1. Introdução
A palavra transe e seus significados serão utilizados nas reflexões que se seguem acerca do Centro de Eventos do Ceará (CEC) como uma metáfora das manifestações socioespaciais da cidade e da arquitetura contemporâneas na sua relação com o turismo, particularizando o caso de Fortaleza.
Originalmente, a palavra “transe” descende do latim transire, formada da junção de trans de através e ire de ir, que significa cruzar, atravessar, passar, transcender, denotando mutação, transição. Entretanto, a palavra se confunde com a ideia de crise, de conflito, de momento crítico, ou ainda em um sentido mais religioso, o transe associado à perda de consciência ou estado de alucinação, delírio.
Para Paiva (1), a construção do novo Centro de Eventos do Ceará, que foi erigido para se tornar um ícone urbano, alimentar os fluxos turísticos na baixa estação e incrementar o turismo de eventos, constitui uma dos sintomas socioespaciais do processo de “urbanização turística” verificado na Região Metropolitana de Fortaleza.
A relação entre a atividade turística e a produção da cidade e da arquitetura é evidente, pois se de um lado o turismo se vale das configurações urbanas e arquitetônicas existentes, mesmo das erguidas em contexto histórico-sociais absolutamente distintos no tempo e no espaço; por outro lado, estimula a criação de novas estruturas urbanas e edilícias.
A segmentação da atividade turística é determinada pelas características específicas dos lugares a serem produzidos e consumidos. No caso da modalidade de turismo de eventos, as demandas espaciais específicas se relacionam com as infraestruturas urbanas e os tipos de edifícios que possuem seu uso e apropriação relacionados aos eventos. Os espaços que abrigam os eventos possuem um caráter permanente ou ocasional.
A realização de grandes eventos no espaço urbano já construído revela dois tipos principais de espaços: os permanentes e os ocasionais. Os permanentes referem-se a espaços que foram concebidos para uma atividade principal, de eventos, definindo em projeto as premissas de ocupação, dimensão e localização, ainda que esse espaço possa ser utilizado para outras atividades. Entre eles incluem-se pavilhões de exposições, centros de convenções, auditórios, salas de concerto, templos religiosos, salões de festas, ginásios, estádios, recintos para exposições, casas de música, autódromos, sambódromos, hípicas, clubes associativos, recreativos e esportivos. (...). Os espaços ocasionais de eventos, (...), são espaços estratégicos, utilizados temporariamente, de acordo com os objetivos de determinado evento. Como exemplo, podemos citar os logradouros públicos, tais como ruas, praças, viadutos e parques (2).
O CEC (3) constitui um destes espaços permanentes de realização de eventos, que demanda uma infraestrutura significativa e possui um impacto urbano expressivo. Sendo assim, a relevância do artigo se sustenta na necessidade de se compreender, de forma geral, a relação entre o turismo e a produção e o consumo do espaço, e de forma específica em Fortaleza, as influências da atividade turística na concepção e construção dos artefatos urbanos e arquitetônicos contemporâneos, por intermédio da análise da localização, uso, apropriação, imagem e linguagem formal e simbólica do Centro de Eventos do Ceará.
2. Transe como transição: a dimensão econômica, política e simbólica do Centro de Eventos do Ceará
As principais estratégias de desenvolvimento econômico adotadas pelo Governo do Estado do Ceará, no período entre a ascensão do “Governo das Mudanças” (fins da década de 1980) e a atualidade, a fim de se ajustar aos fluxos globais, podem ser compreendidas com base nas políticas de incremento dos três setores da economia, principalmente no que se refere ao agronegócio, à indústria e ao turismo.
No caso do turismo, uma das principais estratégias utilizadas para a atração de investimentos foi a promoção da imagem do Ceará, que se entrelaça com a construção da imagem turística e se fundamenta, a priori, na tentativa de reverter os aspectos negativos, historicamente arraigados às consequências da seca, em atributos positivos para a prática do lazer e da atividade turística. O turismo é colocado pelas lideranças políticas como redentor no processo de reestruturação econômica e socioespacial do Ceará.
Pode-se afirmar que o advento do turismo planejado promoveu um processo de transição nas práticas econômicas, políticas e cultural-ideológicas da atividade, com ressonâncias diretas na “urbanização turística” da Região Metropolitana de Fortaleza.
Do ponto de vista econômico, a atividade turística é considerada como propulsora do desenvolvimento social, ao estimular uma enorme gama de atividades que compõe sua cadeia produtiva, além das possibilidades de geração de emprego e renda. No caso do CEC, o sua dimensão econômica se sustenta no objetivo de potencializar o turismo de eventos, evitando a diminuição do fluxo de turistas provocados pela sazonalidade, em função da especialização da atratividade exercida pela modalidade de turismo de “sol e mar” no Ceará.
Do ponto de vista político, o Estado tem um papel preponderante em relação à dinamização da atividade turística, seja através de políticas públicas, planos e projetos de intervenção e infraestruturas, seja por intermédio dos artifícios ideológicos relacionados ao consenso do turismo como atividade estratégica e à construção da imagem turística, todos estes aparatos do Estado utilizados para manutenção da hegemonia política das elites locais. A dimensão política do CEC vem reforçar o papel do Estado no desenvolvimento da atividade turística no Ceará e como consequência legitimar o poder político das lideranças político-partidárias que o propuseram.
Do ponto de vista simbólico, a transição pode ser percebida com a mudança da imagem do semiárido como representação da seca e da pobreza, pelo menos no discurso, para o imaginário do semiárido próspero, incorporado pelo turismo e relacionado às práticas do turismo de “sol e mar”. A construção da imagem do Ceará e de Fortaleza constitui, assim, uma das práticas cultural-ideológicas adotadas pelo Estado, através de diversas intervenções, apostando na capacidade do espaço de comunicar mensagens simbólicas. A dimensão simbólica do CEC está mais fortemente expressa nos aspectos alegóricos relacionados à maritimidade cearense, que funcionaram como pretexto formal para o projeto do Centro de Eventos, conforme será aprofundado.
3. Transe como crise da cidade: a inserção urbana do Centro de Eventos do Ceará
A concretização do CEC foi antecedida por uma proposta de construção do Centro Multifuncional de Eventos e Feiras do Ceará, do início da década de 2000. (Figura 01). Tratava-se de uma iniciativa conjunta do Governo do Estado e da Prefeitura Municipal, apoiada por entidades privadas, de criar um complexo capaz de atender as demandas relacionadas ao turismo de eventos (feiras, eventos culturais, exposições e grandes espetáculos) e incrementar o turismo nos períodos de baixa estação. O Centro Multifuncional seria uma continuação das ações propostas pelo Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, reforçando a imagem da Cidade e requalificando a faixa litorânea do Centro.
A concepção do projeto se mostrou interessante, pois foi organizada como um consórcio de 14 escritórios locais de arquitetura que trabalharam fundamentados em um master plan para a área. A princípio, o Centro ocuparia a área correspondente à indústria naval, no Centro da cidade, mas devido às dificuldades de relocação do equipamento foi proposta uma península com acréscimo de aterro no mar de 19 hectares (4).
A localização de um equipamento desta natureza e porte na área central se justificou em função da proximidade em relação à infraestrutura instalada, apostando na sinergia de estruturas de apoio, incluindo comércio, serviços e rede hoteleira, inseridas em raios de caminhabilidade. Apreende-se que a proposta de localização do projeto visava uma inserção estratégica no litoral capaz de funcionar como polo de desenvolvimento do turismo e das demais atividades derivadas (comerciais, serviços, hoteleira e imobiliária).
O projeto era ambicioso em vários sentidos e talvez por conta disso teve a sua execução inviabilizada, que foi reforçada pela mudança de mandato em 2006. O Governador que assumiu o cargo propôs a transferência da construção do Centro de Eventos do Ceará para a Av. Washington Soares, vizinho ao antigo Centro de Convenções, reduzindo o programa de necessidades em relação ao Centro Multifuncional de Eventos e Feiras do Ceará.
Atualmente, a Avenida Washington Soares, local escolhido para ser implantado o equipamento, constitui um dos principais vetores da expansão urbana de Fortaleza e apresenta-se como uma nova área de centralidade na cidade, que concentra, embora de forma linear, diversas funções urbanas e equipamentos públicos e privados de porte, como a Universidade de Fortaleza, o antigo Centro de Convenções, o Fórum Clovis Beviláqua, shoppings, entre outros.
A Av. Washington Soares foi transformada em rodovia estadual (CE-040) em toda a sua extensão intraurbana. A CE-040 constitui o principal acesso litorâneo para a chamada “Costa do Sol Nascente”, que parte de Fortaleza em direção à Aracati, favorecendo a integração também com a CE-025 que conduz à Sabiaguaba e à Praia da COFECO, em Fortaleza e ao Porto das Dunas, e à Prainha em Aquiraz. Associados aos impactos provocados pelo turismo, a transformação da área acontece em função da dinâmica imobiliária, principalmente no que se refere à construção de condomínios horizontais. Este vetor de expansão urbana de Fortaleza tem seu desenvolvimento fortemente atrelado à articulação entre a dinâmica do turismo e do setor imobiliário.
A condição de rodovia da Av. Wassington Soares, em uma zona que se urbaniza de forma linear pelo desenvolvimento dos diversos usos (terciário e habitacional), contribuiu para dividir a avenida/rodovia, que por possuir poucas vias transversais, não contribui para a integração das duas margens.
O CEC (Figura 02) foi implantado vizinho ao Centro de Convenções existente, em grande parte ocupando um terreno desapropriado que pertencia à Academia da Polícia Militar e bem próximo à margem do Rio Cocó, elemento natural significativo dentro da estrutura e zoneamento de Fortaleza.
Uma vez descritas as condições de localização e implantação do CEC (Figura 03), é possível inferir sobre alguns aspectos que caracterizam a ideia de transe como crise da cidade, na medida em que se verifica uma série de equívocos em relação à inserção urbana do equipamento.
- A localização do CEC na CE-040, em um eixo de expansão da “urbanização turística” da RMF, ratifica a escolha de localizações privilegiadas pela atividade e explica os padrões de urbanização contemporânea, marcado por um tecido urbano fragmentado, disperso e extensivo, que descarta a possibilidade de conservação e reabilitação de espaços significativos da cidade existente e consolidada e exacerba o processo de segregação socioespacial.
- A mudança do sítio em relação ao Centro Multifuncional de Eventos e Feiras, situado inicialmente na faixa litorânea do Centro, descartou uma alternativa concreta de reverter o quadro de degradação da área e qualificar os espaços litorâneos da cidade deteriorados, com a possibilidade de promover uma integração entre o Centro e sua faixa de praia e de permitir uma articulação com os projetos de requalificação da costa oeste, no caso o Vila do Mar, historicamente apropriada pelos pobres e altamente prejudicada ambientalmente.
- A localização do CEC na CE-040, induzirá uma valorização imobiliária ainda maior deste vetor sudeste, com o aumento dos preços dos terrenos, que poderá ainda estimular um processo de verticalização, inclusive com a construção de tipologias de meios de hospedagem, o que não é uma localização muito comum em Fortaleza, já que há uma concentração significativa de meios de hospedagem na orla turística. Tal realidade indica uma articulação entre interesses públicos e privados relacionados à dinâmica imobiliária.
- Em vários aspectos, tanto de infraestrutura urbana instalada como de características do edifício, a implantação não favorece uma integração física e visual com o Rio Cocó, importante elemento da paisagem de Fortaleza (5), que deveria ter sido incorporado ao desenho a fim de estimular o uso e a apropriação da sua margem.
- Nas obras de infraestrutura (túneis, acessos, vias) do CEC, há a primazia do veículo e o traçado do entorno não estimula os acessos de pedestres, prova disso é que não foram previstas passarelas de acesso ligando os dois lados da CE-040. Esta deficiência em relação à mobilidade de pedestres foi resolvida com uma passarela improvisada com andaimes (Figura 04). A condição de via expressa e os vazios dos túneis dificultam sobremaneira o acesso de pedestres.
- A implantação e a construção dos túneis de acesso localizados perpendiculares à rodovia não favoreceu uma integração entre o novo equipamento e o Centro de Convenções existente. Por possuírem usos afins e complementares, os dois edifícios poderiam ter sido articulados através de um desenho que facilitasse a conexão espacial. Esta espécie de “autismo” do CEC em relação ao Centro de Convenções fragiliza a gestão dos dois equipamentos e compromete a atratividade do complexo. O isolamento do Centro de Convenções e o fato de sua estrutura ser mais antiga pode afetar, ao longo do tempo, a manutenção do seu funcionamento.
Enfim, faltou ao projeto do CEC uma atitude mais contextualista em relação ao entorno, que preconizasse questões de localização, mobilidade, acessibilidade, uso e ocupação do solo, integração com a paisagem natural e construída, condições essenciais para garantir a qualidade ambiental urbana da cidade. Tal realidade local nos permitir identificar o estado de transe como um momento crítico da cidade contemporânea.
4. Transe como delírio: a arquitetura do Centro de Eventos do Ceará
A criação de ícones urbanos e arquitetônicos constitui um dos principais sintomas da intricada relação entre o turismo, a cidade e a arquitetura, que são concebidos e construídos para impactar a imagem da cidade e permitir a sua veiculação no mercado turístico global.
Atuam na concepção dos ícones urbanos e arquitetônicos contemporâneos, novas dinâmicas, relacionadas em muitos aspectos à valorização dos lugares como cenários do consumo, e por isso mesmo funcionam como catalizadores do desenvolvimento urbano, profundamente intricados à lógica do turismo. O apelo ao consumo dos lugares não se estabelece simplesmente enquanto uso, mas como imagem. A fim de qualificar essa imagem para o consumo, pois o ícone sintetiza e se confunde com a própria imagem urbana, o turismo, inserido nas políticas públicas das diversas instâncias do poder, se vale das estratégias do place marketing.
Várias cidades do mundo apostaram no poder destes ícones urbanos e arquitetônicos, como foi o caso de Bilbao, com a construção do Museu Guggenhein. “O museu se converteu imediatamente em sinônimo de toda uma cidade e um símbolo de regeneração de uma zona problemática da Espanha”(6). O Guggenhein de Bilbao se transformou no exemplo mais emblemático da capacidade de impulsionar o desenvolvimento turístico a partir da construção de um ícone, uma vez que a cidade de Bilbao capturou subitamente a atenção mundial como sendo “a surpresa arquitetônica mais glamorosa deste fim de século” se inserindo, assim, nos roteiros turísticos da Europa. A estratégia utilizada em Bilbao, que teve seu protagonismo econômico ligado anteriormente à atividade industrial, condição esta que foi subtraída diante da economia pós-industrial, demonstra o poder do turismo enquanto propulsor do desenvolvimento econômico.
Guardadas as devidas proporções, o Centro de Eventos foi pensado com o propósito de incrementar o turismo de eventos e funcionar simbolicamente como um ícone urbano e arquitetônico, recorrendo, conscientemente ou não, a alguns pressupostos que regem algumas das tendências da arquitetura contemporânea.
É importante salientar que assim como a arquitetura e o urbanismo modernos refletiam a lógica da acumulação baseada na produção, buscando associações estéticas, técnicas e funcionais com a racionalidade industrial, ao que tudo indica a arquitetura contemporânea se sustenta na lógica do consumo, reproduzindo e criando uma diversidade e variedade estética, técnica e funcional condizente com o processo contemporâneo de acumulação.
Genericamente, poderíamos afirmar que prevalece na arquitetura contemporânea um interesse formalista, que vem reduzindo a arquitetura à pura visualidade, a imagens que podem ser veiculadas e convertidas em espetáculo para favorecer o consumo dos lugares, confirmando as argumentações supracitadas sobre a relação entre as práticas do turismo, a cidade e a arquitetura.
O projeto do CEC, ao que tudo indica, se alinha à premissa essencial que distingue a produção da arquitetura contemporânea, qual seja, o apelo formalista. O transe se manifesta, neste caso, pela falta de consciência, estado de delírio em que estes valores da arquitetura contemporânea são incorporados pelas práticas profissionais locais.
O projeto arquitetônico do CEC (Figura 05) foi “inspirado em aspectos típicos da paisagem e do artesanato cearense. A fachada foi concebida com cores e formas que remetem as falésias do litoral leste cearense” (7). É possível inferir com base no memorial descritivo do empreendimento que se trata de uma postura arquitetônica que busca associações figurativas (rendas e falésias) como o principal recurso arquitetônico, com o intuito de conferir uma suposta identidade ao edifício e potencializar a sua condição de ícone e, por conseguinte produzir uma imagem turística, passível de ser consumida e veiculada, em consonância com as pretensões econômicas, políticas e simbólicas do Estado.
A fachada é composta por uma placa metálica dourada perfurada, sustentada por uma estrutura em aço fixada nos blocos, se desenvolvendo de forma irregular para mimetizar as superfícies das falésias, elemento característico da paisagem litorânea cearense.
Entretanto, percebe-se que a fachada não descende do agenciamento das condicionantes do projeto (aspectos espaciais, funcionais, técnico-construtivos), isto é, a forma é concebida superficialmente e de forma autônoma, um “aplique”. É fato, que este procedimento de produção da arquitetura não é novo, remonta as manifestações da arquitetura eclética do século XIX, caracterizada pelas conjunções aleijadas de espaços altamente qualificados estrutura e construtivamente com o “verniz estetizante” de fachadas historicistas. A diretriz projetual adotada no CEC constitui uma forma contemporânea de interpretar o ornamento na arquitetura, comprometendo outros aspectos essenciais em detrimento da invenção de uma forma espetaculosa.
O projeto do CEC remete, talvez inconscientemente, como no estado de alucinação, às proposições teóricas de Robert Venturi. No livro “Complexidade e Contradição na Arquitetura”, Venturi promulga um manifesto contundente contra a arquitetura moderna, denunciando o seu reducionismo formal, ao submeter os edifícios a um único código formal e abolir os atributos simbólicos da arquitetura, ou seja, sua capacidade comunicativa. Em “Aprendendo com Las Vegas”, Venturi vai defender a supremacia dos aspectos superficiais da arquitetura, inclusive a incorporação de outras linguagens ligadas ao consumo advindas da art pop, da publicidade e do cotidiano, ou mesmo de referências figurativas, como é o caso dos procedimentos adotados no CEC.
O projeto do CEC se enquadra no conceito de “decorated shed” (que pode ser traduzido como “galpão decorado”), cunhado por Venturi (8), no qual a função segue a forma, e não o contrário. O edifício se converte em imagem, substitui-se a espacialidade pelo simbolismo, pois o “... o elemento que caracteriza cada edifício é o vestuário, a ornamentação, o tratamento epidérmico, a estrutura e o interior constituem um mero fato construtivo, de engenharia, funcional.”(9).Estes recursos de fachada, no sentido pejorativo, significando algo meramente cosmético, qualifica o CEC como um “edifício propaganda”, confirmando sua dimensão simbólica.
As associações dos atributos arquitetônicos do CEC com as manifestações da arquitetura intitulada pós-moderna e presentes nos manifestos de Venturi são evidentes, e podem ser confirmadas com base na visão de Montaner:
Trata-se de uma arquitetura hedonista, que se desenvolve na fachada, na epiderme, na ornamentação, na maquiagem, naquilo que é captado pela vista e que permite transmitir o máximo de sensações e referências. Isto está na base dos mecanismos compositivos e formais que são constantes na mais radical arquitetura pós-moderna: a elaboração de formas abertas com o máximo desenvolvimento cenográfico da fachada; (...) um método compositivo baseado na ‘collage’; com ênfase na textura e policromia da pele, buscando uma percepção gratificante; a utilização direta de elementos do passado e a recorrência ao simbólico frente ao utilitarismo. (10)
A valorização da imagem foi tão patente no projeto arquitetônico do CEC, que as imagens digitais veiculadas (Figura 06) desde o lançamento do empreendimento tentaram exacerbar o suposto caráter espetacular do edifício. Percebe-se que os meios de representação contemporâneos e as tecnologias digitais estão a serviço da criação de uma hiper-realidade, simulando o espaço real com uma reprodução e resolução inimaginável. Trata-se de uma “hiper-representação” que oculta aspectos da realidade e do contexto urbano do edifício, dissimulando inclusive atributos específicos da arquitetura. Tal contradição pode ser percebida ao comparar as imagens do projeto com a obra construída, a simulação das falésias e a textura que compõem a embalagem do edifício são bem mais expressivas na imagem do que na realidade (Figura 07).
A imagem digital produzida pelo projeto, amplamente veiculada e estampada em escala descomunal nos tapumes que cercavam o canteiro de obras, foi utilizada para veicular a própria imagem turística e urbana de Fortaleza, e como tal
(...) é preciso reconhecer o caráter intrinsecamente ‘falso’ da imagem da cidade, uma vez que, por sua própria natureza (sintética e unificadora), jamais guardará uma relação de identidade, ou sequer de correspondência, com o objeto representado (Grifos no original) (11)
Uma discussão mais contemporânea sobre a arquitetura tem reafirmado, embora com algumas diferenças, as premissas teóricas propostas por Venturi na década de 1960 e 1970, de que a arquitetura constitui um sistema comunicativo. Para Moreira (2008), estas maneiras de tratar a definição, ornamentação e representação da fachada no século XX, podem ser percebidas com base na comparação entre o Institute for Scientifc Information (ISI) de Venturi & Scott-Brown, localizado na Filadélfia dos anos 70, e a biblioteca da Escola Técnica de Eberswalde de Herzog & De Meuron, dos anos 90.
Tanto o ISI quanto a biblioteca de Eberswalde usam o ornamento aplicado a uma simples estrutura, uma caixa. A diferença básica entre eles não está nem no ornamento nem na estrutura, mas na conexão entre os dois. O ornamento no ISI parece ser algo pensado como separado e colocado na estrutura visando iconográfica e metafóricamente comunicar algo, enquanto as imagens de Eberswalde parecem trabalhar em conjunto com a estrutura, ser inerentes à ela, e levar, no final, à desmaterialização da forma. (12)
Entretanto, é importante ressaltar que no caso do CEC, não se trata de uma impressão na superfície da caixa, mas um fachadismo com elementos tridimensionais, representado pelas placas metálicas aplicados, muito embora o artifício da comunicação através da fachada seja patente.
A caixa no CEC (Figura 08), ao contrário dos dois projetos citados que possuem uma planta em formato regular, racional, flexível, estéril, quase de herança modernista, apresenta uma forma fragmentada, dividida em duas abas curvas, formando no centro uma área quase elíptica. Tal decisão funcional comprometeu sobremaneira, tanto a integração entre os dois blocos, como a possibilidade de realização de grandes eventos em um pavilhão único. A fluidez espacial entre os dois pavilhões também foi comprometida pela localização central das áreas de carga e descarga e pátio de manobras no pavimento térreo, obrigando a criação de uma conexão do primeiro nível através de passarelas nos dois blocos que cruzam os vazios dos pavilhões e conduzem a uma praça de convivência no pavimento superior seguinte.
Aliás, esta solução de planta contraria elementos arquétipos da tipologia dos pavilhões (13) que apresentam aspectos característicos, sobretudo em relação à flexibilidade dos espaços, uma espécie de galpão modulado e livre, capaz de abrigar usos eventuais de tamanhos distintos. A explicitação da estrutura também constitui outro aspecto típico dos pavilhões de exposição, outra questão ignorada no projeto do CEC, que ocultou a lógica e os elementos da estrutura.
É possível afirmar que o projeto do CEC se aproxima de aspectos tipológicos históricos dos “shoppings centers”, edificações hermeticamente fechadas, com poucas aberturas e vedações, com uma valorização excessiva dos espaços internos e pouca integração visual com o exterior, ou seja, um volume de grandes proporções cerrado e circundado por estacionamentos por todos os lados, geralmente localizado em um via expressa. Confirma Vargas ao descrever a tipologia da arquitetura comercial.
A arquitetura do período (século XX) torna-se pobre, monótona e sem expressão, principalmente nas grandes lojas, super e hipermercados. A grande maioria dos shoppings centers é semelhante, na forma e no conteúdo. (...) Os shoppings centers nascem independentes, ignoram o lugar e marcam sua presença pela força do seu tamanho sem, no entanto, criar a diferença e o encantamento. (Grifos no original). (14)
O conceito de junkspace (espaço-lixo) cunhado por Koolhaas atestam um caráter transitório e efêmero da arquitetura contemporânea, que coadunam com algumas características do Centro de Eventos, como por exemplo, a presença das escadas rolantes, das saídas de emergências, das praças de alimentação, dos malls climatizados, ou seja, elementos arquitetônicos comuns aos edifícios que conformam os espaços de consumo e do lazer alienado.
Para Ribeiro (15), Koolhaas e outros arquitetos que se valem desta linguagem arquitetônica perecível, que caracteriza o junkspace, o fazem como forma de expressar a “lógica de rápida substituição da sociedade de consumo e da criação de ícones”, assim como para estabelecer uma postura crítica em relação à sociedade pós-moderna, de consumo ou do espetáculo.
Entretanto, não se percebe no CEC uma atitude crítica consistente diante da cidade e da arquitetura, sobretudo porque prevalece no projeto um interesse puramente formal, que se enquadra nas características da estética das “embalagens perecíveis”, favorecendo a apropriação pelo turismo e consequentemente ao consumo do espaço e da imagem turística, conforme a citação abaixo.
Trata-se de uma arquitetura que destaca o envoltório de seu conteúdo, tornando-os elementos separados, não necessariamente relacionados em termos de materiais e conformação espacial, diluindo o espaço interno em fragmentos desconectados, mobiliário, sinalização ou dispositivos eletrônicos, ao mesmo tempo em que sua imagem aglutina ambas as situações: envelope e partes interiores desagregadas. Ambas as situações tanto podem ser reflexo de sua transformação constante, já que peles leves e estruturas flexíveis são facilmente adaptáveis a diferentes situações e também desmontáveis e substituíveis, quanto podem apenas representar falsamente essa perecibilidade, através de materiais e formas fragmentados, de aparência provisória, ou ainda em construção. A perecibilidade pode ser associada ao consumo, à cultura do descartável, ao desejo e ao culto da imagem. (16)
A estrutura superficial da fachada do CEC, embora se intua que não tenha sido concebida para ser mudada ou subtraída, o modo como o edifício foi pensado e construído sugere que a sua forma (aparência) seja flexível, passível de uma troca de pele, de uma substituição da casca, enfim, sujeita a ser reenvelopada.
O caráter “perecível” da arquitetura do CEC pode ser percebido também no invólucro mural da caixa, composto por vedações de blocos e estrutura pré-moldada de concreto, sem reboco e pintado com baixo nível de acabamento, deixando transparecer uma certa displicência com o tratamento das superfícies. A impressão de inacabado é potencializada por aberturas de esquadrias dispostas aleatoriamente para solucionar problemas de ventilação e iluminação de áreas técnicas e de serviços, assim como pela interrupção das placas que sugerem as falésias na elevação leste (Figura 09).
Enfim, a produção da arquitetura local, quantitativamente representada pelas práticas privadas, subordinadas conceitualmente pelos ditames do mercado imobiliário e com poucos exemplos de edifícios públicos representativos, padece de um debate teórico mais profundo, uma vez que reproduz os “cacutes arquitetônicos” de alhures. As influências das práticas da arquitetura contemporânea internacional e nacional no âmbito local se estabelecem de forma acrítica, e como consequência, os equívocos e contradições da matriz são reproduzidos, sem atentar para aspectos específicos das condições materiais do meio local.
5. Considerações Finais
Na condição de obra pública, com impactos na tessitura urbana e metropolitana, ícone e imagem de ações e políticas públicas do Estado para incrementar uma atividade julgada como propulsora do desenvolvimento social do Ceará, o projeto do CEC carecia de estudos mais aprofundados sobre a sua inserção urbana e pressupostos arquitetônicos a serem adotados, discussões que deveriam surgir da articulação de agentes políticos e técnicos especializados.
A atividade turística pode desempenhar um papel significativo na valorização dos lugares, mas apenas na condição de que os seus benefícios econômicos, políticos e cultural-ideológicos estejam vinculados à realidade social do lugar. Dotar a cidade de infraestrutura turística significa pensar a cidade para os cidadãos, respeitando às preexistências espaciais, implementando transformações responsáveis, que são urgentes e desejáveis, pois, “a arquitetura pode estar a serviço do turismo e enfatizar o lugar, o oposto é que seria uma contradição” (17)
Neste sentido, o projeto, através do planejamento, do desenho urbano e da arquitetura, no que ele interfere nas formas produzidas e consumidas pelo e para o turismo, se não pode isoladamente reverter o atual estado de transe da cidade e da arquitetura, mas pode suscitar novas práticas socioespaciais, minimizando os efeitos negativos da sociedade do consumo sobre a produção da arquitetura e da cidade.
notas
NA
Este trabalho é uma revisão do artigo que foi apresentado e publicado originalmente nos anais do IV Colóquio Internacional sobre Comércio e Cidade: uma relação de origem, realizado em março de 2013 em Uberlândia, denominado “Cidade e Arquitetura em Transe: o Centro de Eventos do Ceará”
1
PAIVA, Ricardo A., A metrópole híbrida: o papel do turismo no processo de urbanização da Região Metropolitana de Fortaleza. Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2011.
2
(VARGAS e LISBOA, 2011, pp. 152 e 153); VARGAS, H. C. ; LISBOA, V. S. . Dinâmica Espacial dos grandes eventos no cotidiano da cidade:significados e impactos urbanos. Cadernos Metrópole (PUCSP), v. 13, p. 145-162, 2011.
3
“O Centro de Eventos do Ceará (CEC), localizado ao lado do Centro de Convenções, é o segundo maior espaço para realização de feiras e eventos do Brasil e o primeiro do Nordeste, podendo abrigar até 30 mil pessoas em um único evento. Em relação as instalações, o equipamento é considerado o mais moderno da América Latina. (...). A construção, iniciada em agosto de 2009, foi realizada pelo consórcio composto pelas construtoras Galvão Engenharia S/A e Andrade Mendonça S/A.” In: http://www.setur.ce.gov.br/CentrodeEventos/index.html.
4
BARBOSA, Renata. H., Fortaleza; arquitetura e cidade no final do século XX. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, 2006.
5
(...) “o Rio Cocó apresenta um grande potencial de se consolidar como uma paisagem infraestrutural na escala metropolitana, rompendo as barreiras entre o interior e a orla marítima, entre áreas privilegiadas e as carentes, entre o público e o privado, entre a conservação ambiental e o desenvolvimento urbano, entre o passado e o futuro de uma Cidade com novos paradigmas de urbanidade” (VARGAS, PAIVA et al., 2010, p. 13).
6
OCKMAN, 2006, p. 261; OCKMAN, J., La nueva política del espetaculo: “Bilbao y la imaginación global”, in: LASANSKY, D. Medina; MCLAREN, Brian (eds), Arquitectura y turismo. Percepción, representación y lugar. Barcelona: Gustavo Gilli, pp.261-274, 2006.
7
Memorial Descritivo do Projeto In: http://www.setur.ce.gov.br/CentrodeEventos/index.html.
8
VENTURI, Robert; BROWN, Denise Scott; IZENOUR, Steven. Aprendendo com Las Vegas. Coleção Face Norte, volume 03, Cosac Naify, São Paulo; 1ª edição, 2003.
9
MONTANER, 2001, p. 162; MONTANER, J. M., Depois do movimento moderno: arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: Gustavo Gilli, 2001.
10
(MONTANER, 2001, p. 165; Idem.
11
GONDIM, 2001:10; GONDIM, Linda Maria de Pontes. Imagem da Cidade ou Imaginário Sócio-espacial? Reflexões sobre as relações entre espaço, política e cultura, a propósito da Praia de Iracema. Revista de Ciências Sociais v.32 n. ½, Fortaleza, 2001.
12
MOREIRA, 2008, p. 96; MOREIRA, Fernando Diniz . Herzog & de Meuron and the decorate sheds of Venturi & Scott Brown/ Herzog & de Meuron e os abrigos decorados de Venturi & Scott. ARQTEXTO (UFRGS), v. 13, p. 72-91, Porto Alegre, 2008.
13
O Palácio de Cristal construído em 1851 em Hyde Park, primeira grande edificação que caracteriza a tipologia de um pavilhão de exposição demonstra a condição de flexibilidade e a racionalidade e expressão da estrutura, todas estas características necessárias à realização de eventos, assim como tantos outros que foram construídos para sediar eventos e exposições internacionais.
14
VARGAS, 2001, pp. 269 e 270; VARGAS, H. C. . Espaço Terciário. o lugar, a arquitetura e a imagem do comércio. 1. ed. São Paulo: Senac, 2001.
15
RIBEIRO, Fabíola Macêdo. Embalagens perecíveis: a efemeridade do consumo que seduz a arquitetura. In: III Colóquio Internacional de comércio e cidade, 2010, São Paulo. III colóquio Internacional de Comércio e Cidade. São Paulo: FAUUSP, 2010.
16
RIBEIRO, 2010, p. 3; Idem.
17
CASTELO. 1998; CASTELO, Roberto Martins. A cidade e o turismo. Artigo: Caderno Vida e Arte. 9 de agosto de 1998, Jornal O POVO, Fortaleza.
sobre o autor
Ricardo Alexandre Paiva possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará (1997), mestrado (2005) e doutorado (2011) em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. É Professor Adjunto de Projeto Arquitetônico do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará. Coordena o LOCAU (Laboratório de Crítica em Arquitetura, Urbanismo e Urbanização-DAU-UFC).