“Avec le temps, la mémoire a perdu son sens et son statut [...] elle est devenue une cause, une industrie, un moyen de pression”.
Pierre Nora
A cena brasileira contemporânea demonstra o quanto o país vem acompanhando, em ritmo de campeão, o grande boom memorial internacional. Na França, berço das ideias sobre preservação e das teorias de restauro, o “dever de memória” (1) foi se ampliando, na medida do alargamento da noção de patrimônio, inclusive estimulando a proliferação de “leis memoriais”, a maior parte delas, segundo Marie-Claire Lavabre (2), associadas a afirmações de identidade no contexto maior de uma globalização. Por outro lado, se no Brasil, ainda não existem leis memoriais (3), o processo de judicialização da memória é crescente. Reivindicações memoriais, associadas à cobrança de dívidas históricas, são consideradas como partes de um processo de inclusão social e cidadania, uma verdadeira obsessão da sociedade contemporânea brasileira. Assim, se “recordar era viver”, um aprazível exercício seletivo de momentos especiais, hoje recordar pode ser uma condenação ao sofrimento e à angústia permanentes.
Segundo Frances Yates (4), a memória – definida como a arte que busca a memorização através de técnicas de impressão de “lugares” e de “imagens” – é uma invenção dos antigos gregos, transmitida para Roma, de onde passou para a tradição europeia; Mnemosyne, diziam os gregos, é a mãe das Musas. A pesquisa da autora sobre a transformação dos sistemas da memória ao longo da história escancara as contradições contemporâneas geradas pela negação da característica intrínseca da memória, a de ser seletiva, e pela consequente multiplicação das estratégias de resgate do esquecimento que têm como objetivo tudo registrar, tudo documentar, tudo guardar e, sobretudo, tudo lembrar. Esta verdadeira “síndrome de Funes” – Funes, esse angustiado personagem do conto de Jorge Luis Borges (5) que não conseguia esquecer nada, dizendo ter “mais lembranças do que todos os homens haviam tido desde que o mundo é mundo” – condiciona a cidadania e a inclusão à lembrança ampla, geral, irrestrita e indiscriminada. A noção de patrimônio ampliada e a revalorização do museu como urna de memórias diversas são parte de um processo crescente de patrimonialização e musealização de monumentos, artefatos, sentimentos e até da própria vida: se existem memórias de tudo, de todos e de cada um, podem existir museus de tudo e tudo pode ser patrimônio.
Na contramão dessa euforia memorialista, Borges nos lembra de que Funes, o memorioso “não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”, abrindo assim uma perspectiva para a discussão da musealização das memórias malditas. No Brasil, elas são, sobretudo, memórias de raça e de sangue, de negros e de índios, de vítimas de perseguição política e da ditadura militar. Lavabre (6) nos indica três paradigmas teóricos (Pierre Nora, Paul Ricoeur, Maurice Halbwachs) que, entrecruzados, nos possibilitam o entendimento das práticas memoriais contemporâneas, oferecendo referências para questioná-las: estaríamos assistindo à imposição de uma tirania da memória? Os políticos (incluindo os promotores culturais, no caso brasileiro) estariam tomando o lugar dos historiadores, para tornar o patrimônio e os museus reféns de anacronismos ideológicos? Mais ainda, no caso brasileiro, as reivindicações de direito à memória, mais do que um exercício de cidadania, não poderiam ser consideradas como estratégias de manipulação política e de oferta de mercadorias para a indústria do turismo?
Dos lugares às leis: entre paradigmas e práticas
No final da década de 1970, quando começou a esboçar sua obra Les lieux de mémoire (7), Pierre Nora considerava que os “lugares de memória” – expressão hoje já dicionarizada – poderiam ser materiais, simbólicos ou funcionais, e poderiam abranger desde o objeto concreto, geograficamente situado, até uma construção intelectual abstrata. À época, face ao que considerava “o perigo do rápido desaparecimento da memória nacional”, tratou Nora de esclarecer, já na introdução de sua obra, a distinção entre memória e História: “a História é a construção sempre problemática e incompleta daquilo que já foi. [...] é uma representação do passado. [...] a memória é um fenômeno sempre atual, uma ligação vivenciada com um presente eternizado”. O objetivo principal de Pierre Nora poderia ser resumido como a identificação dos lugares onde a memória foi construída e a compreensão da gênese desta memória, considerada como objeto da História, em um contexto de desaparecimento da memória nacional. Portanto, os lugares da memória identificados pelo autor são considerados como uma “unidade significativa de ordem material ou ideal (uma ideia) transformada, pela vontade dos homens ou pelo trabalho do tempo, em elemento simbólico de um determinado grupo social” (8). Note-se a diferença fundamental entre esse novo conceito proposto por Nora nos anos 1980, e a ideia de patrimônio forjada a partir do século 19, na Europa Ocidental, fundamentada na construção nacional e na memória coletiva, porém voltada exclusivamente para a preservação e restauração dos seus suportes materiais.
Mas as reflexões conduzidas a partir dos anos 1980, em função da obra de Pierre Nora, acabaram desencadeando estratégias obsessivas de resgate do esquecimento. A noção de patrimônio e a ideia de museu foram sendo cada vez mais ampliadas sem se fazer acompanhar do necessário aprofundamento da discussão conceitual, até o momento em que todo fenômeno ou fato cultural adquiriu uma “potencialidade patrimonial ou museal”, quando se começou a conjugar os verbos “patrimonializar” e “musealizar”, neologismos que se referem a uma dada “ação contemporânea de construção patrimonial ou museal”, ou a todo e qualquer processo de afirmação identitária. Acelerados processos de patrimonialização e musealização passaram a se generalizar afastados de critérios e procedimentos técnicos e científicos fundamentados no campo de conhecimento da preservação – os conceitos nômades abriram mão de sua dinâmica fundadora e fixaram raízes em campos exógenos. Desprezado como lento, pesado e até elitista na sua concretude, o patrimônio passa a ser definido, segundo uma lógica global necessariamente fluida e veloz, como processo ou como sistema, “um sistema simbólico gerador de identidade coletiva” (9).
Portanto, a noção de preservação fundada no século 19, e que foi sendo construída desde então no âmbito dos museus, dos arquivos, dos sítios arqueológicos, das pranchetas e dos canteiros dos arquitetos restauradores, e das pesquisas de historiadores e de historiadores da arte, tendo como motivação e foco de interesse os objetos e monumentos concretos tratados como suportes da memória coletiva responsáveis pelo desenho do perfil de territórios e nacionalidades em processo de consolidação, passou por uma transformação tão veloz e radical que nos vemos hoje confrontados a uma “crise de identidade do patrimônio”, em contexto de mundialização (10). Por outro lado, a legitimação de critérios e valores é cada vez mais difícil em um mundo em que o valor maior é a relatividade absoluta, e no qual cada objeto, cada acontecimento, cada lugar exibe legitimamente seu “potencial patrimonial” ou, melhor dizendo, sua “pretensão patrimonial” (11).
Assim, temos assistido primeiro a um processo de esvaziamento semântico da noção de patrimônio, para, em seguida, observar seu rápido processo de ressemantização quase sempre distanciado da necessária fundamentação teórica (12). E, se é inegável que o patrimônio ganhou amplitude, também é indiscutível a necessidade de aprofundar o debate. Não é suficiente afirmar categórica e tautologicamente a nova condição de ampliação de sentido para que ela se legitime. Esse processo contemporâneo de desdobramento da ideia de patrimônio também acaba por revelar uma grande complexidade de conteúdos e significados, porém, vagos na maior parte das vezes e, no limite, contraditórios (13). Mesmo quando se apresenta através da legítima reivindicação por reconhecimento de valores patrimoniais, conduzida por grupos sociais impulsionados pela necessidade cidadã de qualificar a vida cotidiana, na busca por novas referências de identidade e pertencimento em um mundo em desnorteante transformação. Ainda, é cada vez mais frequente que esse processo associe valores patrimoniais tradicionais – ou novos valores patrimoniais multiplicados e redefinidos frenética e indiscriminadamente todos os dias – a valores exclusivamente comerciais ou mercadológicos e a interesses político-partidários, ambos distantes dos interesses culturais, senão incompatíveis (14).
A ampliação indiscriminada do campo da memória, preservação incluída, e principalmente a politização, a ideologização e a judicialização do “dever de memória”, levaram recentemente Pierre Nora a advertir que “a memória divide, a História reúne”, denunciando uma situação que ele define como de “tirania da memória”. Em entrevista ao jornal Le Figaro, ele alerta para o risco de se confundir justiça e História, situação em que o “dever de memória” assume a conotação de julgamento moral correndo o risco de se tornar uma imposição, situação em que a ação do juiz se sobrepõe ao trabalho do historiador:
“Hoje, alguns defensores da memória têm uma tendência agressiva, impondo uma memória tirana, às vezes até terrorista, principalmente em relação à comunidade cientifica. Historiadores sérios estão à mercê de grupos de pressão que cada vez mais utilizam as leis como ameaça para ocultar verdades que não lhes convém. Devemos evitar que guardiões de memórias particulares, que projetam as preocupações do presente sobre os acontecimentos do passado, tomem a pesquisa histórica como refém, exigindo que a História sirva a seus propósitos. Este anacronismo é que deve ser denunciado, e é o historiador e não o legislador que pode fazê-lo” (15).
Ser obrigado a lembrar é diferente de não conseguir esquecer
A problemática da memória não é nova, como indica Lavabre (16), apenas assume novas conotações internacionalizadas como consequência de mudanças nas temporalidades, nas tradições teóricas que são mobilizadas, nos objetos históricos privilegiados. Para a autora, convivemos hoje com três grandes problemáticas, ou três grandes paradigmas da memória: “os lugares da memória”, de Pierre Nora; os “trabalhos da memória” de Paul Ricoeur e os “quadros da memória” de Maurice Halbwachs (17). Na discussão sobre o direito à memória, e os consequentes processos de patrimonialização e musealização, tomamos como pano de fundo as teorias de Henri Bergson – quando relaciona matéria e memória –, e de Maurice Halbwachs – quando discorre sobre a importância da continuidade dos espaços e de sua estabilidade para a elaboração da memória e para a construção da identidade dos grupos. Também consideramos as relações estabelecidas entre história e memória e seus suportes, da maneira como foram tratadas por Jacques Le Goff, em Histoire et mémoire, e principalmente por Pierre Nora em Les lieux de mémoire (18), e por Paul Ricoeur em La mémoire, l´histoire, l´oubli (19).
Paul Ricoeur, face aos novos imperativos categóricos dos “deveres da memória”, inspira-se na prática analítica para propor a substituição dos “deveres de memória” pelo “trabalho da memória”. Segundo Ricoeur, referindo-se aos usos que a sociedade tem feito da memória e suas preocupantes consequências, hoje é possível identificar sintomas de uma “doença do passado”. Os “trabalhos da memória” funcionariam como o ritual psicanalítico, o “trabalho do luto” – considerado, para além do sofrimento, como uma verdadeira negociação com a perda, um longo trabalho de assimilação e de distanciamento em relação a ela – trabalho este que tornaria possível alcançar “a justa memória”, o “bom esquecimento”, ou seja, a reconciliação tanto com o outro como consigo mesmo (20). Ricoeur reage assim ao crescimento e à multiplicação, observados a partir dos anos 1990, dos “deveres da memória” que chegaram a se transformar em um novo paradigma, inclusive se sobrepondo em grande parte aos “lugares de memória” de Nora. Considerados no seu sentido mais expandido e ideologizado, os “deveres da memória” passaram a atender prioritariamente à vontade política de acertar contas com o passado, ao apaziguamento e à resolução de conflitos, à redução de ressentimentos, de maneira tal que o desafio colocado hoje pelos “deveres da memória” parece se limitar à discussão de como tratar a memória para restaurar comunidades assoladas por conflitos (ou pela memória deles...), chegando a apelar a contraditórios comitês da verdade e da reconciliação (21), ou a movimentos como o comitê francês de vigilância dos usos públicos da História, que pretende lutar contra a confusão entre História e memória (22).
O paradigma dos quadros da memória – menos politizado e mais restrito ao mundo acadêmico – abre a caixa preta para pensar as interações entre uso do passado e das lembranças, para verificar empiricamente o que são as representações compartilhadas do passado – o velho patrimônio de mais de 200 anos –, e sobre as condições atuais de uso e manipulação da memória coletiva na área expandida da preservação e do patrimônio cultural. E é justamente no cruzamento desses paradigmas que a musealização e a patrimonialização se estendem também às memórias malditas, a tudo aquilo que hoje passamos a ser obrigados, por lei, a lembrar, ou que somos proibidos de esquecer, à dor e ao constrangimento das memórias de perseguição racial, de extermínio étnico, das guerras, de perseguições políticas.
As expressões dos “deveres da memória”
O “dever de memória”, mais ou menos exacerbado, pode assumir formas diversas e até bastante controversas, criando uma inquietude sobre os abusos não só da memória como do esquecimento, e uma preocupação com o estabelecimento da “justa memória”, necessariamente plural e dialética, descompromissada com os anacronismos ideológicos. Assim ele pode tomar formas concretas de declarações oficiais, de leis e de tratados internacionais, podendo gerar programas de ensino e de pesquisa, se exprimindo também artisticamente nas áreas da dança, do teatro, da literatura, das artes plásticas. Como também na área da arquitetura, através do projeto, construção e adaptação de museus e memoriais, os monumentos do “nunca mais”, lugares privilegiados das memórias malditas que nos assombram.
O conjunto de Auschwitz-Birkenau, campo alemão de concentração e extermínio (1940-1945), foi inscrito na lista de Patrimônio Mundial da Unesco em 1979. Auschwitz I foi a sede de um museu criado em 1947 pelos poloneses, que mais tarde se estendeu também a Birkenau, campo de extermínio dos outros judeus europeus, ciganos e russos. Ainda hoje existe um debate sobre esta divisão do museu, intrinsecamente ligada às discussões sobre a Shoah, com a proposta para que se faça “falar os lugares” porque os lugares nem sempre dizem respeito a uma mesma e única memória: a memória polonesa estaria referenciada nas instalações de Auschwitz I e a memória judaica em Birkenau. Reivindicações como esta, que tem origem na discussão da memória da Shoah e seus suportes, têm consequências para a arquitetura, para a restauração dos monumentos, e para a museografia. Também são discutidos os complexos critérios de conservação de um museu com as características de um campo de concentração, contrapondo a inadequada e indesejada higienização e teatralização dos ambientes e edificações (bastante comuns a este tipo de memorial) às necessárias medidas que impeçam o desparecimento ou arruinamento das instalações; sem entrar aqui no mérito se as ruínas não seriam um suporte apaziguador para a memória um sítio marcado por tanto sofrimento e tantas atrocidades (23).
Arquétipo dos massacres de populações civis, as ruínas da “cidade mártir” francesa de Oradour-sur-Glane, aniquilada por um bombardeiro alemão que matou todos os seus habitantes, foi tombada e conservada no seu estado de arruinamento, por decisão oficial, como um memorial das atrocidades da guerra, uma ferida aberta para lembrar as atrocidades da ocupação alemã (24).
A cidade de Dresden, na Alemanha, até o final da Segunda Guerra considerada a “joia Barroca” da Europa, foi bombardeada pelos aliados em fevereiro de 1945, quando a Alemanha já estava derrotada. Dresden não era alvo estratégico, nem do ponto de vista militar nem industrial, não sediava bases militares ou indústrias, não tinha qualquer defesa aérea, e mesmo assim foi completamente destruída e sua população civil, constituída principalmente por mulheres, crianças e refugiados da Europa do Leste, foi imolada num verdadeiro inferno de fogo e fumaça. Quase 3/5 da cidade foi reduzida a cinzas e fala-se em até 250.000 pessoas mortas (25). Esse bombardeio, dito estratégico, ainda é motivo de controvérsias, considerado um verdadeiro crime de guerra, com injustificável sacrifício de civis, ou como mais um ato de estratégia militar, não mais grave do que outros bombardeios ocorridos em Hamburgo e Pforzheim.
O Museu da História Militar de Dresden (Military History Museum), projeto de Daniel Libeskind (26), foi inaugurado em 2011 e se assemelha bastante ao icônico Jewish Museum, em Berlim (27), também de autoria do arquiteto (28). Ambos os projetos justapõem de maneira forte, e até agressiva, um corpo com forma plástica contemporânea a uma estrutura preexistente, criando novo foco emocional e intelectual sobre a História com a intenção expressa de dar sentido à aparente falta de sentido de uma guerra, bem como a toda violência, destruição e a todo ódio gerado (29). Esta aproximação das duas obras é autorizada pelo próprio Libeskind, quando assinala que ”a destruição da Europa e das cidades europeias pelos nazistas é parte da história da destruição de Dresden. Não é possível separar a Shoah e os museus que lidam com memórias da história da Alemanha e de Dresden” (30). Para além da distinção entre memória e História reiterada por Pierre Nora, cabe aqui trazer à discussão os recursos do arquiteto para exercer o poder evocativo da arquitetura. Libeskind não esclarece como ou porque o contraste e a justaposição formal, além de marcar temporalidades diversas na própria edificação, são associados a memórias dolorosas (31). A única coisa que o projeto escandalosamente estampa é que nada continua como antes. Ainda, no caso de Dresden, o projeto de Libeskind encontrou muita resistência para aprovação – não só da ideia do memorial como do projeto do edifício – e por uma simples razão: os habitantes de Dresden haviam decidido esquecer, apagar da lembrança o dramático e traumatizante episódio militar, apagar este passado negro de dolorosa lembrança que, por decisão oficial, agora serão obrigados a lembrar.
O entendimento das contradições que os “deveres da memória”, mesmo das memórias mais dolorosas, colocam sucessivos impasses para a conservação ou destruição dos suportes da memória, podendo inclusive nos remeter a alguns impasses recentes divulgados pela imprensa diária. A casa situada na cidade de Amstetten, em cujo porão Josef Fritzl (32) manteve em cativeiro, por 24 anos, sua própria filha, com a qual teve sete filhos, resultado dos estupros sucessivos tornou-se uma atração turística. Se o episódio brutal afastou compradores em potencial inviabilizando o uso residencial, o número de curiosos atraídos pelo fato policial chegou mesmo a desbancar, numericamente, a grande atração local, uma aguardente de pera destilada; o horror e o abjeto podem atrair como bem salienta Julia Kristeva (33). Chocado com esta atração macabra, o prefeito da cidade decidiu destruir com discrição a casa, atrás de barreiras especiais que evitassem fotografias e filmagens (34), deixando às vítimas a realização dos respectivos ”trabalhos da memória”.
Recentemente, a chamada Casa da Morte, localizada em Petrópolis, Rio de Janeiro, identificada em 1981 como um aparelho clandestino montado pelo Centro de Informações do Exército, lugar de prisão e tortura de presos políticos durante a ditadura militar, foi considerada de utilidade pública pela Prefeitura, considerado o primeiro passo para que a seja desapropriada e possa vir a ser transformada em museu ou memorial (35). Este projeto encontrou a resistência dos atuais proprietários que pretendem ter apagado da edificação os vestígios do seu negro passado através de sucessivas reformas e adaptações. Porém, para manter essa propriedade e suas mais recentes alegres memórias, os proprietários terão que enfrentar adversários do peso de Leonardo Boff, consultor do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, que tomou a frente das articulações com os poderes municipal e federal para a transformação da residência em museu, um memorial da repressão e tortura durante o regime militar no Brasil. Para Boff, a criação desse museu é fundamental para exorcizar o fantasma do autoritarismo e consolidar os valores democráticos no país. Difícil seria imaginar qual seria o projeto de restauração a ser conduzido para fazer a casa voltar à sua condição de prisão e centro de tortura, e qual seria a museografia que atenderia à reivindicaçãode mais este “direito da memória”. Difícil imaginar em que medida esta casa, no passado abrigando um centro de torturas, poderia ser hoje o suporte de uma memória compartilhada ou o símbolo dela.
Assim, entre os paradoxos colocados por processos acelerados de patrimonialização e museificação, sob o jugo de leis memoriais e de deveres morais da memória, assoladas ainda pela “síndrome de Funes”, recorremos à explicação de Borges para a angústia que compartilhamos hoje com o memorioso: “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. Confirmando ainda que o ato de lembrar traz embutida uma inevitável operação de seleção daquilo que se vai esquecer, somos obrigadas a concordar ainda com Nietzsche (36) quando afirma que é possível viver, e mesmo viver feliz, com quase nenhuma memória, mas é absolutamente impossível viver sem o esquecimento. Vanessa da Rocha (37) faz um paralelo entre uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino, Zora (38), a cidade imutável, aquela que se alguém viu uma vez nunca mais consegue esquecer, e Funes, o memorioso do conto de Borges, para concluir que, esquecida em sua previsibilidade, Zora se recusou a viver o presente pela vontade de tudo guardar, acabando por ter a mesma sorte de Funes que, incapaz de esquecer, acabou se esquecendo de viver.
notas
NE – Este texto foi selecionado pela comissão científica e apresentado pelas autoras no ArquiMemória 4 – Encontro Internacional sobre Preservação do Patrimônio Edificado, ocorrido em Salvador, entre 14 e 17 de maio de 2013.
1
A expressão "dever de memória" se impôs ao discurso político na França, na década de 1990, comportando dois novos requisitos para o Estado: comemorar os mortos pela França (Vichy) e reconhecer oficialmente uma comunidade memorial (a comunidade judaica) vítima de um genocídio. No final dos anos 1990 assistiu-se também a demandas de reconhecimento relativas ao passado colonial da França. Durante as comemorações do 150º aniversário da abolição da escravatura, em 1998, contesta-se o discurso oficial do governo reivindicando-se uma narrativa fundamentada na noção de crime contra a humanidade. Ver: LEDOUX, Sébastien. Le ‘devoir de mémoire’, fabrique du postcolonial? Retour sur la genèse de la loi Taubira. Cahiers d'Histoire, n. 118, 2012 <http://chrhc.revues.org/2533>.
2
LAVABRE, Marie-Claire. Paradigmes de la mémoire in Transcontinentales, Sociétés, Idéologies, Système Mondiale. Transcontinentales – Sociétés, Idéologie, Système Mondial, n. 5, 20017 <http://transcontinentales.revues.org/756>.
3
Lei Memorial é aquela que declara, ou impõe, o ponto de vista oficial de um Estado sobre os acontecimentos históricos. No limite, este tipo de lei pode proibir a expressão de outros pontos de vista. Na França, esse conceito foi forjado em 2005 no seio de um controvertido debate sobre os "aspectos positivos da colonização”, para designar leis efetivas, que podem impor sanções penais, como leis declarativas, que apenas impõem princípios mas não criminalizam. A relevância dessa interferência legislativa na França levou a um acirrado debate que dividiu a comunidade científica, os políticos e a imprensa.
4
Ver: YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas, Unicamp, 2007.
5
BORGES, Jorge Luís. Funes, o memorioso. In: Ficções. São Paulo: Abril, 1992. Disponível em <http://cesargiusti.bluehosting.com.br/Alguns/mestr108.htm>.
6
LAVABRE, Marie-Claire. Op. cit.
7
Organizada por Pierre Nora, essa grande empresa editorial Les lieux de mémoire é composta de 130 artigos de historiadores organizados em sete volumes, segundo os temas: La République (1984), La Nation (1986) e Les France (1992).
8
Ver: LAFON, Alexandre. Les Lieux de mémoire, un livre, un concept, des utilisations possibles. Canopé Le Réseau de Création et d'Accompagnement Pégagogiques, Bordeaux, n. 47 <http://crdp.ac-bordeaux.fr/cddp47/mediatheque/intro_casseneuil.asp>.
9
Idem, ibidem.
10
Ver: SANTOS, Cecilia Rodrigues dos. Patrimônio Cultural: documentação e reflexão necessárias. In: CUREAU, Sandra et al. (Org.). Olhar multidisciplinar sobre a efetividade da proteção do patrimônio cultural. Belo Horizonte, Fórum, 2011.
11
Ver: DI MEO, Guy. Processus de patromonialisation et construction des territoires. Colloque "Patrimoine et industrie en Poitou-Charentes : connaître pour valoriser", Sep 2007, Poitiers-Châtellerault, France. Geste éditions, p. 87-109. Disponível em : <www.ades.cnrs.fr/IMG/pdf/GDM_PP_et_CT_Poitiers.pdf>.
12
SANTOS, Cecilia Rodrigues dos. Op. cit.
13
DI MEO, Guy. Op. cit.
14
Idem, ibidem.
15
NORA, Pierre. La mémoire est de plus en plus tyrannique. Entrevista ao Figaro Littéraire, 22 dez. 2005. L'Association “Liberté pour l'histoire”. Consultado no site da Association “Liberté pour l'Histoire” <http://www.lph-asso.fr/index.php?option=com_content&view=article&id=24%3Apierre-nora-l-la-memoire-est-de-plus-en-plus-tyrannique-r&catid=4%3Atribunes&Itemid=4&lang=fr>.
16
LAVABRE, Marie-Claire. Op. cit.
17
HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris, Albin Michel, 1997.
18
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire (tomes 1, 2 et 3). Paris, Gallimard, 1997.
19
RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Le Seuil, 2000.
20
Ver LAVABRE. Op. cit.; DOSSE, François. L’histoire et la guerre des mémoires. João Pessoa, I Seminaire d’Histoire et de Culture Historique, 2007. Disponível em: <http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/saeculum16_dos01_dosse.pdf>.
21
Uma Comissão da Verdade e da Conciliação é uma jurisdição ou uma comissão não jurídica estabelecida depois de períodos de distúrbios políticos de ditadura ou repressão política com o objetivo de estabelecer a reconciliação nacional.
22
Ver: DOSSE, François. Op. cit.
23
Ver: Le Musée d’Auschwitz-Birkenau et le problème de sa conservation. In: Cercle d’étude de la Déportation et de la Shoah-Amicale d’Auschwitz. Disponível em: <http://www.cercleshoah.org/spip.php?article233>.
24
Ver: http://www.oradour-souviens-toi.fr/
25
Número resultante de uma investigação independente, encomendada pelo conselho municipal de Dresden em 2010. Ver: Le bombardement de Dresde ou la controverse sur le nombre de morts? <http://fr.answers.yahoo.com/question/index?qid=20100215083247AA4Fwd4>.
26
Ver: LIBESKIND, Daniel. Military History Museum. Studio Libeskind <http://libeskind.com/work/military-history-museum/>.
27
Ver: Jewish Museum Berlin http://www.jmberlin.de/main/EN/homepage-EN.php; LIBESKIND, Daniel. Jewish Museum Berlin. Studio Libeskind <http://daniel-libeskind.com/projects/jewish-museum-berlin>.
28
Ver: LIBESKIND, Daniel. Contemporary Jewish Museum, San Francisco, California. Studio Libeskind <http://libeskind.com/work/contemporary-jewish-museum/>.
29
STUDIO DANIEL LIBESKIND. Dresden’s Military History Museum / Daniel Libeskind. ArchDaily, 14 out. 2011 <www.archdaily.com/172407>. Ainda no mesmo artigo: “Both juxtapose aggressively avant-garde design and decidedly pre-modernist structures. Both demand a renewed emotional and intellectual focus on history. Both attempt to make sense of the seemingly senseless – of war, violence, destruction and hatred”.
30
Idem, ibidem: “The destruction ofEurope and European cities by the Nazis is part of the story of the destruction ofDresden. One cannot separate the Shoah and the museums that deal with memories from the history ofGermany andDresden”.
31
Basta remeter comparativamente à intervenção no famoso telhado, em Viena, da cooperativa da qual Libeskind fazia parte – Roof Remodelling (Viena, 1983-1988).
32
Aos 74 anos, Fritzl foi condenado à prisão perpétua em março de 2009 por incesto, estupro, escravidão assassinato e por negligência dos filhos gerados pelo incesto.
33
Ver: KRISTEVA, Julia. Pouvoirs de l´horreur. Paris, Points, 1983.
34
DAILY MAIL REPORTER. House of horrors: Josef Fritzl's home in Austria to be torn down after becoming tourist attraction. Mail Online, 1 maio 2011 <www.dailymail.co.uk/news/article-1382440/Josef-Fritzls-Austrian-home-torn-tourist-attraction.html>.
35
MARSIGLIA, Ivan. E o direito à memória bateu à porta. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 26 ago. 2012 <www.estadao.com.br/noticias/impresso,e-o-direito-a-memoria-bateu-a-porta-,921878,0.htm>.
36
“Il est possible de vivre, et même de vivre heureux, presque sans aucune mémoire, comme le montre l’animal; mais il est absolument impossible de vivre sans oubli. Ou bien, pour m’expliquer encore plus simplement sur mon sujet: il y a un degré d’insomnie, de rumination, de sens historique, au-delà duquel l’être vivant se trouve ébranlé et finalement détruit, qu’il s’agisse d’un individu, d’un peuple ou d’une civilisation”. NIETZSCHE, Friedrich (1874). Considérations inactuelles, II. Coleção Folio-essais. Paris, Gallimard, s/d., p. 97. Apud DOSSE, François. Op. cit.
37
ROCHA, Vanessa Massoni da. Memória: modos de usar. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê Letras, linguística e suas interfaces, n. 40, 2010, p. 271-289. Disponível em <www.uff.br/cadernosdeletrasuff/40/cotidiano2.pdf>.
38
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
referências bibliográficas
BIENENSTOCK, Myriam. Is There a Duty of Memory? Reflections on a French Debate. Modern Judaism. A Journal of Jewish Ideas and Experience. vol. 30, n. 3, p. 332-347. Disponível em <http://mj.oxfordjournals.org/content/30/3/332.full.html?ijkey=uqv7GziGR3D0zQ4&keytype=ref>.
DOSSE, François. Historiser les traces mémorielles. Conférence à Tallin, 2005. Disponível em: <www.culturahistorica.es/dosse/historiser_les_traces_memorielles.pdf>.
LÉNIAUD, Jean Michel. L’utopie Française. Paris, Mengès, 1992.
ROCHA, Vanessa Massoni da. “A reinvenção da memória em cantique des plaines de Nancy Huston.” Dissertação de mestrado, Instituto de Letras, UFF, 2009. Disponível em: <www.bdtd.ndc.uff.br/tde_arquivos/23/TDE-2009-11-12T125407Z-2273/Publico/Vanessa%20da%20Rocha%20Dissert.pdf>.
sobre as autoras
Cecilia Rodrigues dos Santos é arquiteta, com mestrado pela Universidade de Paris X-Nanterre/França, e doutorado pela FAU-USP, professora adjunta e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem como principais temas de especialização e trabalho a arquitetura moderna e contemporânea e a preservação do patrimônio cultural.
Sonia Marques, arquiteta, especializou-se em Urbanismo e Organização Territorial (Toulouse) trabalhou em Planejamento Habitacional, é mestre (UFPE) e doutora em sociologia (EHESS/Paris) com trabalhos respectivamente sobre a formação e a profissão do arquiteto e urbanista, foi diretora do IPHAN, foi professora de História e Teoria da Arquitetura a partir de 1974 (UFPE/UFBA/UFRN). Atualmente é professora do departamento de Artes Visuais da UFPB.