrando as capacidades da região para o desenvolvimento industrial, decorrente da construção da FNS e do seu Pátio Intermodal — sem excluir os interesses do setor imobiliário. Esse macroplanejamento para a localidade é pouco conhecido, mas Luzimangues tem uma escala urbana que rivaliza com a capital Palmas.
3.2. Especulação imobiliária e o processo de lenta ocupação
O argumento inicial utilizado para justificar a expansão urbana no distrito era de que a área já estava crescendo desordenadamente, sem um planejamento e sem uma ligação entre os loteamentos que estavam surgindo. O objetivo era fazer uma ligação entre eles sem desapropriar ninguém. Os critérios do poder público para definir o perímetro urbano foram a existência de determinadores físicos e os loteamentos que já estavam “consolidados”. Na realidade não se tratavam de loteamentos consolidados, mas sim de loteamentos já comercializados, sendo que muitos desses não possuem ocupação até os dias de hoje e nem infraestrutura instalada, da mesma maneira havia loteamentos sem a devida aprovação da prefeitura ou registro de parcelamento em cartório. Esse não enfrentamento das situações de irregularidade denotam, de um ponto de vista bourdieusiano (20), que se tratavam de agentes com capitais econômicos e políticos que os deixavam numa posição de impor sua vontade, moldando o campo de maneira a atender os seus interesses.
As informações referentes aos loteamentos ali instalados são bem esparsas e desconexas, não havendo um controle sistemático por parte da prefeitura de Porto Nacional. A listagem utilizada na pesquisa reúne várias fontes de informações, de maneira a obter uma visão geral dos empreendimentos anteriores e após a legislação de 2006.
No período compreendido entre os anos de 1995 até 2006 (ano de aprovação do PDDS), são contabilizados 4.275 lotes — 19,15% do total. Após 2006, com as definições do zoneamento e das regras de parcelamento passa a haver uma maior oferta de lotes, já legalizados. São loteamentos que cumprem os requisitos formais da legislação (abertura de ruas, pavimentação, rede de água e energia), atendendo aos interesses de loteadores e investidores, mas não há uma consonância com os princípios do planejamento urbano sustentável (Estatuto da Cidade). No período compreendido entre os anos de 2007 até 2012 são produzidos 18.048 lotes — 80,85% do total.
Um dos grandes diferenciais entre estes períodos se refere ao modelo de negócio implantado: (a) a oferta de terrenos com preços mais baixos do que os de Palmas; (b) facilidade para o pagamento com pequenos valores de entrada e pequenas parcelas; (c) organização dos investidores (agentes detentores de capital) em diferentes parcerias.
Os loteamentos lançados em Luzimangues são sucessos de vendas, e vendem muito rapidamente. Já virou rotina entre os empreendedores vender tudo em um dia. “Cada loteamento que a gente lança do lado de lá a gente se surpreende, pois a procura é maior[...] Lá na hora de vender é uma loucura, já tivemos loteamentos de ter 5 mil pessoas no stand de vendas” (21). Apesar desse apelo comercial, o desafio que se impõe para a consolidação do distrito diz respeito à sua efetiva ocupação em moldes sustentáveis, o que parece bastante improvável e antagônico se for ainda seguido o modelo atual da urbanização mercantilizada, tomando o solo urbano como um bem especulativo e fonte de riqueza.
A especulação imobiliária é um tipo específico de renda da terra, pela qual os donos de terras captam uma renda transferida a partir de sua valorização, decorrente de investimentos públicos na infraestrutura ou alterações da legislação — tipos de uso, ocupação, etc. Essa forma “naturalizada” de renda provoca um custo social elevado, com a dilapidação da força de trabalho e o aumento dos custos de produção (22), bem como outras “consequências escondidas”, como o aumento dos custos de transporte, a aquisição de um segundo carro, o aumento do tempo gasto nos trajetos cotidianos, etc. (23).
“Muitos são aqueles que têm interesse em que não seja estabelecido esse elo entre as políticas econômicas [no nosso caso, também as políticas urbanas] e as suas consequências sociais ou, mais precisamente, entre as políticas ditas econômicas cujo caráter político se afirma no próprio fato de se recusarem a ter em conta o social e o custo social e também econômico dos seus efeitos a curto e a longo prazo.” (24)
O tipo inicial de especulação presente em Luzimangues trata do modelo mais geral de transformação rural/urbano, da especulação tradicional que vê a oportunidade na transição hectare/metro quadrado, adquirindo terras rurais pagando por hectare, e empreendendo os procedimentos para instalação de loteamentos, transformando e vendendo por metro quadrado, ampliando indiscriminadamente a malha urbana da cidade. Esse modelo de especulação vem se ampliando “às periferias (inclusive, áreas rurais), às cidades médias e às fronteiras agrícolas”, e parece promover mudanças importantes na rede de cidades brasileiras (25).
Esta oferta atinge uma grande massa da população: os que compram para fazer a própria casa, os que compram lotes comerciais para futuramente desenvolver alguma atividade, compram os investidores e compram os construtores. Os “investidores típicos” são clientes de diferentes regiões, dos estados do Pará, Goiás e Mato Grosso. Clientes de todos os lados, que compram lotes (dez, quinze, vinte, cinquenta lotes) para depois revender mais caro — na metodologia adotada na pesquisa este tipo de negócio imobiliário, apesar de legal e comumente aceito, foi classificado como outra escala de especulação imobiliária, o “ágio”. Essa é uma prática que se tornou comum e aceita no mercado imobiliário e diz respeito ao valor cobrado pelo primeiro comprador que ainda não quitou totalmente o imóvel adquirido a prazo do loteador; as parcelas futuras passam a ser de responsabilidade de um novo comprador, sendo cobrado o valor já despendido pelo bem, acrescido da valorização já advinda no tempo ou por alguma melhoria do empreendimento, e mais sobrepreços decorrentes do meio especulativo.
Esse mecanismo do ágio pode ser ilustrado da seguinte maneira: um terreno custa no ato do lançamento do loteamento o valor de 35 mil reais, sendo possível pagar um valor de entrada de 5 mil reais e mais 120 parcelas de 250 reais. O investidor compra uma quantidade de lotes, pagando o valor da entrada, e em poucos meses revende esses terrenos cobrando o ágio, por exemplo no valor de 10 mil reais, sendo que as parcelas faltantes são assumidas pelo novo comprador (26). Acaba se formando uma outra camada desse mercado especulativo, com pequenos investidores que não têm intenção de ocupar ou construir, enxergam apenas mais uma oportunidade de ganho.
A terra urbana é objeto de interesse generalizado dos agentes, estabelecendo uma tensão permanente e problema para uma enorme parcela da população (27). Os empreendedores enxergam a região de maneira bastante limitada, com o olhar voltado para os seus loteamentos e para os seus próprios interesses. O poder público pouco vem fazendo, não cumprindo os princípios previstos no Estatuto da Cidade (2001) e no seu PDDS (2006). E a comunidade, grande parte alheia ao que vem acontecendo, será penalizada num futuro próximo tendo que conviver com um deficit de infraestrutura generalizado e submeter-se ao jogo político do favor para avançar em conquistas pontuais (28).
O poder público municipal vem sendo omisso, não se preocupando com uma gestão do território, aprovando loteamentos de maneira indiscriminada e não fazendo uso dos instrumentos previstos no PDDS (2006). Alguns desses mecanismos acabam sendo desvirtuados e utilizados para propagar mais ainda a especulação, como por exemplo o instrumento das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), onde os lotes voltados para “habitação de interesse social” podem ter áreas menores — a área mínima de um lote urbano no município é de 360m², quando se trata de habitação de interesse social pode ser reduzido para 250m². Na falta de um conceito e de uma regulamentação os agentes do mercado imobiliário vêm se apropriando do mecanismo e diminuindo a área dos terrenos comercializados uma vez que toda a macrozona do distrito (Macrozona Urbana 2) ficou demarcada como ZEIS. Na visão desses agentes esta seria uma estratégia voltada para uma realidade atual, ou seja, lotes menores e mais baratos — adaptados aos bolsos dos clientes.
Outro mecanismo para ajudar a combater a especulação imobiliária, se utilizado, seria o IPTU Progressivo. O instrumento está previsto no PDDS, e é aplicável sobre o solo urbano não edificado, podendo chegar até o décuplo de suas alíquotas básicas normais, “assegurando o cumprimento da função social da propriedade, coibindo a especulação imobiliária e otimizando os recursos públicos na implantação dos serviços municipais” (29). Porém é ineficaz para uma parte dos loteamentos aprovados atualmente (com lotes de 250m²), pois devido à indeterminação do entendimento das ZEIS e do conceito da habitação de interesse social, o § 2º do mesmo artigo considera solo urbano não edificado os terrenos com área igual ou superior a 360m².
Essas incongruências ou brechas da lei remetem aos mecanismos de “transgressões legitimadas” apontadas por Bourdieu, ou seja, concessões feitas pelas autoridades encarregadas de fazer respeitar as leis, a toda espécie de autorização especial de transgredir o regulamento (30). As transgressões e omissões acabam se constituindo em obstáculos para o efetivo controle urbano, com a permissividade de um grande número de loteamentos, impossibilitando um planejamento do processo de ocupação do solo.
De acordo com agentes do mercado imobiliário os custos da infraestrutura que são obrigados a instalar (cascalhamento e pavimentação de ruas, redes de água e energia), nos limites de suas próprias áreas, corresponderiam a 3 ou 4 anos das vendas da “carteira de negócios” do empreendimento, dependendo do tamanho do loteamento. Os empreendimentos são vendidos através de contratos especificando que no prazo de dois anos, a contar da data do lançamento, a incorporadora executará esta infraestrutura. Com base nessa práxis, aparece mais uma característica desse modelo de urbanização mercantilizada: quem assume grande parte dos custos é o próprio comprador. Os empreendimentos são quase totalmente autofinanciáveis, ou seja, não são aplicados apenas os recursos de capital próprio dos investidores, os recursos financeiros dos usuários são antecipados à produção dos lotes.
O processo de ocupação do território esbarra ainda em outro obstáculo, a falta de recursos das famílias de menor renda para a construção da moradia, uma vez que ainda estão arcando com os pagamentos das parcelas dos lotes. Isso traz como consequência a impossibilidade de contrair crédito financeiro. Outra questão específica envolvendo a indisponibilidade do crédito imobiliário é que a Caixa Econômica Federal (31) não vem autorizando os financiamentos na localidade por “falta de condições de habitabilidade”. Ou seja, falta da macroestrutura exigida pelos programas habitacionais: coleta de lixo regular, iluminação pública, abastecimento de água tratada, acessos pavimentados e equipamentos públicos de educação, saúde, lazer e transporte público, além da falta de proximidade com o comércio ou relações de vizinhança.
O município não teria também a capacidade de fazer os investimentos públicos necessários para a implantação de equipamentos e serviços, bem como de garantir sua manutenção, em uma área tão extensa e tão pouco ocupada. Os financiamentos com recursos públicos seriam mais uma maneira de viabilizar esses loteamentos longínquos, repetindo um modelo da década de 1970, e que não são considerados como áreas urbanas consolidadas, apesar de legalmente aprovados pela prefeitura de Porto Nacional.
Um agente do mercado imobiliário relata algo nesse sentido, envolvendo um negócio para a construção de 1.200 unidades residenciais em prédios: “Tivemos que segurar um pouco esse investimento porque quando fomos procurar a Caixa, eles informaram que havia 'falta de habitabilidade', por enquanto”. Essa é uma questão que os empreendedores se esquivam, “mandam a conta pra Viúva” (ditado popular), e cobram do poder público a macroestrutura que, em tese, não dependeria das empresas.
Como demonstrado anteriormente o número total de moradores na região não passa de 2.310 habitantes. Entre os anos de 2000 a 2010, a população de Porto Nacional cresceu 9,23%, um índice próximo de 0,92% ao ano. Diferente de Palmas que no mesmo período cresceu em média 5,2% ao ano (32). Mesmo se Luzimangues conseguir emular as taxas de crescimento de Palmas serão anos e anos sem ocupação. Lembrando também que se mantendo o mesmo volume de recursos públicos que a cidade de Porto Nacional recebe atualmente (33), ou com pequenos acréscimos devidos ao aumento populacional, serão anos e anos propagando o deficit de infraestrutura.
No futuro de Luzimangues se colocam diversos questionamentos, e a consolidação da sua ocupação é um dos principais deles. Estão sendo criados novos vazios urbanos na região de Palmas, que as pessoas compram para especular, repetindo a mesma lógica do capital: acumular usando o solo urbano.
4. Considerações finais
Apesar do apelo da Ferrovia Norte/Sul (FNS) e do seu Pátio Intermodal para o desenvolvimento industrial, esse novo espaço “urbano” do Distrito de Luzimangues tem como objetivo principal sua exploração pelo capital particular do mercado de terras. A denominação de “nova cidade” se deve à escala da intervenção no território, uma vez que foi contabilizado durante a pesquisa um total de 22.323 imóveis, o que comportaria uma população superior a setenta e cinco mil moradores — se efetivamente ocupada seria então a quarta maior cidade do estado do Tocantins (34).
Nesta expansão urbana faz-se presente mecanismos diversos de captação da renda fundiária e da especulação imobiliária, através do investimento dos diversos capitais do poder público, em diferentes escalas e grandezas. Em grande medida, após a ação do Estado, o mercado dá um salto, pois passa a existir num ambiente com regras que garantem os seus investimentos e reveste de segurança as transações, permitindo a expansão para diferentes perfis de clientes.
Notou-se também que existe uma ligação muito forte entre o crescimento do distrito e a cidade de Palmas. A expansão urbana de Luzimangues se mostrou como uma nova fronteira de expansão do capital, propagando e ampliando a exclusão, os vazios urbanos e o deficit de infraestrutura, cobrando mais investimentos públicos para a sua consolidação. Acaba, de certa maneira, demonstrando que Palmas não permitiu a inclusão da população de menor renda, propiciando o nascimento torto de uma “cidade filha” na margem esquerda do Rio Tocantins, porém sem o mesmo encanto e atenção que a reveste.
notas
NA
O artigo é baseado no trabalho acadêmico desenvolvido para o Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Tocantins, com orientação do Prof. Dr. Antônio José Pedroso Neto: PINTO, Lúcio Milhomem Cavalcante. Luzimangues: Processos Sociais e Política Urbana na Gênese de uma “Nova Cidade” (Dissertação de Mestrado). Palmas: UFT, 2012.
1
SANTORO, Paula (Org.). Caderno Pólis 9: Gestão social da valorização da terra. São Paulo: Instituto Pólis, 2004.
2
CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Cidades Brasileiras: seu controle ou o caos. São Paulo: Studio Nobel, 2001. p. 52
3
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 3ª Edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2008. p. 133
4
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
5
BRASIL. Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. As diretrizes gerais estão colocadas no Capítulo I.
6
LIRA, Elizeu Ribeiro. A Gênese de Palmas – TO (Dissertação de Mestrado). Presidente Prudente: UNESP, 1995.
7
A obra da BR é iniciada em 1956, mas “teve vários trechos construídos antes de sua decisão final de ligar Brasília a Belém. Os seus inícios datam dos anos 40, com a implantação da Colônia Agrícola Nacional de Goiás – CANG, hoje cidade de Ceres”. AQUINO, N. A. A construção da Belém-Brasília e a modernidade no Tocantins (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 1996. p. 174
8
PALMAS. Caderno de Revisão do Plano Diretor de Palmas. IPUP, Palmas: 2002.
9
TOCANTINS. Lei nº 09, de 23 de janeiro de 1989. Declara de utilidade pública, para efeito de desapropriação, área de terras descrita em memorial e dá outras providências.
10
PORTO NACIONAL. Lei nº 1.725, de 24 de janeiro de 2002.
11
PORTO NACIONAL. Lei nº 1.782, de 27 de novembro de 2002.
12
Em visita à área do reassentamento de Luzimangues, na data de 28 de abril de 2012, foi constatada a oferta de lotes irregulares com características de loteamento urbano, com área de 360,00m². Os mesmos são vendidos sem registro, apenas com um “contrato de compra e venda” e uma “cessão de direitos”, e tampouco com a garantia da instalação da infraestrutura. Os vendedores afirmam que isso é suficiente e dá segurança às transações. Complementam seus argumentos de venda falando que no assentamento não se paga a água e a energia é mais barata por se tratar de “energia rural”.
13
Conforme dados do Censo 2010. IBGE. Site internet: http://www.ibge.gov.br/
14
PORTO NACIONAL. Lei Complementar nº 05, de 04 de outubro de 2006. Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável de Porto Nacional e dá outras providências.
15
PORTO NACIONAL. Lei Complementar nº 06, de 04 de outubro de 2006. Dispõe sobre o uso e a ocupação do solo nas Macrozonas Urbanas do Município de Porto Nacional e dá outras providências.
16
PORTO NACIONAL. Lei Complementar nº 07, de 04 de outubro de 2006. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano do Município de Porto Nacional.
17
Trecho da “Mensagem à Câmara de Vereadores nº 05/2006”, texto que encaminha o projeto de lei do PDDS para apreciação e votação pelos vereadores do município.
18
OLIVEIRA, Adão Francisco de. Avaliação do Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável de Porto Nacional – PDDS-PN. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, Rede de avaliação e capacitação para a implementação dos planos diretores participativos, 2009.
19
LIRA, Elizeu Ribeiro. Entrevista concedida ao autor em 19 de abril de 2012.
20
BOURDIEU, Pierre. As estruturas sociais da economia. Lisboa: Piaget, 2001.
21
LACERDA, Adriano Fernandes. Entrevista concedida ao autor em 24 de junho de 2012.
22
CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Op. cit
23
BOURDIEU, Pierre. Op. cit , p. 210
24
BOURDIEU, Pierre. Op. cit , p. 261
25
FIX, Mariana de Azevedo Barretto. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil (Tese de Doutorado). Campinas: Unicamp, 2011. p. 138
26
De acordo com informações de agentes do mercado imobiliário, ouvidos em entrevistas na realização da pesquisa, até 70% dos terrenos adquiridos no lançamento de alguns loteamentos têm esta finalidade.
27
CORRÊA, Roberto Lobato. Sobre agentes sociais, escala e produção do espaço: um texto para discussão. In: Ana Fani Alessandri Carlos, Marcelo Lopes de Souza e Maria Encarnação Beltrão Sposito. (Orgs.). A produção do Espaço Urbano: Agentes e processos, escalas e desafios. São Paulo: Editora Contexto, 2011. p. 47
28
CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Op. cit
29
PORTO NACIONAL. Lei Complementar nº 05, de 04 de outubro de 2006. Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável de Porto Nacional e dá outras providências. Art. 46
30
BOURDIEU, Pierre. Op. cit , p. 165 e 166
31
Apesar de o PMCMV ser acessado através de outros bancos, o principal agente financeiro, e em especial para a baixa renda, é a Caixa Econômica Federal.
32
Conforme dados do Censo 2010. IBGE. Site internet: http://www.ibge.gov.br/
33
Pela proximidade pode-se cogitar a hipótese de Luzimangues crescer nas mesmas proporções que Palmas, porém a capacidade de investimento da capital é diferente da cidade de Porto Nacional — os valores das cotas do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), por exemplo, são bem díspares. Dados de transferências para municípios podem ser consultados em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/estados_municipios/municipios.asp
34
Conforme dados do Censo 2010. IBGE. Site internet: http://www.ibge.gov.br/
sobre o autor
Lúcio Milhomem Cavalcante Pinto é arquiteto e urbanista/UNITINS (2001), mestre em Desenvolvimento Regional PGDR/UFT (2012), técnico da prefeitura de Palmas e do escritório de consultoria Aldeia Arquitetura e Urbanismo Ltda.