Este artigo pretende contribuir ao debate da cidade contemporânea no que diz respeito às formas de atuação sobre o território urbano: plano ou projeto?
Em vários momentos e em diferentes contextos, sejam eles acadêmicos ou profissionais, essa discussão toma relevância. Normalmente reduzindo os planos a atuações genéricas ou os projetos a uma visão excessivamente restritiva. Por esse motivo, pretende-se, com este artigo, reposicionar o projeto como uma ação mais aberta e, com isso, contribuir aos processos de planejamento, aproximando a ideia de projeto a de plano. A esse movimento nomeia-se “Projeto por Cenários”.
O projeto por cenários consiste em uma abordagem que estrutura o problema de projeto de maneira complexa, evidenciando os conflitos presentes no território urbano. Significa dizer que a leitura do espaço urbano não é feita com a intenção de encontrar um “espírito do lugar”, mas de mostrar, através de cenários projetivos, as diferentes visões sobre o espaço. A vantagem dessa metodologia é que o resultado final do projeto passa antes por uma conversação estratégica entre os diferentes interessados na área. Essa conversação feita na etapa de projeto e não só na etapa de problematização permite que os interessados “visualizem” através de cenários projetivos (representações visuais, desenhos, imagens, filmes) os futuros possíveis.
A perspectiva complexa no campo do projeto permite pensá-lo como uma ação menos “resolutiva”, no sentido de um caráter eficiente, e mais paradoxal (pelo conflito). A complexidade encaminha a atenção para a inserção das diferentes narrativas que se expressam sobre o lugar de projeto, incorporando as diversas facetas de composição da vida urbana. Diferentemente de uma visão simplista, em que o “problema” de projeto é resolvido a cada atrito, o projeto pela complexidade produz no atrito a própria essência da ação projetiva.
Portanto, o projeto por cenários estrutura o processo como uma ação paradoxal e não como uma ação consensual, permitindo aos processos de planejamento uma maior abertura e inserção das diferenças sociais já na etapa de construção do projeto.
O artigo se estrutura a partir dos seguintes itens: o primeiro item aborda a relação entre plano e projeto, apresentando-os como elementos complementares e não contraditórios no âmbito do planejamento urbano, embora sejam muitas vezes confundidos; o segundo item reposiciona a noção de projeto como uma ação aberta; o terceiro discute os cenários como uma visão alternativa ao processo de projeto, fugindo do modelo hegemônico linear e apresenta um exemplo de aplicação desta abordagem; no quarto item, encaminha-se a discussão dos cenários numa perspectiva epistemológica posicionando este no campo da complexidade.
Plano ou projeto, uma falsa polêmica?
Falar em plano e projeto é o mesmo que falar sobre processo e resultado. E quando esses valores foram dicotomizados mais fortemente marcado no Movimento Moderno, recaiu-se em um debate circular para responder qual das duas abordagens era mais significativa. Por um lado, o projeto dá uma resposta imediata, mas muito linear, por outro, o plano é mais amplo e mais inclusivo. Assim, o planejamento parece ter foco-no-problema e o projeto, foco-na-solução.
O modelo de urbanização por projeto teve sua expressão nos modelos das cidades ideais ao longo da história e seu auge no início do século XX, expresso principalmente por Le Corbusier. Esses projetos partiam de um modelo mental que compreendia a cidade como um organismo único, passível de ser projetado como uma totalidade. O problema não é só de concepção, mas de identificação de área de atuação. A urbanização das cidades pelo projeto encaminha o problema para a área de Arquitetura e Urbanismo – leia-se, projeto.
Pautados na limitação dessa abordagem e dos diversos fracassos desses modelos ideais, o projeto perdeu força para o plano, que passou a ter foco na identificação do problema, mais do que uma resposta por projeto. Quando a perspectiva se transferiu para o processo, transferiu também para diferentes áreas de domínio, resultando em uma redução da atuação dos arquitetos. O processo de urbanização ganhou força nas mãos dos sociólogos, economistas, antropólogos, filósofos e geógrafos, como principais protagonistas.
Se o plano foi o grande trunfo dos processos de urbanização ao longo de meados do século XX, não resistiram aos destroços das cidades pós-guerra, e dos excessos de sub-habitação e das cidades informais que configuram o panorama mundial. Não resistiram, pois as cidades precisavam de respostas rápidas de redesenho das cidades destruídas.
Retorna, então, o projeto. Nas mãos de Leon e Robert Krier, Aldo Rossi, Kevin Lynch e Gordon Cullen, para concentrar-se nos principais, a cidade passou a ser vista como um problema de projeto. No entanto, diferentemente do modelo de Le Corbusier, as propostas não focam mais na totalidade da cidade, mas na escala do cotidiano.
Se a polêmica concentra-se na dicotomia entre plano (foco-no-problema) x projeto (foco-na-solução), também se concentra na disputa entre áreas de conhecimento. Longe de ser uma discussão fácil de enfrentar, a academia tem proposto duas respostas a essa polêmica: linhas de pesquisa em planejamento urbano (processos e planos) e linhas de pesquisa em desenho urbano (produtos e projetos).
Essa polêmica tem que ser construída em outra ordem.
Design, projeto ou plano?
Talvez a saída dessa polêmica seja recuperar o termo design em inglês. O termo design é um conceito rico em significação e, portanto, problemático. Neste artigo, utiliza-se a concepção de Flusser (1999) para posicionar design como projeto e como plano, ou seja, no tensionamento entre foco-no-problema e foco-na-solução.
Diferentemente da clássica distinção entre forma e conteúdo, Flusser faz uma distinção entre matéria e forma: como matéria, significa o mundo amorfo que ainda não recebeu uma configuração; e como forma, aquilo que configura. Assim, o design in-forma a matéria. Por isso, pode-se defini-lo como sendo um dos “métodos para dar forma à matéria e para fazer que essa apareça como aparece, e não de outro modo” (1). Nessa perspectiva, o design opera sobre o espaço na construção das formas dos objetos ao longo do tempo.
Na tentativa de localizar a razão de ser do design, Cross (2) propõe uma posição entre o universo da ciência e o das artes (humanidades). Enquanto a ciência tem seu foco no mundo natural; as humanidades, na experiência humana; o Design concentrar-se-ia no mundo artificial. A cada área corresponderia uma maneira de pesquisar a realidade. Para o Design, os métodos se constituem como modelagem, como formação de padrões e processos de sínteses. Portanto, se existe para essas culturas uma maneira científica ou artística de ser, existiria também uma maneira designerly para a atividade de design – designerly ways of knowing.
Ao utilizar esse conceito (designerly) para o projeto na escala urbana, a realidade da cidade pode ser compreendida não só pelos processos sociais e econômicos, mas por um processo de experimentação projetual (tentativa e erro) que reconhece no projeto uma ação efetiva de leitura do ambiente. É através do desenho nas suas mais diversas tecnologias que essa experimentação ganha escopo.
A essa primeira “construção” da realidade que é feita através dos mais diversos registros gráficos e visuais, encaminha-se o processo para a etapa de generalização obtida pelos processos de estruturação de padrões. Esses padrões expressam-se como “retratos” oriundos de uma realidade específica que ganham relevância em extensão para outras situações similares de aplicação.
A etapa de síntese finaliza esse processo projetual, quando designa para um determinado problema urbano uma forma. Ou seja, quando através da estruturação de um pensamento projetual (designerly ways of knowing) sintetiza uma resposta ao problema posto inicialmente na etapa de modelagem. Essa etapa de projeto in-forma a matéria urbana, dando uma nova ressignificação.
A essas propriedades projetuais, resultantes de um modelo mental construído em áreas que tem por formação o projeto (urbanismo, arquitetura, design) é o que Cross nomeia de designerly ways of knowing.
Cross define essa habilidade do design como sendo a capacidade de “resolução de problemas mal definidos, adotando uma solução focada em estratégias cognitivas, empregando um pensamento abdutivo ou aposicional e usando meios de comunicação não-verbal de modelagem” (3). Essa perspectiva de construção de um problema não fixo, a partir de uma situação aposicional, permite que a busca pela sua resolução ocorra de maneira errática. Ou seja, pela construção simultânea de soluções possíveis, operando pela contradição e não pelas certezas. Nessa mesma direção estão Lawson & Dorst (4).
Para esses autores, essa “maneira de pensar” não é “a” maneira, mas “as”. “É um misto de racionalidade, pensamento analítico e criatividade” (5). No entanto, esse misto constrói uma maneira própria de análise que compreende na “solução” a base do problema, diferentemente de uma abordagem científica em que o “problema” é exaustivamente analisado. Assim, o problema é assumidamente um problema caótico, se resolvendo nas tentativas de solucioná-lo.
Portanto, pela ótica do Design como uma disciplina que tem seu foco na solução, o problema é sempre mal posto e móvel. Nesse sentido, o design pode e deve operar sobre objetos em contínua transformação e em contextos complexos, no qual o problema não está bem estruturado. Esse é o caso dos territórios urbanos.
Assim, os territórios urbanos, objeto de estudo de diversas áreas, ganham através do design a possibilidade de ser revisitado como um sistema projetável. E como projeto, leia-se, design, e mais ainda, plano estratégico, os territórios devem sofrer uma abordagem de intervenção em um espaço determinado ao longo de um tempo visionário. Essa perspectiva dinâmica que os territórios exigem vem ao encontro da fluidez dos processos sociais presentes na atual sociedade.
Os cenários como construção do problema na busca por soluções
Dada a complexidade e a velocidade das transformações sociais ocorridas nos territórios urbanos, são quase impraticáveis as formas de planejamento tradicional ocorridas através dos processos de implementação de planos que regulamentam o crescimento das cidades. A limitação de um desenvolvimento urbano focado somente na implementação de planos restringe em muito o avanço socioespacial das cidades e o consequente desenvolvimento de comunidades.
Segundo Güell (6), para a implementação de uma visão estratégica dos territórios é fundamental o desenvolvimento de uma “série de cenários de futuro que esbocem a evolução inercial da cidade frente a diversas opções de comportamento do entorno”. Podem-se compreender esses cenários como uma diversidade de possibilidades futuras cujas ocorrências ainda não foram identificadas como certas.
Operar com cenários é projetar futuros imaginários expressos através de histórias plausíveis nas quais se narram sequências futuras de ações e de suas consequências. Tal procedimento constitui-se como uma técnica de acerto e erro em que o projetista pode operar sobre os cenários com ocorrência mais plausíveis. O projeto por cenários permite a ampliação das discussões, incluindo diferentes atores e incluindo diversas comunidades em um processo mais aberto.
Para Secchi (7), cenários e estratégias “são lugares conceituais nos quais é construída a comparação entre uma multiplicidade de racionalidades fortes, em parcial ou radical oposição entre si”, e afirma ainda que “o mundo contemporâneo não é marcado pela falta de um princípio de racionalidade, mas pelo surgimento de múltiplas racionalidades afirmadas, de modo irredutível, pelos respectivos protagonistas”.
Com o intuito de exemplificar uma ação de projeto por cenários, utiliza-se neste artigo uma experiência acadêmica de projeto por cenários feita para o Bairro da Lapa na cidade do Rio de Janeiro (8).
A construção de cenários recupera das percepções e análises da área em foco informações suficientes para que se identifiquem os principais conflitos e interesses. Esses conflitos são representados em dois eixos (X e Y). Nas extremidades de cada eixo, posiciona-se uma palavra que represente esse conflito de forma polarizada.
No caso da Lapa, foram identificados dois tipos de conflito: um primeiro, que diz respeito à valorização da terra pela especulação imobiliária e, por oposição, o interesse da manutenção do patrimônio histórico e cultural presente na área; um segundo, que diz respeito ao tipo de utilização do lugar representado pela dinâmica noturna gerada pela boemia carioca em oposição à vida diurna relacionada a uma vida cotidiana. No eixo X, foi representado o conflito “valorização de troca”, utilizando as palavras “especulação” e, no outro extremo, “patrimônio”; no eixo Y, foi representado o conflito “valorização de uso”, utilizando as palavras “boemia” e, no outro extremo, “cotidiano”.
Os cenários ocorrem do cruzamento dessas extremidades. Cada cenário é representado por um “nome”, um “quadro de imagens fotográficas” e uma “breve narrativa jornalística”. Como o objetivo é construir um futuro factível, crível, não se utiliza esquemas, nem desenhos ou diagramas pois essas representações falseiam demasiadamente a “realidade proposta” pelo cenário. As fotografias tem esse poder de construir uma verossimilhança com a realidade, favorecendo a veracidade construída pela narrativa jornalística.
No entanto, as fotografias devem ser sugestivas o suficiente para construir um “real”, mas não podem ser um “retrato” da cena. O retrato direciona excessivamente a um caminho, podendo restringir demais as opções de projeto. Recursos como fotomontagens ou filmes podem também conduzir ao mesmo problema. A cena futura fica nesse “entre” imagens e não “na” imagem, por isso as fotomontagens não são utilizadas nessa abordagem. Elas retratam demasiadamente a cena. A seguir, os cenários desenvolvidos para a Lapa com a ajuda dos alunos da ESDI.
Do cruzamento de BOEMIA e ESPECULAÇÃO resultou o cenário futuro “New Lapa”: “O Rio de Janeiro investiu muito em turismo, aproveitando toda a infraestrutura dos Jogos Olímpicos de 2016. Esse crescimento econômico tem sua manifestação evidente nas atuais ruas da Lapa. A Lapa que outrora sediava pequenos bares e casas de shows conta, hoje, com mais de 80% de sua ocupação por grandes Casas de Espetáculos de 8 a 10 pavimentos de pura diversão”.
Do cruzamento de BOEMIA e PATRIMÔNIO resultou o cenário futuro “Lapa 25º”: “O Rio de Janeiro comemora a aprovação da nova Lei de Uso do Solo que garante a manutenção do patrimônio histórico no Bairro da Lapa, freando a especulação e garantindo a manutenção da arquitetura de cunho histórico. A Secretaria Municipal de Turismo tem feito um belo trabalho de conscientização do turista em relação ao seu comportamento frente ao Patrimônio Histórico, no sentido da não degradação do ambiente urbano, principalmente na Lapa”.
Do cruzamento de ESPECULAÇÃO e COTIDIANO resultou o cenário futuro “Lapa Garden”: “O Rio de Janeiro tem feito grandes avanços no que diz respeito ao aproveitamento dos investimentos externos obtidos para a realização dos Jogos Olímpicos de 2016. O velho Rio de Janeiro expresso, principalmente na Lapa, dá lugar hoje a luxuosíssimos condomínios verticais. Essa nova paisagem valorizou em muito a cidade, recuperando uma antiga área degradada”.
Do cruzamento de PATRIMÔNIO e COTIDIANO resultou o cenário futuro “Lapa Arte”: “O Rio de Janeiro depois de ter sofrido com a Lei Seca e com as consequentes reclamações dos moradores na Lapa sobre a noite boemia carioca, agora respira novos ares com o avanço na vida diurna através dos ateliers de artistas, restaurantes de comida típica, com as feiras de artesanato e antiguidades. A Lapa mudou de cara sem ter que abandonar a arquitetura antiga que está sendo revitalizada com apoio do projeto Monumenta”.
Os propósitos da utilização dos cenários são os mais diversos, no entanto, aplicam-se em geral, em situações de difícil previsão e em contextos complexos, favorecendo a participação de diferentes comunidades no processo de planejamento. Os cenários lidam com a incerteza do ambiente futuro e não com a previsibilidade evidente. Para Van Der Heijden (9), os cenários funcionam em situações em que exista uma incerteza estrutural na qual seja “possível desenvolver uma “teoria de processos” de por que as coisas acontecem da forma que acontecem” (10). É importante construir uma “maneira de olhar” o problema-solução que recupere as características designerly de enfrentar um problema urbano, encaminhando para uma visão complexa do problema.
Cenários em uma perspectiva epistemológica
O projeto por cenários pode contribuir aos processos de planejamento resgatando uma dimensão de complexidade. Pensar a cidade através de cenários permite que se “projete planejando” ou que se “planeje projetando”. Mas antes de avançar nessa tese em uma perspectiva de complexidade, é necessário descolar a noção de projeto dos paradigmas positivista e fenomenológico. Para isso, construímos uma lógica de leitura que norteie a reflexão sobre o processo de projeto que está marcada pelas seguintes figuras: anterioridade, operando antecipadamente a resolução de problemas em uma perspectiva de otimização dos resultados; interioridade, construindo ao longo do processo uma maneira de refletir dentro da própria ação; e exterioridade, construindo um processo aberto, em uma perspectiva de sistema.
Essas três perspectivas constroem o problema seja pela definição de uma anterioridade ao corpus em estudo; seja pela ótica de uma interioridade; ou pela exterioridade como interferência ao corpus. Aqui, estão representadas por Herbert Simon (11), Donald Schön (12), Edgar Morin (13) e Niklas Luhmann (14).
A concepção de projeto em Simon remete a uma noção de que os objetos artificiais efetivam um propósito ou resolvem um objetivo, quando estabelecem uma relação de três termos: “o propósito ou objetivo, o caráter do artefato e o ambiente em que ele funciona” (15). Dessa tríade de constituição dos artefatos, Simon propõe que se pense uma relação dual: “a estrutura do próprio artefato e o ambiente em que funciona”. O objetivo não desaparece. Nessa relação dual, ele é o próprio sentido da relação.
Nessa construção, o caráter funcionalista é evidente: o objetivo serve para atender determinados requisitos que são pré-configurados pelo ambiente externo em relação ao próprio objeto. Assim, artefato e ambiente respondem a uma ação linear de eficiência marcada na esfera do objetivo. Os mesmos princípios que sustentaram a ideologia dos CIAM e da carta de Atenas.
Há outro caminho no processo de projeto que é a própria indefinição a priori dos resultados. Muito mais do que realização de objetivos, o projeto é processo, processo de imaginação. Mas não é nisso que Simon acredita. Parece haver um equívoco de base, fundamental para a compreensão de um processo de projeto. Eliminar do processo de projeto a imprecisão, o vago e o intuitivo, é não compreender que se o projeto fosse organizado por uma lógica já sabida anteriormente, não haveria nunca possibilidade de gerar inovação em relação ao futuro.
Diferentemente de Simon, em uma perspectiva mais próxima a Fenomenologia, Schön acredita que o processo de projeto não pode ser concebido de fora, em um movimento de anterioridade, mas na própria construção do problema com foco-na-solução, ou seja, na interioridade do processo projetual. Próximos a essa perspectiva fenomenológica estavam Krier, Cullen, Rossi e Lynch.
Schön (16) concentra seu foco no processo de projeto já posicionando como uma situação problemática, ou seja, o “problema da definição de problemas não é bem-definido”. Com isso, quer dizer que a primeira tarefa que devemos enfrentar é essa construção do problema de projeto que se apresenta ao longo dos processos de criação.
Nos processos de projeto, há uma dimensão de incerteza que é definido quase como uma “caixa preta” de difícil acesso às racionalidades e aos procedimentos, as vezes nomeada de “talento”. Schön define esse “talento” como um tipo de competência que é originária de situações únicas, incertas e conflituosas. Isso significa dizer que esse tipo de conhecimento não depende da nossa capacidade de descrever o que sabemos fazer, tornando consciente o que nossas ações revelam. Para ele, “pensar o que estou fazendo’, não implica ‘ao mesmo tempo, pensar o que fazer e fazê-lo” (17).
Aqui vemos claramente uma posição por uma interioridade do processo como foco-na-solução, diferentemente de Simon com sua anterioridade, com foco-no-problema. Não só a abordagem muda, mas toda uma concepção de conhecimento que suporta essa diferenciação.
Em Schön, o problema é um pretexto no qual deve ser recorrigido a partir das reflexões oriundas do próprio andamento do processo, construindo um conhecimento-na-ação, portanto, dentro, na sua interioridade (visão fenomenológica). Esse conhecer-na-ação é, para Schön, um tipo de conhecimento que é revelado pela própria execução da ação, no momento da performance – uma reflexão-na-ação. Esse é um conceito caro a Schön. Como base de toda sua teoria, a reflexão-na-ação é um tipo de conhecimento que opera sobre tentativa e erro.
Se a crítica que recaía sobre Simon era o excesso de previsão em relação ao produto esperado, em Schön a critica recai sobre o excesso de apaixonamento pelo processo enquanto experiência projetiva de autorreflexão, expressa através do seu conceito de reflexão-na-ação. Em nenhum momento Schön fala sobre o processo de coleta de informações e sobre a operação dessas informações em elementos do processo de projeto e as possíveis interferências oriundas dos processos sociais expressos nas comunidades locais.
Tradicionalmente, os processos de projeto encaminhavam a resolução do problema para uma única solução expressa em uma síntese projetual. Esse tipo de análise que conduz a um único caminho perde de vista as interferências externas que ocorrem ao longo de todo o processo, denunciando outras possibilidades e reduzindo, em muito, o papel do projeto nas ações de planejamento. Pensar o futuro não significa adivinhá-lo, mas pensá-lo dentro de um quadro complexo e sistêmico. Pensar por cenários parece ser essa alternativa.
Considerando que o processo de planejamento da cidade possa ser pensado a partir do projeto por cenários, acredita-se ser necessário identificar em que termos esse processo possa se constituir. Uma possibilidade de se avançar nessa discussão, contribuindo com a teoria dos cenários, talvez seja pela teoria da complexidade em Morin e em Luhmann.
Para Morin (18) estratégia é ação; e define estratégia como não sendo um “programa determinado que basta aplicar sem variação no tempo”. Mas ao contrário, a estratégia possibilita, através de uma visão inicial, “prever certo número de cenários para a ação, cenários que poderão ser modificados segundo as informações que vão chegar ao curso da ação e segundo os acasos que vão se suceder e perturbar a ação”. Com Morin, aponta-se aqui para um sistema aberto e em constante transformação; diferentemente de Simon, nem sempre determinado, pois é aberto ao acaso e ao erro; e ao contrário de Schön, a ação não só está aberta ao acaso, como deve estar em constante atrito com as perturbações externas.
A questão é a seguinte: há na base da estratégia por cenários um sistema, mas não um sistema fechado. Um sistema que a todo o momento pode ser modificado, perturbado por acasos e não previstos na base do próprio sistema. Para ele, sistema “é uma associação combinatória de elementos diferentes” (19). A partir dessas considerações apontadas anteriormente, pode-se afirmar que o território urbano é um objeto complexo que deve ser focado como um sistema aberto de maneira a ser revisado em qualquer momento através da construção de múltiplos cenários. Na abordagem de Luhmann para uma Teoria dos Sistemas, a ação não pode ser vista independente desse sistema (20). Qualquer ação em qualquer âmbito só pode ser descrita sob a ótica do sistema.
Essa opção teórica por Morin e Luhmann recupera, para a área de planejamento urbano, uma perspectiva mais aberta e flexível do projeto. A perspectiva aqui proposta compreende a realidade como algo inapreensível na sua totalidade, afirmando sempre que a apreensão do objeto de estudo é sempre aproximada e nunca completa. O projeto por cenários ao explicitar as diferenças presentes no território urbano apresenta o locus do projeto como um problema que só pode ser pensado na sua complexidade sistêmica.
Considerações finais
A partir dessas reflexões sobre o papel do Projeto nos processos de Planejamento, pode-se concluir que essa abordagem do “projeto por cenários” recupera a dimensão processual que sempre esteve presente na dinâmica do Planejamento, reposicionando o Projeto de forma menos definitiva e restritiva e mais operacional; portanto, o Projeto passa a ser meio e não só um fim em si mesmo. Essa posição pode se expressar através dos seguintes pressupostos que nortearam este artigo:
(i) considerar que o território não é o locus fixo da ação, mas é o resultado temporário, de um processo de territorialização-desterritorialização, sempre em construção. Portanto não é objeto, mas ação;
(ii) pensar o território como desdobramento em territórios múltiplos e sobrepostos, em temporalidades e espacialidades diversas;
(iii) conceber a identidade não como fixa e totalizante, mas como um palimpsesto de sobreposições de imagens contraditórias e conflitivas que expressam as diferenças identitárias. Portanto, fala-se identidade[S] e não identidade;
(iv) considerar que a ação de projeto permite um tipo de pensamento sobre o território que especula, simula, modela alternativas espaçotemporais, permitindo uma certa visualização da situação presente nas suas alternativas contraditórias: é uma “maneira designerly de pensamento;
(v) modelar o território em uma perspectiva de futuro por uma imagem utópica que não se deixe fechar em um modelo da forma espacial e nem se perca em um modelo de processo temporal, mas busque uma utopia dialética conformada como uma utopia espaçotemporal;
(vi) conceber o ato de projeto sobre o território como um ato complexo;
(vii) buscar estratégias de apreensão do território que, fugindo dos modelos de diagnóstico do organismo-cidade, produza uma cartografia dos atos errantes, construindo novos sentidos na cidade.
Este artigo buscou trazer uma discussão referente à inserção do Projeto no Processo de Planejamento. Para isso, foi reposicionado o Projeto como uma ação aberta e não restritiva, o qual nomeou-se “Projeto por Cenários”. A preocupação nesta abordagem é apresentar um ferramental teórico-metodológico que seja capaz de operar sobre a realidade de maneira flexível sem reduzir as alternativas de projeto, nem tampouco simplificar a complexidade dos espaços urbanos. A alternativa pela compreensão da realidade expressa em imagens faz com que os projetistas operem, através da ação de projeto, com a mesma matéria prima que utilizarão para representar o próprio projeto urbano. Acredita-se que esta perspectiva de projeto permite desafiar e deslocar as práticas tradicionais de elaboração de projeto urbano com base nos preceitos funcionalistas, estimulando o projetista a olhar de forma criativa as possibilidades de transformação da realidade urbana. Essa perspectiva tem sido desenvolvida no âmbito do ensino da arquitetura e na pesquisa dentro de um programa de pós-graduação em planejamento urbano, e espera-se poder contribuir na formação de novos profissionais seja para a atuação no mercado, seja para atuar na própria academia.
notas
1
FLUSSER, Vilém. Filosofía del diseño. Madrid: Editorial Sintesis, 1999:33.
2
CROSS, Nigel. Designerly Ways of Knowing. London: Springer-Verlag, 2010:02.
3
Idem, 2010:vi.
4
LAWSON, Bryan ; DORST, Kees. Design Expertise. Oxford: Elsevier, 2009.
5
Idem, 2009, p. 28.
6
GÜELL, Jose. Planificación estratégica de ciudades. Barcelona: Gustavo Gili, 1997. P. 179.
7
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. P. 178.
8
WORKSHOP ESDI 2010. Esse material sobre “projeto por cenários” foi produzido em um workshop na Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ em dezembro de 2010 com alunos do Mestrado em Design. Mais detalhes sobre essa experiência ver REYES, Paulo. Tudo o que não invento é falso: por uma epistemologia da imaginação criadora no design. Strategic Design Research Journal, v. 3, p. 01-12, 2010. REYES, Paulo. Construção de cenários no design: o papel da imagem e do tempo. In: Anais do 9º congresso brasileiro de pesquisa e desenvolvimento em design. São Paulo: PPG em Design Anhembi Morumbi, 2010. v. 01, p. 01-14.
9
VAN DER HEIJDEN, Kees. Planejamento por cenários: a arte da conversação estratégica. Porto Alegre: Bookman, 2009. P. 133.
10
Idem, p. 136.
11
SIMON, Herbert. As Ciências do Artificial. Lisboa: Editora Armênio Amado, 1981.
12
SCHÖN, Donald. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000.
13
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005.
14
LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
15
SIMON, Herbert. Op. cit., p. 28.
16
SCHÖN, Donald. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000. P. 16.
17
SCHÖN, Donald. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000. P. 29.
18
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005. P 79.
19
Idem, p. 19.
20
LUHMANN, Niklas. Op. cit.
sobre o autor
Paulo Reyes possui graduação em Arquitetura e Urbanismo – UniRitter, Especialização em Design Estratégico – Unisinos, Mestrado em Planejamento Urbano – UnB e Doutorado em Ciências da Comunicação – Unisinos e Universidade Autonoma de Barcelona em um doutorado sanduiche. É professor adjunto da Faculdade de Arquitetura da UFRGS e pesquisador do PROPUR – UFRGS. É consultor ad-hoc da CAPES e da FAPERGS.