L’Isola Nascosta, a Ilha Oculta, foi um projeto apresentado ao workshop WAVe 2011, Workshop di Architettura a Venezia, promovido pelo Istituto Universitario di Architettura di Venezia (IUAV) que, em 2011, completou sua décima edição. Foram 30 workshops, dirigidos por 30 arquitetos convidados, de várias partes do mundo, que durante três semanas mobilizaram um contingente de quase duas mil pessoas, entre estudantes e assistentes, além dos diretores dos estúdios, numa atividade que se nutria da atmosfera dessa cidade singular e propunha ideias para sua conservação e revitalização.
Pela importância desta edição histórica, todos os estúdios de projeto trabalharam sob o tema “Urban Regeneration”. Tendo como foco Veneza e o Vêneto; as áreas prioritárias de intervenção foram definidas em uma operação conjunta entre a Universidade e as administrações municipais de Veneza e da região. As indicações de áreas e temas, aos arquitetos convidados, eram apenas referenciais e serviram de base para que os estúdios pudessem escolher livremente os que mais lhes conviessem e, a partir daí, problematizar aspectos contemporâneos de uma intervenção arquitetônica na cidade.
Entre os convidados dessa edição, estavam, entre outros, o alemão Hans Koollof, que trabalhou sobre tipologias residenciais, retomando sua experiência histórica; o arquiteto italiano Italo Rota, que propôs um estúdio para a criação de mausoléus para personagens do Oriente contemporâneo; o africano Francis Keré e, ainda, o japonês Satoshi Okada, o colombiano Giancarlo Mazanti e alguns importantes arquitetos italianos contemporâneos, como Marco Navarra e os revolucionários do grupo Archizoom, para ficarmos em alguns nomes.
Repensando esse pedaço quase impossível de território conquistado durante mais de mil de anos e ainda hoje em expansão, a singularidade das propostas de estrangeiros e locais mostrou o perpétuo embate que vive um sítio histórico com a dimensão cultural de Veneza, entre sua sobrevivência como espaço notável da civilização e lugar onde se vive.
Não sei se existe outro lugar no mundo que deva conviver com tamanho desequilíbrio em seus números. Veneza conta com aproximadamente 50 mil habitantes fixos, e recebe anualmente 20 milhões de turistas que, em sua maioria, ficam na cidade em média por sete horas. Pode-se imaginar o esforço infraestrutural que se dispende, para que a máquina do turismo cultural não entre em colapso, mas, talvez. ainda mais importante, para que os tesouros do patrimônio arquitetônico sobrevivam com a dignidade que se espera de bens tão vultosos.
Mas Veneza não é só o antigo, ou o histórico. Pode-se falar também na Veneza moderna ou contemporânea, e isso inclui não apenas as novas edificações, mas também novos pedaços de território, como uma das ilhas que escolhemos para trabalhar, Sacca San Biagio. Na verdade, estamos falando de outra Veneza, a Giudecca, um composto de ilhas que se acoplam linearmente, formando um arquipélago separado de Veneza por 300 metros, pelo canal que leva seu nome, e que sempre viveu como sua coadjuvante.
Foi justamente nessa outra Veneza que decidimos trabalhar: as ilhas de Sacca Fisola e Sacca San Biagio - esta em especial -, que formam uma das cabeceiras da Giudecca, justamente onde esta se aproxima do continente e que, pelo histórico da ocupação e localização marginal, surgem como áreas à espera de transformação. Dentro das perspectivas de intervenção, e considerando uma visão crítica da cidade histórica, decidi propor à cidade um projeto nessas novas áreas, ou seja, aquelas que se estruturam como suporte do sítio antigo. De outro modo, considerando a vitalidade da laguna como área passível de extensão do arquipélago, nosso objetivo foi trabalhar sobre operações que vitalizassem o contorno da cidade histórica, ampliando os programas de uso cotidiano, recuperando territórios subutilizados e renovando aspectos da infraestrutura de apoio. Neste caso, falamos do lixo, recuperação ambiental e novas arquiteturas infraestruturais, como as de transposição e conexão entre ilhas.
L’Isola Nascosta: a história de uma escolha
A escolha de um sítio não histórico para o workshop representava, assim, a possibilidade de se trabalhar em seu contorno estrutural. Mas, ainda mais, ao elegermos trabalhar sobre a ilha de Sacca San Biagio, que, por quase três décadas, serviu de depósito do lixo veneziano, tínhamos também a possibilidade de propor uma nova alternativa para essa rede infraestrutural, além da recuperação da área em si.
Para se compreender melhor esse território, Sacca San Biagio é uma ilha artificial, como são as Saccas, e foi construída entre as décadas de 1930 e 1950, pela sedimentação de material retirado das escavações dos canais de navegação. Destaque-se que a laguna de Veneza é surpreendentemente rasa, com locais em que a profundidade chega à média de um metro. A navegação se dá, portanto, em canais naturais ou escavados, que são delimitados por estruturas de orientação às embarcações. O posicionamento de Sacca San Biagio era estratégico, encerrando a cabeceira do arquipélago da Giudecca, e desta se distanciava 80 metros, demonstrando, desde sua criação, a vontade de que se localizasse com distância das demais ilhas. A ilha de Sacca Fisola era a que lhe fazia frente.
Além dos compostos das escavações, a ilha passou a receber também o lixo coletado em Veneza, e, em 1973, foi ali instalado um incinerador, que funcionou até 1985. Sua condição como depósito de lixo fez que fosse rapidamente estigmatizada, o que a levou a ganhar o nome, em vêneto, de Ìxoła de łe Scoasse, ilha do lixo. É importante observar que, embora afastada da cidade histórica, dentro do que se possa considerar distante nesse arquipélago, a ilha era bastante próxima da Giudecca, e, entre outras razões, a existência do incinerador, especialmente, aumentava seu isolamento. Uma dessas razões, por exemplo, foi o fato de se observar que o número de casos de câncer nas imediações da ilha era o dobro do observado na cidade histórica, o que se supunha ser devido ao incinerador. A partir da desativação do equipamento e da transferência do sistema de processamento de lixo para o continente, na década de 1990, a ilha foi liberada do uso e passou a sofrer um processo de descontaminação, que é a condição em que se encontra até hoje.
O processo de escolha de nosso objeto de trabalho começou com uma pesquisa sobre o mapa de Veneza, que fiz em conjunto com Marcos Acayaba, que me antecedera, no ano anterior, como convidado brasileiro do WAVe, para prospectar possíveis áreas de intervenção. O conhecimento que eu tinha de Veneza, como viajante ou turista de olhar educado, não era suficiente para dominar seu território, ainda mais esses, aonde não se pode chegar e ao nos debruçarmos sobre o mapa outra realidade se apresentou. Desapareceram os lugares e as imagens, e, em seu lugar, o que restava eram distâncias e dimensões. Localizar essa estranha ilha, vazia, isolada na cabeceira do arquipélago da Giudecca, foi uma grande surpresa e, ao pesquisar sua história, descobrir que se tratava de uma antiga ilha contaminada em recuperação, encerrou o processo de decisão. O que veio depois foi a configuração de uma hipótese de intervenção e um projeto didático, que, após iniciarmos os trabalhos, foi se afinando com novas hipóteses, até os desenhos finais. Segue-se o texto oficial de apresentação do estúdio:
Texto-conceito: L’Isola Nascosta/A ilha oculta
Sob a liberdade de um olhar estrangeiro, vejo Veneza e suas ilhas como uma cidade a ser completada. Há pouca terra, muita água, mas territórios possíveis entre terra e água. Territórios que, por vezes, só descobrimos nos mapas. Talvez seja esse o encanto e o drama de se olhar de fora: estar de passagem e ser livre para enxergar transformação, onde tudo parece ter sempre existido. O workshop que proponho procura pensar um desses territórios, pedaço de terra esquecida, cuja breve história a estigmatizou como um não lugar: la Ìxoła de łe Scoasse.
Concretamente, parto da proposta para um Complexo Esportivo em Sacca Fisola, buscando não apenas capacitar essa ilha, pouco presente no imaginário convencional da cidade, mas, mais do que isso, relacioná-la com sua vizinha, a antiga ilha do lixo veneziano, que, por muitos anos, teve de ser negada, como território proscrito, mas que agora, com seu processo de recuperação, deverá fazer parte de uma nova geografia no conjunto das ilhas.
Para o workshop, adotaremos como ponto de partida sua possibilidade de utilização em futuro breve, considerando as técnicas conhecidas para a recuperação de áreas semelhantes. Como referência imediata, podemos citar a transformação do maior depósito de lixo do mundo, o Fresh Kills landfill, de Nova York , que funcionou até o ano de 2001 e hoje se apresenta como uma área modelo de recuperação ambiental. Fresh Kills será um parque três vezes maior que o Central Park, e sua recuperação foi possível por meio de estratégias técnicas, que asseguraram o controle da emissão do gás metano através de canais de vazão, o escoamento de líquidos, etc. O restante é recuperação e monitoramento, ao longo do tempo.
A transformação de um território como Sacca San Biagio em parte da cidade é a proposta deste workshop, para uma Veneza daqui dez ou vinte anos, prazo em que essa área poderá estar disponível para ser usada. E, mais ainda, como arquitetura, redesenhando a paisagem. Afinal, nada em Veneza pertence à natureza. Tudo é engenho e conquista.
Refazer Sacca San Biagio também representa redesenhar a cabeceira desse conjunto de ilhas tão próximo a Veneza. Sacca Fisola mais Sacca San Biagio devem formar um triângulo, um contínuo separado por um canal, cuja extremidade deve se transformar numa sequência, e não num fim. O programa prevê um complexo esportivo e housing, mas podemos começar pela pergunta: qual poderá ser a arquitetura possível, para alinhavar as duas ilhas, transformando os usos como complementares?
Finalmente, proponho para o workshop a exploração de duas dimensões possíveis de uma intervenção, além de uma expectativa ambiental futura. A primeira dimensão é a de se pensar os territórios como complementares, o que implica a necessária recuperação de Sacca San Biagio. A segunda dimensão é das arquiteturas: quais equipamentos construir em cada lado e na transposição?
Um projeto para o lixo de Veneza
O conhecimento da história das ilhas de Sacca San Biagio e Sacca Fisola não foram suficientes para que todas as decisões fossem tomadas desde o princípio. A visita ao sítio antes do início dos trabalhos revelou-nos o estado da arte da infraestrutura de coleta e processamento atual do lixo em Veneza, que, após o término da utilização da ilha de Sacca San Biagio como depósito, passou a fazer uso do canal que a separava de Sacca Fisola, como uma doca para as barcas de coleta. Trata-se, como dissemos, de um dos mais largos canais de Veneza, com 80 metros de largura, que fica totalmente dominado por essa estrutura, que envolve mais de 170 embarcações. Após coletado, o lixo é estocado em grandes barcaças que ancoram ao lado da ilha, e dali é transportado ao continente para processamento.
Toda essa estrutura, gerenciada pela empresa Vesta, faz da cabeceira desse aglomerado de ilhas uma área de anulação territorial, impedindo a correta utilização de Sacca Fisola como housing ou lazer, e a futura utilização da própria ilha de Sacca San Biagio, depois de descontaminada, como parque. Para a viabilização de nosso estúdio nos termos que havíamos proposto foi, contudo, necessário um projeto de partida que repensasse o sistema do lixo, elaborado pela equipe de professores, a partir do qual os projetos se desenvolveram.
A partir de um estudo minucioso da atual operação de coleta, transporte e processamento do lixo, propusemos uma nova estrutura, cuja principal decisão foi a criação de uma ilha-plataforma flutuante e navegável, situada a meio caminho entre Veneza e o continente, mais especificamente a usina de Fusina, para onde transferiríamos toda a estrutura que hoje ocupa o entorno das ilhas. Essa ilha-plataforma comportaria construções para as áreas administrativas da empresa gestora do sistema, espaço de ancoragem das barcaças de armazenamento e também espaço de ancoragem de todas as barcas que compõem o sistema de coleta. Com um desenho simples, localizamos essa nova ilha-plataforma num local seguro para as embarcações que cruzam esse setor do canal, e liberamos as ilhas, canal incluso, para o desenvolvimento do projeto. Agora tínhamos três territórios: Ilha - canal – ilha, sobre os quais iniciamos os projetos.
3 territórios + 1
Se precisássemos de um pretexto para as hipóteses de intervenção, este seria a recuperação ambiental de Sacca San Biagio, a ex-ilha de lixo de Veneza, que, a partir desta operação, apresentar-se-ia à cidade como seu novo território. Considerar essa ilha como ambientalmente recuperada, apresentando-se a Veneza como um parque, foi também um modo de entendê-la como um contraponto à cidade desenhada pela história, pois, embora seja uma ilha inventada, como tantas outras, sua imagem de nova natureza deveria funcionar como um complemento às funções da cidade ao lado. Recuperar é também um ato simbólico a demonstrar que ampliar um sítio como Veneza deve ser, em nossos dias, pensar em infraestruturas técnicas e territoriais que a preservem e deem suporte a sua existência histórica.
O pressuposto foi a transferência de toda a estrutura da empresa Vesta para a ilha-plataforma criada. Este é o quarto território. Nesse sentido, ilhas mais canal devem fazer que os três territórios a serem conectados transformem-se num único, sendo que o quarto navega, pois a infraestrutura para o lixo veneziano só precisa da água para se movimentar.
O método
A solução técnica e espacial para o sistema do lixo avalizava o início dos trabalhos nas bases propostas. Tínhamos agora os três territórios disponíveis para o projeto. O programa de referência, proposto pela Comune de Veneza era o de se pensar em instalações esportivas na área de Sacca Fisola, local que já tinha essa vocação, por abrigar dois centros de esportes. A esse programa, adicionamos a recuperação de Saca San Biagio, para que desse mais sentido ao conglomerado de ilhas e, sobretudo, propusemos a ocupação do canal com uma arquitetura de transposição.
A arquitetura passou a ser o elemento estruturador do território. Neste workshop, converteu-se em sua principal infraestrutura: por vezes, é o equipamento que constrói a transição, por outras, redesenha chãos diversos, alterando o desenho das ilhas ou da água. Entre as várias camadas sobrepostas: água, chão, construção, chamamos de arquitetura a todas as ações que modificam o natural. É a ponte que conecta as ilhas, o canal escavado, o novo contorno da ilha, ou a árvore plantada pelo homem. A arquitetura, em suas várias escalas, é a operação que sintetiza a intervenção.
Hipóteses
Trabalhamos com um contingente de 63 estudantes e, para a abordagem inicial do problema, propusemos um exercício individual de quatro horas de duração, onde cada um exporia sua hipótese de intervenção. Com os resultados em mãos, realizamos um painel crítico, onde pudemos organizar famílias de projetos, a partir das quais foram formados os grupos de trabalho, por afinidades conceituais. Ao todo, definimos dez hipóteses de intervenção, todas afinadas com as diretrizes gerais do projeto inicial, mas cada uma propondo soluções particulares para cada ilha e especialmente para a transição. De outro modo, o core do projeto se revelava, o grande canal central transformava-se também em território.
As hipóteses traziam, como maior contribuição, a compreensão do potencial da laguna como território. Afinal, em Veneza, o território é a água, e as equipes, ao terem de trabalhar invariavelmente sob três condicionantes: ilha – canal – ilha, fizeram que a arquitetura de transição fosse definidora do conceito central dos projetos. Não dizemos que as soluções propostas para as ilhas fossem apenas coadjuvantes, mas, por representarem programas mais estabilizados de uso, como no caso do complexo esportivo em Sacca Fisola, ou do parque em Sacca San Biagio, suas soluções transformaram-se no suporte programático para a ação renovadora que se deu sobre o canal.
Entre as propostas, pudemos observar ações comuns que se transformaram em mote de partida para os projetos. Falamos, por exemplo, de trabalhos que se interrogaram sobre a necessidade de existência do canal, e propuseram sua supressão ou transformação. Houve aqueles que procuraram prosseguir com o processo territorial de construção das ilhas, propondo novos contornos físicos, alterando a geografia; e outros que, de algum modo, assumiram a geografia existente como uma decisão a ser preservada, e se dedicaram a sobrepor, ao conjunto ilha – canal - ilha, uma nova estrutura arquitetônica, que lhe alterasse o sentido.
Ao final, a grande lição veneziana está em sua coragem histórica de compreender um lugar e fazer uso da inteligência e invenção para construí-lo. A ocupação da laguna, ao longo dos séculos, embora já quase estabilizada em nossos dias, mostra a disponibilidade desse território em se expandir e se transformar, quando necessário. Mas os exemplos recentes são raros, como a extensão do cemitério San Michelle, projetado por David Chipperfield, ao modo de uma ilha artificial, sempre à demanda de um sponsor. Em realidade, o grande interesse desse sítio está ligado hoje a sua história, mas, até por toda sua importância para a cultura, pode-se entender o esforço, também histórico, que se empreende para conservá-la, como atesta o controverso investimento do sistema de barragens, o Mose, já parcialmente executado, para controle do nível das marés.
Os projetos
O estúdio em que trabalhamos seria transformado, ao final, num espaço de exposições. Cada um dos 30 estúdios deveria ser planejado para, em três semanas, migrar de uma oficina para uma mostra. Isso implicou, em nosso trabalho, numa estratégia de ação divida em três atos: invenção / consolidação / comunicação, cada qual ocupando, idealmente, uma semana do trabalho.
Semana 1: A invenção do sítio
Assumo o pressuposto de que o real é quase intocável pelo arquiteto. Sua verdadeira grandeza e a realidade de seus problemas são de tal dimensão, que, via de regra, ele só pode enfrentá-los através da abstração. É o que fazem os arquitetos, por meio de seus instrumentos de representação. Pelo menos é o que vemos há alguns séculos, talvez desde o Renascimento, embora Veneza seja anterior. Transformar uma realidade ou inventá-la deve passar pelos nossos meios de reapresentá-la: desenhos; maquetes; diagramas; artifícios, enfim, que, mais que técnicos, funcionam também como modalidades de pensamento. Ao projetista, é a chave possível. Ao artista, o meio de apresentar o mundo a partir de seu olhar. Assim começamos a primeira semana: inventando 63 problemas para uma solução dada. De outro modo, dada uma ponte, inventamos um canal.
Numa aritmética simples, cada seis hipóteses afins constituíram um projeto, que guardava ou não o essencial de algumas delas. Algumas foram radicalmente revistas a partir da confrontação, o que, ao final, gerava uma nova hipótese ainda não contemplada. Nessa primeira semana, passamos, no primeiro dia, quatro horas inventando e outras quatro analisando e triando. Em seguida, ida ao sítio e verificação in loco das ideias. Nos demais, confronto e síntese coletiva, até o surgimento da proposta do grupo. Ao final, definimos um método de projetação e uma linguagem de apresentação comum a todos os times: maquetes de papelão.
Semana 2: Os temas
Ao iniciarmos a segunda semana, já tínhamos dez projetos esboçados e, embora ainda embrionários, já se definiam os temas dominantes: intervenção no canal; redesenho geométrico das ilhas; arquiteturas condensadoras; novo programa, etc. O trabalho de estúdio, nesse momento, passaria por uma terceira intervenção, tão delicada quanto a operação que gerou as propostas individuais, ou aquela que as reinventou em grupo. Agora precisávamos fazer surgir a ideia mínima de cada uma das propostas, aquela sem a qual o projeto deixaria de existir. A abertura da segunda semana era, assim, um recomeço, sobretudo porque, na criação, o mais difícil é ter a coragem de descartar.
Encontrada a hipótese, por assim dizer, de cada um dos projetos, a dinâmica do estúdio passou a ser seu desenvolvimento em escalas diversas. Se iniciamos as primeiras ideias na escala 1:5000, agora chegaríamos à escala 1:50, considerando aqui também que a arquitetura, como construção, é parte definitiva da configuração maior do espaço urbano.
Canal Seco
Três trabalhos intervieram no canal, como forma de transformar a área escavada em sequência territorial das ilhas. Destaque-se que a eliminação de canais, aterrando-os e transformando-os em ruas, fora uma estratégia territorial frequente no período de domínio napoleônico, o que hoje se chama Rio Terrà (rio aterrado), mas aqui as estratégias não foram óbvias, e a existência da calha já escavada (agora esgotada) era um dado inicial das intervenções. A apropriação desse novo espaço criado variou caso a caso.
O trabalho intitulado Canale Seco cria duas barragens nas extremidades, para isolar o canal da laguna, e outra lateral, para isolá-lo de um pequeno canal transversal. Com essa operação, esgota o remanescente de canal interno a elas, transformando o fundo numa área esportiva. Para a manutenção da navegação, projeta um canal suspenso em estrutura de concreto armado, espécie de calha d’água, que serve apenas para a circulação entre as extremidades. Com essa solução, engenhosa, a conexão entre as ilhas se dá pelo novo território seco e pelas arquiteturas de passarelas que alinhavam as terras.
Nessa mesma linha, destacamos o projeto Mind the Gap, que adota estratégia semelhante, de isolar e esgotar o canal e construir uma calha de navegação, para não interromper a navegação. Sua outra contribuição foi a de não isolar o fundo do canal seco e, para dar sequência ao território das ilhas, usa como estratégia a reconstrução da topografia da ilha de Sacca San Biagio, por meio de um taludamento que cria uma suave rampa até o fundo do canal. Um terceiro trabalho, Associati , parte de bases semelhantes, mas estende-se sobre o território das ilhas, com duas linhas construídas que as conectam sobre o canal esgotado e avançam sobre a laguna, valorizando a arquitetura que reconstrói os territórios.
Transposições ativas
As arquiteturas de transição, ou seja, aquelas que se impuseram pela força do desenho, estão mais bem representadas em três projetos: L´Isola Sospesa, Weaving/Tessitura e One Level Above. L´Isola Sospesa e Weaving, com desenhos distintos, partem do mesmo principio, de manter ilhas e canal intactos, e concentram a intervenção sobre uma arquitetura que alinhava os três territórios. O resultado, em ambos os casos, converte-se num sistema de passarelas que faz da transição também um momento fruição, além de concentrar todo o novo programa em construções suspensas sobre o canal, ou sob o sistema de passarelas. L´Isola Sospesa é um grande exercício estrutural, composto de seis passarelas treliças que suspendem uma ilha plataforma com programa de uso. Trata-se, em verdade, de uma quase ilha, pois não toca a água, mas o resultado é o mesmo. Já Weaving destaca-se pela expressão do traçado, que recupera, de algum modo, a falta de lógica dos caminhos da cidade histórica, o que aqui é tratado por seu aspecto lúdico.
Finalmente, a mais sintética de todas as intervenções, One Level Above, afasta-se de qualquer contaminação e busca o desenho mínimo, por meio de uma arquitetura cruciforme, que atravessa o canal e se mantém independente dos territórios das ilhas. A estrutura concentra todo o programa de uso proposto para as novas intervenções e busca apenas organizar o uso para as duas ilhas. Para Sacca San Biagio, assume-a como um parque espontâneo, cuja única ação racional seriam as linhas que se cruzam no espaço aéreo.
Nova geometria
A atenção ao grande desenho totalizador pode ser encontrada nos projetos: A Roda e Linking Bow. Com estratégias semelhantes, ambos partem de uma estrutura geométrica circular, para alinhavar as ilhas e o canal, fazendo que a arquitetura passe a preponderar sobre os territórios. No caso do projeto Linking Bow, essa passarela é proposta estruturalmente a partir dos elementos que marcam os canais em Veneza, alusão que, de modo sensível, busca o estabelecimento de uma relação técnica e não apenas figurativa com aqueles elementos, mas, ao ser aplicada em outra finalidade, ganha expressão além de mero artefato técnico. Já A Roda redesenha o contorno das ilhas, inclusive aterrando parcialmente o canal, numa operação única, que reflete a tradição de construção de Veneza, apenas dando-lhe aqui um contorno geométrico.
Plataformas
Finalmente, dois trabalhos fizeram uso literal do canal como transição, propondo plataformas flutuantes que reduzissem o espaço entre as ilhas, mas tratando-as com usos diversos. Una Piazza Sul’Àcqua parte de um sistema de passarelas ortogonais, para gerar uma praça flutuante que ampliasse o uso de lazer das ilhas e contivesse um programa de estar. Com ênfase no desenho, trata sutilmente de propor uma geografia atualizada, preservando os territórios existentes.
Em Nuova Realtá per Nuovi Modo di Vivere, o programa foi fundamental na solução técnica, que enxerga uma possibilidade além do território para compreender a nova utilização desses espaços criados. De modo talvez naive, imaginam que Saca San Biagio, descontaminada, pode vir a ser uma produtora de alimentos em escala local, que seriam comercializados numa estrutura flutuante no canal, para consumo nas ilhas próximas. Essa estrutura tende a enxergar o programa como indutor de uma nova sociabilidade e estimularia novas arquiteturas.
Semana 3: A Mostra - Em Veneza, o território é água
A última semana foi aberta com o detalhamento das propostas e concluída com a montagem da exposição. Coerentes com a tônica do estúdio, pensamos numa mostra que desse conta dos aspectos conceituais que nortearam os projetos, ou seja, um projeto expositivo que anulasse hierarquias entre as diversas camadas de território, chão, lagoa, construções, transformando-os todos num mesmo padrão. Desse modo, e a partir da estrutura técnica e espaço disponível, criamos uma grande mesa-plataforma, com 10,00 X 4,00 metros, que representaria a laguna, sobre a qual repousariam as dez maquetes dos projetos em escala 1:1000. O material utilizado na confecção das ilhas, água e construções era o mesmo, o que, ao final, gerou uma arquitetura única, onde se destacavam apenas os relevos e as estruturas. Essa mesa central era contornada por painéis que detalhavam os projetos e completavam os dados conceituais.
Ao final, o estúdio recebeu o prêmio de primeiro lugar pelo júri, composto por membros da Universidade, administrações públicas e museus de Veneza, tanto como melhor proposta, como de melhor exposição.
notas
NA 1
Texto publicado na PÓS (Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP), v. 19, n. 31, junho 2012.
NA 2
Giacomo Favili, Chiara Cavalieri, Nicola Bedin, Andrea Castellani, Taneha Kusniecow trabalharam como assistentes no projeto.
sobre o autor
Francisco Spadoni é arquiteto e professor doutor da FAUUSP e FAU Mackenzie.
ficha técnica
Grupos participantes do WAVe 2011
A Roda
Selena Dal Dosso
Elena Franchin
Lorenzo Lorniani
Erica Moro
Matteo Sommariva
Silvia Zanella
Associati
Giada Bovenzi
Teodorico Carfagnini
Mirco Castegnaro
Lorenzo Marcellini
Nnamdi Okebugwu
Giovanni Pisan
Il Canale Secco
Edoardo Babetto
Enrico Babetto
Giulia Cavinato
Giovanni Pastori
Martina Salvaneschi
Francesca Settembrini
Linking Bow
Gian Giacomo Borin
Riccardo Bortignon
Massimiliano Buratto
Gabriel Josè Maria Ferro
Jacopo Lucano
Elisa Mariani
L’Isola Sospesa
Agostino Bernardi
Tomaso Boin
Luca Cocco
Matteo Grosso
Jean Baptiste Hursel
Sara Liberali
Mind the Gap
Alessandra Colpo
Anna Dolcetta
Martina Franceschet
Nicolò Naibo
Nicholas Travaini
Nuove Realtà per Nuovi Modi di Vivere
Veronica Caprini
Giulia Cerrato
Andrea Fasolo
Elisa Gobbato
Claudi Lambini
Irene Zivelonghi
One Level Above
Fabio Garbo
Stefano Lucietti
Nicola Moscheni
Francesca Tollardo
Alessandra Verza
Anna Zambolin
Una Piazza sull’Acqua
Chiara Bortolan
Veronica Brusauro
Francesca Dal Cin
Matteo Guidi
Paolo Montagner
Irene Pivato
Luca Zanovello
Weaving-Tessitura
Francesco Barbisan
Mauro Ceccato
Cristina Crestani
Luca De Nardi
DIlva Del Fabbro
Manuel Magnaguagno