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architexts ISSN 1809-6298


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A extrema desigualdade de condições sociais e territoriais observada nas grandes cidades brasileiras leva a crer que os enfrentamentos pelos benefícios da experiência urbana não ocorrem em igualdade de condições.


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KOURY, Rafael. Considerações sobre a boa cidade. Justiça ambiental urbana e sustentabilidade. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 179.00, Vitruvius, abr. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.179/5520>.

O conceito de vitalidade urbana

"O que faz uma boa cidade?"
Kevin Lynch, A boa forma da cidade (1)

Os fatores que determinam a afinidade por determinados lugares são tantos que seria impossível identificar todos. No entanto, alguns autores apontaram correlações entre aspectos da forma urbana e fenômenos sociais como a insegurança, a prática de esportes e outras atividades ao ar livre, o envolvimento com a política local (2). A proporção entre janelas e muros cegos em uma rua, por exemplo, poderia influenciar na dinâmica social, econômica e ambiental da mesma rua. Neste sentido, a administração da cidade deve utilizar critérios de avaliação que definam o melhor ou pior desempenho, de modo a favorecer a criação de espaços públicos de boa qualidade. Apesar da dificuldade de avaliar objetivamente as correlações entre a forma urbana e a apropriação dos espaços, devido a multiplicidade dos elementos e fatores envolvidos, alguns estudos, auxiliados por recursos da informática, vêm obtendo bons resultados na avaliação quantitativa destas correlações (3).

A idéia de vitalidade urbana procura sintetizar o conjunto de qualidades de um assentamento no qual as pessoas apreciem estar, geralmente, concentrador de múltiplas atividades e relações econômica. Jane Jacobs assume uma interpretação de “vitalidade” voltada para a interação social, a diversidade de usos e a "qualidade vibrante dos lugares". A autora faz referência a uma “atmosfera de alegria, companheirismo e bem-estar nas ruas”, quando descreve o North End, bairro de baixa renda em Boston, como fica representado no trecho:

“Quando visitei o North End novamente em 1959, fiquei espantada com a mudança. [...] No lugar de colchões encostados às janelas, havia venezianas e a aparência de tinta fresca. [...] Misturadas aos prédios residenciais havia uma quantidade incrível de excelentes mercearias, assim como casas de estofamento, serralheria, carpintaria, e processamento de alimentos. As ruas tinham vida com crianças brincando, gente fazendo compras, gente passeando, gente falando. Não fosse um frio dia de Janeiro, certamente haveria pessoas sentadas às portas” (4).

Segundo Jacobs, incentivar a diversidade de usos seria a melhor forma de combater a “grande praga da monotonia” – resultante do planejamento setorizado e monofuncional –, promovendo segurança, atratividade e interação entre as pessoas. Assim, os principais fundamentos da revitalização de áreas urbanas de baixa vitalidade e integração de franjas e bordas seriam os mesmos: promoção da diversidade através de um diagnóstico das carências de usos principais, tamanho das quadras, distribuição etária e tipos de edifícios (5).

Já Kevin Lynch associa a vitalidade de um ambiente à sua capacidade de suportar a saúde (inclusive mental) e o bom funcionamento biológico dos indivíduos, assim como a sobrevivência da espécie. A noção de que a qualidade do espaço (no sentido da forma) pode influenciar diretamente a saúde física e mental das pessoas exige uma definição do que consiste a qualidade desta saúde, tema que não será aprofundado neste trabalho, limitando-se às interpretações de saúde e bem estar apontados pelo conjunto de autores estudados. Lynch sugere cinco “dimensões de performance” para a avaliação de espaços urbanos, no sentido do melhor atendimento às necessidades humanas:

a) vitalidade, o grau no qual a forma do assentamento suporta suas funções vitais, necessidades biológicas e, sobretudo, garante a sobrevivência da espécie. Este é um critério antropocêntrico, ainda que se possa admitir que o ambiente oferece suporte para outras espécies e que o bem estar humano muitas vezes depende desta relação e da presença de uma diversidade de espécies animais e vegetais.

b) sentido, a medida na qual um assentamento pode ser claramente percebido e mentalmente diferenciado e estruturado no tempo e espaço por seus residentes. A medida na qual esta estrutura mental se conecta com seus valores e conceitos – adequação entre o ambiente, as capacidades sensoriais e mentais da população e sua construção cultural.

c) adequação à escala, a compatibilidade das formas e capacidades dos espaços, canais e equipamentos, com o padrão e quantidade de ações que as pessoas usualmente realizam.

d) acesso, a capacidade de acessar outras pessoas, atividades, recursos, serviços, informação ou lugares, incluindo a quantidade e diversidade de elementos que podem ser acessados.

e) controle, o grau no qual o uso e o acesso aos espaços e atividades, e a sua criação, reparo, modificação e administração é controlado por aqueles que usam, trabalham ou residem no local (6).

As definições apontadas por Lynch estabelecem parâmetros gerais para interpretação e julgamento da qualidade dos espaços urbanos do ponto de vista de sua apropriação e uso. Por outro lado, a complexidade crescente dos assentamentos contemporâneos, muitas vezes faz emergir necessidades e interesses contraditórios, assim como interpretações destoantes em relação ao mesmo espaço. Bernardo Secchi afirma que, em relação à cidade contemporânea, questiona-se todo conhecimento – dedutivo – sobre o seu funcionamento, o que a torna resistente à sistematização, codificação e generalização (7). Secchi identifica, na raiz desta dificuldade, o que ele chama de “um sistema de múltiplas racionalidades”, que dialogam, se enfrentam e se complementam no projeto da cidade.

“muitas vezes interpretada como dispersão caótica de coisas e pessoas, de práticas e de economias, a cidade contemporânea, nas diversas escalas do espaço físico, social, econômico, institucional, político, cultural, caracteriza-se por um mesmo grau de fragmentação, produto de racionalidades múltiplas e legítimas, mas muitas vezes sobrepostas umas às outras, com limites invisíveis e difíceis de superar” (8).

Ainda segundo Secchi, grande parte da heterogeneidade das cidades de hoje teve origem no processo de identificação, separação e distanciamento, que teria sua raiz na emergência de um “sistema de intolerâncias”, ligado tanto à exigências higienistas e infraestruturais por parte da sociedade e da economia modernas, quanto à necessidade de maior privacidade individual e familiar. No início do século 20, esse paradigma consolidou na cidade o que Secchi chamou de um sistema de “valores posicionais”, indicando que o valor de um bem ou de um serviço pode depender não só de sua raridade ou de seu custo de produção, mas também de sua posição na sociedade ou na cidade. A cidade contemporânea poderia ser representada pela fragmentação, heterogeneidade e dispersão, devido à sua natureza instável, à velocidade dos acontecimentos e à mistura de interesses, o que é a causa de sua resistentência à simplificações. A dispersão e a fragmentação foram representados por Secchi como respostas parciais a um fenômeno metaforicamente traduzido como o enfrentado pelos porcos-espinho de Schopenhauer (9), ou seja, o da busca de uma distância ótima em um novo sistema de solidariedades e tolerâncias, de compatibilidades físicas, sociais e simbólicas.

A visão da cidade grande como espaço de desordem social, degeneração moral e criminalidade aparece também como parte do sentido metafórico que se atribui à urbanidade – expresso desde a antiga Babilônia até a Los Angeles contemporânea. Este aspecto do urbano foi apresentado por Mike Davis como uma conjugação de elementos utópicos e distópicos, geralmente caracterizados pela segregação espacial, produção de cenários diversificados e repressão policial (o termo “polícia” vem do grego polis, que significa “cidade”) (10). A experiência urbana expôe o melhor e o pior das capacidades humanas, a maior concentração de riquezas e o maior número de pobres. Em cidades como o Rio de Janeiro, onde a desigualdade econômica ainda constitui um "abismo social" (11), com frequencia emergem conflitos pelo uso do espaço urbano. A ação do Estado como regulador e legislador garante, entre outras coisas, a pregorrativa do uso da violência para o cumprimento das determinações legais.

A produção do espaço urbano decorre de processos variados e, muitas vezes, contraditórios. A rejeição de um modelo único de “boa cidade”, o reconhecimento dos diferentes olhares e da necessidade de um espaço urbano diversificado conduzem à maior flexibilização na produção deste espaço. Para Rodrigo Lopes a inserção das cidades em um mercado global, mediante a adoção de planos estratégicos, formulados por atores variados de dentro e de fora da cidade, seria a melhor resposta à suposta ineficiência do planejamento centralizador e burocrático (12). Segundo esta visão, a parceria dos governos com o capital privado cria oportunidades para a cidade, tanto quanto oportunidades de lucro para os investidores; o desenvolvimento em termos econômicos (atração de capitais externos, promoção da imagem da cidade no cenário internacional, instalação de novas indústrias, por exemplo), constituiria uma condição para a melhoria das condições de vida na cidade. Os Planos Estratégicos se popularizaram a partir da experiência de Barcelona nas Olimpíadas de 1994, quando a cidade passou por diversas transformações em sua forma, resultando suposta melhoria em suas funções econômicas e sociais.

Já David Harvey (13) questiona a submissão que o Estado parece assumir diante dos interesses de grandes empresas, afirmando que este modelo de desenvolvimento contribui para o aumento das desigualdades e a fragmentação do tecido urbano. O exemplo do Rio de Janeiro parece assumir diversos aspectos e tendências deste processo, que Harvey identifica como “empresariamento urbano”. Marcado por um discurso desenvolvimentista baseado na intensa divulgação da cidade como marca. O Rio vem sendo promovido sistematicamente como espaço de oportunidades para investimentos. Diversas intervenções do poder público, com intensa participação de setores privados, reforçam este posicionamento. A expectativa da Copa do Mundo e das Olimpíadas legitima grandes transformações, que pretendem consolidar a imagem do Rio de Janeiro como metrópole global. Entretanto, uma observação cuidadosa de alguns fatos referentes à distribuição dos benefícios (e potenciais impactos negativos) destas transformações, revela assimetrias sociais e ambientais, que se projetam no espaço urbano.

Sustentabilidade e equidade

"As economias que ignoram considerações morais e sentimentais são como bonecos de cera que, mesmo tendo aparência de vida, ainda carecemde vida real"
Mahatma Gandhi, Young India  (14)

Porque combater desigualdades econômicas, sociais e ambientais? Ou ainda, em que consistem estas desigualdades? A abordagem da questão emergiu do debate sobre a justiça ou injustiça da desigualdade. Em um conjunto de palestras de referencia em 1979, Amartya Sen propôs que se pensasse sobre a igualdade em termos de capacidades. A igualdade não é necessária nem suficiente para a equidade. Diferentes capacidades e preferencias individuais conduzem a diferentes resultados, mesmo com oportunidades e acesso a recursos idênticos. Apesar de diferenças conceituais, a iniquidade e a desigualdade de rendimentos estão estreitamente ligadas na pratica – porque as desigualdades de rendimentos são em larga medida o resultado de um acesso desigual às capacidades. Buscando superar os problemas originados por um desenvolvimento unicamente orientado para a expansão econômica, Amartya K. Sen (15) sugere uma reaproximação entre a ética, da economia e da política.

As preocupações com a sustentabilidade e a equidade são semelhantes num sentido fundamental: ambas se relacionam com a justiça distributiva. Os processos não equitativos são injustos, tanto entre grupos como entre gerações. As desigualdades são especialmente injustas quando desfavorecem sistematicamente grupos específicos de pessoas, quer devido a gênero, etnia, origem social ou modo de vida. Enquanto a sustentabilidade volta-se para o futuro, com a justiça intergerações e a possibilidade de manutenção de um determinado sistema, a equidade se volta para os problemas dos mais pobres e para as desigualdades do presente. Uma das importâncias sociais da sustentabilidade e da equidade enquanto condições desejáveis para a construção de cidades é sua capacidade de reintegrar indivíduos e comunidades, através da inclusão e do trabalho digno.

Uma outra concepção, a "Teoria da Equidade", formulada por John Stacy Adams (16), refere-se à motivação de um indivíduo a partir do reconhecimento de suas contribuições para determinada coletividade (seja uma empresa, bairro, cidade ou nação). O autor parte do princípio de que a motivação depende do equilíbrio entre o que a pessoa oferece à organização através do sistema produtivo (o seu desempenho) e aquilo que recebe através do sistema retributivo (a sua compensação). Assim, uma sociedade sustentável seria aquela na qual todos os indivíduos sentem-se devidamente recompensados por suas atividades produtivas. Estas atividades podem ou não ser realizadas dentro do mercado.

Nos debates sobre o desenvolvimento humano fomentados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), questões de equidade dizem respeito a “problemas de imparcialidade e justiça social e de um maior acesso a melhor qualidade de vida” (17). Desde os anos 1970, a atenção dada à problemática ambiental contribuíu para uma ampla reconceituação do desenvolvimento, em termos de sua relação com a base material de onde extrai recursos, as condições de vida da sociedade e o modo de disposição dos resíduos. Esta reconceituação conduziu à formulação dos termos "ecodesenvolvimento" (18) e, porteriormente, "desenvolvimento sustentável" (19).

Em oposição ao desenvolvimento considerado "excludente" (do mercado de consumo) e "concentrador" (de renda e riqueza), marcado pela segmentação dos mercados de trabalho, elevada informalidade, acesso precário à proteção social e fraca participação na vida política, Ignacy Sachs propõe uma modalidade de desenvolvimento "includente", que teria como pontos fundamentais:

a) a Democracia, garantia de transparência e responsabilização pelas ações individuais, coletivas e institucionais.

b) o acesso, em igualdade de condições, a Programas de Assistência para deficientes, mães e filhos, idosos, enfim, voltados para a compensação das desigualdades naturais ou físicas. Além disso, Políticas sociais compensatórias financiadas pela redistribuição de renda poderiam incluir subsídios ao desemprego ou sub-emprego.

c) a igualdade de oportunidades no acesso aos Serviços Públicos, tais como educação, proteção à saúde e moradia (20).

A Educação é considerada essencial para o desenvolvimento, na medida em que contribúi para o despertar cultural, a conscientização, a compreensão dos direitos humanos, aumentando a adaptabilidade e o sentido de autonomia, assim como a auto-confiança e a auto-estima. Apesar da importância dos serviços de saúde, o objetivo de uma política includente deve ser a melhoria da saúde das pessoas, o que depende, entre outras coisas, de alimentação adequada, acesso à água limpa e esgotamento sanitário, condições adequadas de moradia e trabalho, de boa educação e medidas preventivas, como vacinação. A inclusão ou não da Moradia entre os Serviços Públicos movimenta um debate ainda sem solução. A história dos conjuntos habitacionais promovidos em larga escala pelo poder público revelou resultados pouco satisfatórios (a conversão de certos conjuntos em favelas, por exemplo), no entanto, a provisão de moradia decente para todos constitúi um enorme desafio para um desenvolvimento que se pretenda includente e sustentável.

Sem adentrar o campo de debate sobre os limites entre as esferas pública e privada, assim como a definição dos bens públicos, é importante fazer uma distinção entre as políticas conpensatórias (que poderiam ser financiadas pela redistribuição de renda mediante o sistema fiscal) e as políticas de emprego, que mudam a distribuição de renda primária (21). Embora ambas sejam necessárias, segundo Sachs, as primeiras são de natureza puramente social e requerem despesas contínuas, enquanto as segundas, mediante a criação de oportunidades de trabalho decente, geram renda e proporcionam uma solução duradoura ao problema do desemprego.

Medidas de equidade urbana se relacionam à distribuição, no território, de equipamentos e redes de infra-estrutura, possibilitando melhor qualidade de vida para maior número de habitantes da cidade. Entretanto, a complexidade das relações entre as periferias e as centralidades locais e, destas com os grandes núcleos metropolitanos dificulta a averiguação deste atributo. As divisões administrativas nem sempre refletem a diversidade de apropriações e grupos sociais que dividem (e, muitas vezes, disputam) o uso do espaço.

Demolição da perimetral, zona portuária na área central do Rio de Janeiro
Foto Tânia Rêgo [Agência Brasi]

Diversos conflitos emergem da desigual distribuição dos benefícios urbanos e da difícil condição da propriedade da terra enquanto mercadoria. No caso do Rio de Janeiro, as remoções e demolições decorrentes dos projetos da Cidade Olímpica são um bom exemplo destas tensões, a partir do qual é possível avaliar possíveis beneficiados com as transformações, assim como aqueles prejudicados pelas mesmas. Outros conflitos comuns aos grandes centros dizem respeito ao uso da água (casos de racionamento e falta d'água), ao usufruto da paisagem (construções que obstruem a vista ou reduzem a privacidade), ao acesso aos serviços públicos (vagas em hospitais e escolas, por exemplo), à locomoção e acessibilidade. A natureza participa destes conflitos tanto no sentido dos bens e serviços por ela proporcionados quanto do respeito à existência de outras espécies e ecossistemas. Estes dois aspectos são colocados em risco com a expansão urbana desenfreada, o que reforça importância da consideração pela ecologia urbana nos debates sobre sustentabilidade e equidade.

Conflitos distributivos e justiça ambiental urbana

A avaliação dos custos de construção e manutenção dos assentamentos humanos e seus artigos de consumo deveria levar em consideração interdependências (ou “externalidades”) locais, regionais e até internacionais para apontar com maior precisão os custos monetários e ecológicos destes sistemas. No início do século 20, o biólogo e planejador urbano Patrick Geddes pretendeu promover uma visão biofísica da economia, como um subsistema incorporado a um sistema mais amplo de relações entre a ecologia, a geografia e o urbanismo. Em tempos de globalização, quando se distanciam as relações de causa e efeito entre a produção e o consumo de bens, muitas vezes, como evidencia Alier:

“os cidadãos ricos buscam satisfazer suas necessidades ou desejos por intermédio de novas formas de consumo que são, em si mesmas, altamente intensivas na utilização de recursos. Esse é o caso, por exemplo, da moda de degustar camarões importados dos países tropicais ao custo da destruição dos mangues, ou da aquisição de ouro ou diamantes” (22).

Apesar da crescente reivindicação por medidas compensatórias para impactos ambientais e, secundariamente, para os sociais, deve-se considerar os limites da valoração de determinadas transformações ocasionadas pela exploração de recursos humanos e naturais. Os gregos faziam distinção entre os termos oikonomia (arte do aprovisionamento material da casa familiar) e crematística (estudo da formação dos preços de mercado, para ganhar dinheiro) (23). O primeiro representava a riqueza verdadeira e os valores de uso, o segundo representava os valores de troca e algo próximo do que hoje seria entendido como oferta e procura. Esta distinção parece hoje irrelevante porque o aprovisionamento material se dá, predominantemente, através de transações comerciais. Ainda assim, muitas atividades são realizadas no interior do núcleo familiar e muitos serviços da natureza ocorrem fora do mercado – basta contabilizar as horas dedicadas às atividades domésticas ou a pescaria amadora nas cidades costeiras.

As externalidades, por sua vez, são custos não contabilizados de uma determinada operação, gerando consequencias para terceiros. Segundo Luciana Togeiro, "as externalidades ocorrem porque o bem em questão (meio ambiente/recursos naturais) não é propriedade de ninguém, ou melhor, é de domínio universal” (24). Este é o caso do lançamento de afluentes industriais em corpos d'água, ou da destruição de certos ecossistemas para a produção pecuária extensiva. Nestes dois casos, o exercíco da propriedade sobre os corpos d'água e a biodiversidade é praticado, ainda que seus custos não sejam assimilados pelas industrias e proprietários de terras. Entretanto, a consequente escassez da pesca em comunidades ribeirinhas, assim como a perda de espécies animais e vegetais pode ser considerada externalidade do processo, gerando prejuízos econômicos e imateriais difíceis de contabilizar. A proposta do economista inglês Arthur Cecil Pigou, ainda em 1920, sugeriu o estabelecimento de taxas e impostos para neutralizar os danos dos custos externos (ou externalidades), entre eles, os danos ambientais de variadas origens – princípio do poluidor pagador.

Alier ressalta a importância das questões distributivas social e ecologicamente, para a decisão produtiva de qualquer atividade econômica que seja (25). Em termos econômicos, existem fortes interesses de que as externalidades permaneçam como tal – fora da contabilidade dos resultados e do balanço da empresa. As decisões seriam diferentes caso tais passivos ambientais e sociais fossem incorporados na sua conta (na forma de algum valor econômico). Além disso, os aspectos distributivos ambientais não recaem unicamente sobre os produtores, podendo influenciar uma área indeterminada (no caso de agrotóxicos, por exemplo, ou da poluição ocasionada pelos automóveis). Isto possui, ainda segundo o autor, influência nas formas assumidas pelos conflitos ecológicos, que podem variar de acordo com o modo pelo qual se da a mobilização popular, os atores envolvidos e os métodos de valoração utilizados (26).

Existe uma hipótese de que a economia passaria por uma transição para uma fase "pós-materialista", centrada nos serviços e no turismo, reduzindo as indústrias nos países mais desenvolvidos e, assim, reduzindo impactos sobre o meio ambiente. Isto, no entanto, desconsidera que o dinheiro obtido nesta economia irá destinar-se à aquisição de bens cuja produção requer utilização de recursos naturais e energia. No Rio de Janeiro, por exemplo, a utilização residencial de energia elétrica aumentou mais de 30% entre 2002 e 2010. a geração per capta de resíduos também aumentou de 240 para 270 kg por ano, segundo dados do Institudo Pereira Passos e da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro (27). Isto contribúi para que hajam progressivamente mais conflitos locais e globais relacionados com a partilha geográfica e social da contaminação (inclusive decorrente da falta de saneamento, erosão, congestionamento, etc.) e sobre o acesso aos recursos naturais (inclusive as paisagens e outros bens de difícil mensuração e valoração).

Para Swyngedouw e Heynen, a questão da sustentabilidade urbana trata, essencialmente, da distribuição das amenidades ambientais, tanto quanto dos riscos (28). Embora a noção de risco ambiental incorpore certa imprevisibilidade na distribuição de seus efeitos, é possível estabelecer correlações entre o padrão sócio-econômico dos assentamentos e a exposição aos efeitos negativos da urbanização e da exploração dos recursos naturais. Isto porque as atividades que causam maior impacto negativo (aterros sanitários, indústrias químicas, plantações que utilizam agrotóxicos) tendem a se instalar em áreas desvalorizadas do território. Da mesma forma, muitas aglomerações irregulares não contam com saneamento básico, o que multiplica riscos ambientais. Esta distribuição assimétrica de riscos e amenidades ambientais também parece responder ao que Bernardo Secchi chamou de "valores posicionais".

São inúmeras as exposições dos mais pobres aos efeitos nocivos do desenvolvimento sobre o ambiente urbano, desde o tempo perdido no trânsito em transportes coletivos, até o risco de deslizamento da casa, construída em encosta; o risco de ser despejado do terreno, do qual não possui título de propriedade; risco de doenças decorrentes do saneamento inadequado; risco de ficar desempregado, de não poder sustentar a família. Percebe-se que a distribuição desigual da propriedade urbana, dos equipamentos de uso público, dos serviços de infra-estrutura e da renda levam à produção de espaços de maior fragilidade ambiental e social, fragmentados em relação à cidade, nos quais mais se percebe os fatores de insustentabilidade.

No Rio de Janeiro, se observa, por outro lado, uma convergência de recursos públicos e privados, na forma de grandes transformações na infra-estrutura e acelerada dinâmica imobiliária, promovendo a remodelação de antigos bairros e a expansão dos limites (e da importância econômica) de outros. Neste processo, além das mudanças na paisagem e da incorporação de espaços naturais, também são observados conflitos de interesse quanto ao uso dos espaços urbanos - o que se manifesta nas remoções (nem sempre pacificas) promovidas pelo poder público, em ações contrárias às mudanças (a ocupação do Museu do Índio, por exemplo) e na política de ocupação armada de favelas.

A popularização dos conceitos de "sustentabilidade" e "desenvolvimento sustentável" parece decorrer da imprecisão destes termos. Se as cidades atuais revelam-se insustentáveis, torna-se necessário estabelecer critérios que definam uma cidade sustentável, segundo as dimensões social, econômica, ambiental, territorial e política. Assim, a produção de indicadores torna-se uma importante ferramenta do planejamento urbano, inclusive, tirando grande proveito de outros instrumentos contemporâneos, como a internet e softwares de geoprocessamento.

Apesar do relativo avanço na produção de estudos e interpretações sobre a (in)sustentabilidae das cidades, a definição dos objetivos e, sobretudo, das etapas de uma "transição para a sustentabilidade" (29) ainda são pouco claros ou, quando definidos, muitas vezes, não são aplicados. Além disso, são frequentes os enfrentamentos entre a proteção do meio ambiente e os recursos naturais, a qualidade de vida urbana e a produtividade da economia. Estes enfrentamentos tomam forma em conflitos pelo uso do solo e demais recursos urbanos, que podem ser bem definidos, como a resistência às remoções no Rio, ou difusos, como congestionamentos na hora do rush e doenças endêmicas provocadas pela poluição.

Pode-se ponderar que a experiência urbana é conflituosa em si, posto que envolve o tolhimento de liberdades em benefício da coexistência organizada. No entanto, a extrema desigualdade de condições sociais e territoriais observada nas grandes cidades brasileiras leva a crer que estes enfrentamentos não ocorrem em igualdade de condições. Os mais pobres, via de regra, são mais expostos aos riscos e impactos ambientais decorrentes da insustentabilidade urbana, ainda que pouco contribuam para os fatores de maior degradação. Isto ocorre porque seu poder de escolha (mobilidade e consumo de bens e serviços) é limitado pela renda, o que também acarreta fraco poder de negociação diante dos conflitos territoriais e fraca representatividade política.

notas

1
LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade. Lisboa, Edições 70, 1981. p. 4.

2
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução de Carlos Rocha. São Paulo, Martins Fontes, 1961; ROSSI, Aldo (1966). A arquitetura da cidade. 2ª edição, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2001; LYNCH, Kevin (1960). A imagem da cidade. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997; LYNCH, Kevin. A boa forma da cidade (op. cit.).

3
Por exemplo, o simpósio temático coordenado por Vinícius Neto, apresentado no II Enanparq, intitulado “Forma e vitalidade urbana: Impactos de padrões de urbanização e arquitetura sobre as dinâmicas da cidade”, no qual foi discutida a relação entre a forma urbana, suas qualidades ambientais e vitalidade, a partir de metodologias predominantemente quantitativas.

4
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 8.

5
Idem, ibidem, p. 437.

6
LYNCH, Kevin. Op. cit., p. 118.

7
SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 2006.

8
Idem, ibidem, p. 56.

9
“Pode ser que os homens estejam ficando como os porcos-espinho de Schopenhauer: quando o inverno é frio os porcos-espinho, procurando um pouco de calor, comprimem-se entre si, mas os espinhos de um espetam a carne do outro. Os porcos-espinho, então, afastam-se e sentem frio. [...] ao fim, eles encontram uma distância adequada, na qual  não sentem nem muito frio, nem muita dor. A cidade contemporânea, cidade ainda instável, talvez esteja à procura da distancia adequada”. SECCHI, Bernardo. Op. cit., p. 60.

10
DAVIS, Mike, Cidade de quartzo, escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo, Página Aberta, 1993, p. 17-89.

11
MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classessociais. Petrópolis, Vozes, 2002.

12
LOPES, Rodrigo, A cidade intencional – o planejamento estratégico de cidades.  Rio de Janeiro, Muad, 1998.

13
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a  transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, São Paulo, n. 39, NERU, 1996, p. 48-64.

14
GANDHI, Mahatma. Young India. 1923.

15
SEN, Amartya (1987). Sobre ética e economia. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

16
ADAMS, John Stacy. Teoria da equidade: para uma teoria geral da interação social. Nova York, Academic Press, 1976.

17
PNUD – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Relatório do Desenvolvimento Humano 2011. Sustentabilidade e Equidade. Um futuro melhor para todos. Nova York, 2011, p. 4.

18
SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. Tradução E. Araujo. São Paulo, Vértice, 1981, p. 14.

19
WCED (World Commission on Environment and Development). Our Common Future. Oxford, Oxford University Press, 1987, p. 23.

20
SACHS, Ignacy, Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro, Garamond, 2004, p. 39.

21
Idem, ibidem, p. 42.

22
ALIER, Joan M. Ecologismo dos pobres. Conflitos ambientais e linguagens de valoração. Tradução Maurício Waldman. São Paulo, Contexto, 2011, p. 44.

23
Esta distinção aparece na Política de Aristóteles.

24
TOGEIRO de A., Luciana. Política ambiental: uma análise econômica. São Paulo, Unesp, 1998, p. 28.

25
ALIER, Joan M. Op. cit., p. 51.

26
Idem, ibidem, p. 52.

27
Armazém de Dados. Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos <www.armazemdedados.rio.rj.gov.br> Acessado em Janeiro de 2013.

28
SWYNGEDOUW, Erik; HEYNEN, Nikolas. Urban Political Ecology. Justice and the Politics of Scale. Antipode, vol. 35, n, 5, 2003, p. 899-918.

29
Como referiu-se o documento de criação da Macrozona de Especial Interesse Econômico MACROZEE da Amazônia Legal. Ver: COMISSÃO COORDENADORA DO ZEE DO TERRITÓRIO NACIONAL. Estratégias de transição para a sustentabilidade. Brasília, Ministério do Meio Ambiente, s/d.<www.mma.gov.br/estruturas/ascom_boletins/_arquivos/24_03_macrozee_08_83.pdf>. Acessado em Janeiro de 2013.

sobre o autor

Rafael Koury, graduado em Arquitetura e Urbanismo (2010), mestre em Planejamento Urbano, Espaço Construído, Sustentabilidade e Ambiente pela Universidade Federal Fluminense e professor de Projeto Arquitetônico na Universidade Salgado de Oliveira.

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179.00 vitalidade urbana
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179

179.01 design

Modernidade e tradição no design de interiores

A casa de Ernesto Korrodi (1870-1944)

Mónica Romãozinho

179.02 patrimônio

O sumo bem contra a ruína da sociedade

Ilustração católica e mística feminina na fundação do Recolhimento da Luz em 1774

Amilcar Torrão Filho

179.03 meio ambiente

Questões estruturais da cidade

Leituras possíveis

Liliane Alves Benatti and Manoel Lemes da Silva Neto

179.04 patrimônio

A dimensão urbana do patrimônio na Carta de Atenas de 1931

As contribuições da delegação italiana

Renata Campello Cabral

179.05 cultura popular

Modos de expor no comércio popular

Do barroco ao mestiço

Ludmila Brandão

179.06 patrimônio

A preservação do “saber fazer”

A taipa-de-mão do “Canto do Sabiá”

Ronaldo Marques de Carvalho, Cybelle Salvador Miranda, José Antonio da Silva Souza, Alcebíades Negrão Macêdo and Brena Tavares Bessa

179.07 restauro

Do restauro à recriação

Juliana Cardoso Nery and Rodrigo Espinha Baeta

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