O interesse pelas questões da preservação do patrimônio cultural no Brasil por muito tempo se figurou como preocupação de pouquíssimos, entre indivíduos e instituições, mesmo depois da criação do Sphan, atual Iphan, em finais dos anos 1930 – e assim se manteve em representativa parcela do século 20. Com a condição dada a algumas obras e/ou conjuntos brasileiros declarados Patrimônio da Humanidade pela Unesco a partir dos anos 1980, inicia-se um movimento de ampliação e crescimento dos interessados pela preservação que vem ganhando ainda maiores incrementos nessas últimas décadas. Esse crescimento vinculado, mas não apenas motivado pela exclusiva preocupação com a salvaguarda de nosso patrimônio, tem seus enlaces com a centralidade e objetos de cultura no que Fredric Jameson (1) denomina de capitalismo tardio e o modo particular com que essa lógica global ganha especificidades em suas manifestações nessa parte do planeta. Assim, bem mais que os objetos tradicionais de interesse de preservação, são as possibilidades de reprodução do capital que parecem dar luz e motivação às políticas e ações de preservação, bem como promover o crescente envolvimento de instituições e indivíduos com as questões da preservação.
Se por um lado é animador acompanhar esse movimento de valorização das demandas da preservação, por outro é bastante preocupante o pouco conhecimento, para não dizer completo despreparo, que muitos que se arriscam a atuar nessa área revelam – tanto em posicionamentos teóricos, como em ações práticas nas diferentes escalas e objetos da salvaguarda do patrimônio, do material ao imaterial. Esse despreparo de alguns agentes responsáveis pelas tomadas de decisão – entre gestores, autores de projetos e a vasta gama de profissionais envolvidos – podem causar danos irreparáveis ao patrimônio cultural. Um grande risco está na dificuldade e/ou inabilidade desses agentes de discernir entre os interesses da preservação-conservação e aqueles da reprodução do capital, bem como identificar os conflitos gerados nos delicados enlaces entre eles. As tangências efetivas desses enlaces são bem menores e mais tensas que aquelas defendidas pelos discursos da sustentabilidade, em particular àquelas voltadas para a economia do turismo como principal estratégia para garantir a perpetuação do patrimônio cultural. A inabilidade dos agentes em valorar os interesses envolvidos, bem como a recorrente colisão entre eles, geralmente leva à prevalência da resolução das questões em favor do capital em detrimento das efetivas preocupações do patrimônio e sua preservação. O resultado muitas vezes é a pasteurização patrimonial – em certa medida, facilitada e legitimada pela relativização e fragmentação das formas de pensar na contemporaneidade – da qual restam apenas caricaturas artificiosas ou pálidos espectros do que um dia foram saberes e fazeres, longa e ricamente tecidos na espessura da história de um lugar e de um povo, responsáveis pela configuração dos elementos materiais e imateriais de interesse de preservação.
Logo, esse trabalho tem, por objetivo, tratar de uma pontual, porém central discussão voltada especificamente para o princípio guia das intervenções projetuais em patrimônios edificados, sejam eles edifícios isolados ou conjuntos históricos. Parece, nos dias de hoje – eventualmente com algumas louváveis exceções –, que qualquer ação sobre uma preexistência de interesse de preservação vem sendo nomeada como restauro e que dentro dessa então alargada categoria se estabeleceriam graus variantes da disciplina. Esse tipo de entendimento vem criando complicados posicionamentos que, em alguns casos extremos, levam a completa descaracterização do objeto de preservação sem nenhuma consciência do que se está realmente criando. Frequentemente, referenciais teóricos são equivocadamente aplicados ou outros descartados, não por seu esgotamento, mas pela inadequação de seu uso ao objeto em questão. E é nesse momento que nos parece ainda mais necessário o debate de caráter teórico que nos permita minimamente estabelecer as bases e condições de embate.
A descontinuidade da tradição construtiva e a necessidade da preservação
A modernidade implicou numa reconfiguração cortante para as lógicas de vida e produção do homem que obviamente não se deu abruptamente, mas acelerou o ritmo e teor das transformações a tal ponto que em pouco mais de dois séculos modificou irremediavelmente todas as formas de produção. Na arquitetura, a natureza das mudanças foi de tal ordem que rompeu vínculos milenares com os saberes e fazeres tradicionais e provocou um abismo quase intransponível entre criação e tradição, entre o novo e o antigo.
O problema da descontinuidade arquitetônica e construtiva que insere a necessidade de preservação das obras do passado tem seu germe na Revolução Industrial, mas se desenvolve no desconcertante século XIX e tem sua inscrição definitiva na cultura ocidental com as vanguardas estéticas do início dos anos mil e novecentos, atingindo seu ápice com o Movimento Moderno. Segundo Francisco de Gracia, mesmo que a ideia de modernidade já existisse claramente desde o Renascimento, é somente no início do século XX que movimentos artísticos e arquitetônicos irão renegar a possibilidade de sua própria continuidade, através de suas posturas anti-historicistas. Para ele isso gerou um impacto irreversível na cultura arquitetônica ocidental, cuja uma das piores sequelas foi a postura imperativa de modificação dos lugares por parte dos arquitetos: “Una consecuencia de esa incontinencia ha sido la inclinación de los arquitectos a modificar los lugares en vez de mejorarlos, sin reparar en que la mejora no siempre acompaña a la modificación” (2).
Essa questão se mostra central na continuidade-descontinuidade da tradição arquitetônica. Enquanto a mimesis foi a guia do processo criativo e as condições construtivas se mantiveram subordinadas aos materiais e técnicas tradicionais, as criações na arquitetura seguiam a ordem da continuidade, e o presente e o passado não eram postos em campos opostos. Assim, a perpetuação das técnicas e soluções se dava de maneira natural e necessária, como parte de uma natureza viva que sempre se renova para perpetuar a si mesma.
O abandono da mimesis como propulsora da criação e a utilização de materiais industrializados na construção – ocorridos ainda no século XIX –, conjugadas a atitude niilista e anti-histórica das vanguardas do início do século XX, colocaram, definitivamente, em campos opostos, os problemas da criação de novas obras e a questão da preservação de obras do passado: disciplinas que já vinham se diferenciando, explicitamente, ao longo do século anterior, quando surge, propriamente, um campo específico de atuação sobre obras que deveriam ser perpetuadas e um corpus teórico que buscava balizar as práticas desse novo campo.
Portanto, o abandono das técnicas e formas tradicionais da arquitetura – identificadas com um passado então necessariamente diverso do presente – e as paulatinas substituições por soluções construtivas e plásticas modernas da era industrializada é contributo essencial para a necessidade de se perpetuar artificialmente as obras antigas. Isso se dá, também e fundamentalmente, pela imperativa necessidade do novo, como valor de novidade na era moderna capitalista. Esse valor só é passível de compreensão ou existência no confronto com seu oposto; ou seja, é somente na diferença entre o que é novo e o que é antigo, que o novo pode acontecer. É assim então que, nas descontinuidades que o moderno estabelece com o passado, se instauram concomitantemente a condição da concepção do novo como algo inédito e a necessidade de salvaguarda do antigo. Segundo Odete Dourado:
“A consciência da fugacidade do tempo, própria do mundo moderno, leva, inevitavelmente e em consonância com ela, à produção de objetos materialmente fugazes, nos quais a atualidade do ‘novo’ cede rapidamente espaço ao seu contrário, o ‘não-mais-novo’, o descartável, por já obsoleto. Nesse mundo, nada pode ser feito para durar, nem mesmo as arquiteturas cuja tradição fincou na solidez ou duração uma de suas bases mais tradicionais.
[...] Se é verdade que o chamado Movimento Moderno é fruto desse caldeirão cultural, é também verdade, e cabe aqui insistir, que dele emergirá a necessidade imperiosa de preservar ou de fazer escapar da voracidade e fluidez do tempo especiais produtos da atividade humana a que atribuímos valor de arte e de história” (3).
Nesse vigoroso movimento, criação e preservação arquitetônicas foram colocadas em lados opostos desde o século 19 e ainda – mesmo com algumas tentativas de reaproximação no último quartel do século 20 e início do 21 – parecem manter suas diferenças em campos irreconciliáveis.
Alargamento e deslocamentos do campo da preservação
Se as vanguardas do início do século 20 complicaram o já intricado campo da intervenção sobre preexistências e da conservação do patrimônio edificado, as questões antropológicas e sociológicas atreladas à necessidade de recuperação de generosas áreas centrais das cidades europeias bombardeadas na Segunda Grande Guerra dão ainda maior complexidade aos problemas debatidos. Pode-se flagrar, nesse momento, a incipiência do deslocamento da centralidade da matéria nas preocupações e embates – e a posterior ampliação do universo da preservação.
Os deslocamentos e ampliação do campo da preservação tomam fôlego na Europa em meados dos anos 60, com as mudanças de paradigma que, em detrimento da dureza e rigor da objetividade, bem como da padronização, passam a valorar as subjetividades, as idiossincrasias e a diversidade. É nos anos 1960 que Françoise Choay (4) identifica o alargamento e diversificação do universo dos bens patrimoniais edificados. É também nesse momento que Cesare Brandi, em sua Teoria del Restauro, lançada em 1963 (5), dá supremacia ao aspecto e considera a matéria ao defender a intervenção no suporte para restauração da imagem da obra de arte. Esse autor, ao separar estrutura e imagem, e colocar a primeira a serviço da segunda, acaba por relegar a um plano inferior a importância da matéria, num passo crucial no processo de “relativização da materialidade”.
“A relativização da materialidade é uma tendência contemporânea que transfere importância dos aspectos materiais para os aspectos imateriais do patrimônio. Um exemplo claro desta tendência é a mudança que nos levou do conceito de ‘monumento’ ao conceito de ‘lugar’. [...] A importância dada à materialidade vem sendo relativizada ao longo da história, chegando a um ponto no qual Cesare Brandi (1963) pôde declarar que a matéria deve ser preservada enquanto veículo para manifestação da imagem” (6).
Se as teorias do século 19, mesmo em suas divergências entre a intervenção incisiva e a não intervenção, tinham centradas na materialidade do objeto todas as preocupações e proposições sobre o patrimônio, as reflexões mais contemporâneas depositam o cerne de suas preocupações nos significados e capacidade comunicativa do patrimônio cultural – a exemplo de autores como Muñoz Vinhas (7). Esse deslocamento de valoração materialidade-imaterialidade provocou mudanças significativas nos enfrentamentos do campo da preservação do patrimônio edificado, em especial na incorporação do entorno natural e construído dos monumentos – o que deslocou o problema da preservação do bem circunscrito campo do edifício para o complexo universo da cidade. E é desse modo que, de edificações isoladas, os objetos do patrimônio edificado passam a figurar como conjuntos e sítios históricos, atualmente chamados de lugares de memória, gradualmente incorporando problemas cada vez mais diversos e multifacetados nas questões da preservação. A relativização do suporte – que coloca na imaterialidade os operadores de valor (8) da materialidade (agora bastante expandidos) – abriu o campo da valoração e preservação da própria imaterialidade, entre saberes, fazeres e práticas sociais tradicionais, ampliando ainda mais o horizonte da área. Se, por um lado, a expansão e flexão dos objetos, conceitos e instrumentos de preservação possibilitam uma melhor e mais rica aproximação com a cultura tradicional e suas tão diversas e particulares manifestações, por outro a ampliação excessiva do campo e o afrouxamento dos referenciais podem gerar um estiramento descomedido e uma banalização que façam desaparecer seus limites, mesmo que eles nunca tenham sido absolutamente nítidos.
De um lado esse estilhaçar do campo, em última instância, pode levar à impertinência da tentativa do congelamento de todas as manifestações e produções humanas, visto que tudo que o homem produz é histórico, é cultural e digno de preservação. E assim, como nos aponta Win Wenders, no artigo “A paisagem Urbana” (9), se esvairá qualquer tipo de possibilidade de significância: “Quando há muito o que ver, quando uma imagem é muito cheia, nada se vê. ‘Muito’ torna-se bem rápido ‘absolutamente nada’”(10).
O desaparecimento dos limites do campo também pode levar ao absoluto oposto, no qual nada deve ser preservado artificialmente, pois a preservação se daria na natural renovação entre recriação/inovação/esquecimento nas e das manifestações e produções da cultura humana. Evidentemente que num mundo neoliberal, esse extremo é bem mais plausível de se tornar realidade e os discursos contemporâneos, consciente ou inconsequentemente, vem legitimando essa direção:
“Por último, debemos señalar en esta introducción la convicción de que toda preservación del patrimonio edificado ha de apoyarse en acciones positivas, admitiéndose que la vieja arquitectura – también la vieja ciudad – ha de someterse a una verificación activa donde deberán determinarse los límites de la acción conservativa y de la acción modificadora, evitándose la hipertrofia de lo que Aloïs Riegl definió como el valor de antigüedad, quien, refiriéndose al monumento histórico-artístico, afirmó, ya en 1903, que ‘el culto al valor de antigüedad actúa en contra de la conservación del monumento’” (11).
Ainda nesse mesmo direcionamento, que chama o arquiteto em sua especificidade de ação positiva e propositiva sobre o ambiente, para a sua atuação efetiva frente ao patrimônio edificado, Maria Lagunes afirma:
“Preservar una región entera con actitud responsable no sólo desde un punto de vista cultural sino también desde una óptica social, económica, en el respeto del ambiente y sin la falsificación de sus valores, porque en ella los bienes culturales coinciden con los motores de desarrollo, es el resto de las próximas décadas. Y en la solución de problemas delicados y complejos, que pueden ser enfrentados solamente a través de un proyecto, los arquitectos deberán recuperar, demostrando talento y vocación, su papel frente a la sociedad contemporánea” (12).
Esses encaminhamentos mesmo que busquem defender a salvaguarda do patrimônio, acabam por abrir o flanco da intervenção sempre e necessariamente renovadora. Há ainda aqueles que condenam com maior veemência qualquer forma de conservação patrimonial, cuja critica é bastante ácida em relação a toda ação de preservação do patrimônio vista como puramente capitalística. Em seu avesso, acabam por reforçar a ação livre do capital, ao fomentar a liberação renovadora totalmente descomprometida com qualquer preexistência, no esvaziamento de todos os demais significados que os objetos do patrimônio possam ter para além de seus usos em prol da reprodução do capital e da espetacularização da cultura no mundo atual:
“Todo o discurso promocional sobre as relações entre patrimônio e a identidade instala apenas um ato de legitimação institucional que dá um sentido construtivo à angústia do desaparecimento dos traços culturais. A verdadeira questão social da conservação patrimonial é a resistência emotiva ao declínio, ao abandono, à decrepitude, enfim a caça às rachaduras que cortam os muros. Sob sua organização institucional, o patrimônio não é simplesmente um negócio sentimental rentável?
[...] A restauração obstinada, representando a vitória contra a perecividade do campo ou das zonas urbanas, e tudo o que evoca a ruína surge como falha da comunidade em produzir uma bela imagem pública do patrimônio. [...] Os escombros e sinais de deterioração se tornam sinais do fracasso do território a tal ponto que o trabalho de salvaguarda se torna profilático. [...] Os prédios em ruínas podem servir de adorno, mas é necessário que estas ruínas não pareçam sê-lo, é preciso que elas construam um cenário” (13).
O atual momento de crise da noção de cidade se torna visível principalmente através das idéias de “não-cidade”: seja por congelamento – cidade-museu e patrimonialização desenfreada – seja por difusão – cidade genérica e urbanização generalizada. Essas duas correntes do pensamento urbano contemporâneo, apesar de aparentemente antagônicas, tendem a um resultado bem semelhante e que pode ser chamado de ‘espetacularização’ das cidades contemporâneas.
A corrente mais conservadora, pós-modernista tardia ou neo-culturalista, radicaliza a preocupação pós-moderna com as culturas pré-existentes, e preconiza a petrificação ou o pastiche do espaço urbano, principalmente de centros históricos, provocando uma museificação e patrimonialização, e também o surgimento da cidade-espetáculo” (14).
A questão central é a defesa que fazemos aqui da possibilidade e capacidade humana de discernir e valorar. Há manifestações e feitos memoráveis e há aqueles passíveis de esquecimento sem prejuízo representativo para a cultura. Há também outra infinidade deles que só fazem sentido de serem memorados em relação a outros, ou em certos contextos, em outras escalas. Preservar tudo ou nada é face da mesma moeda. Nesses extremos nega-se a riqueza das manifestações culturais e da própria existência humana que se tece entre o ordinário e o extraordinário. Talvez, tão importante quanto esses extremos seja a gama quase infinita do que está no meio, no que habita entre eles, só possível de aproximação na valoração diferenciada que se dá a ação humana material ou imaterial geradoras dos objetos de cultura. E é na compreensão e valoração dessas diferenças que se deve sim mover o pendulo da preservação/renovação.
Atrelada à importância da expansão do campo e ao reconhecimento das especificidades, é imperioso compreender a aplicabilidade e limites dos fundamentos teóricos e instrumentos práticos vinculados à natureza e complexidade diferenciada dos objetos de preservação. No entanto, essa diversificação de aportes não deve-se fundar numa estéril e pulverizada individuação exclusivamente pautada no “caso a caso”. É necessário que esse “caso a caso” se paute em guias conceituais que possibilitem estabelecer linhas condutoras e agregadoras desses tão diversificados problemas que incidem e/ou conformam os objetos de interesse de preservação.
Infelizmente, nos parece que o alargamento e interpolação de campos e interesses na preservação do patrimônio cultural levaram não só a saudável revisão e reflexão dos conceitos e instrumentos da área, mas também a um estiramento perigoso dos limites de alguns deles. Assim, ao invés de alargarmos ou abandonarmos alguns conceitos referenciais – o que resulta em atitudes muito próximas por esvaziar os termos de real significado e capacidade operativa – deveríamos precisar ainda mais cada um deles e distinguir suas aplicabilidades. Portanto, muito mais do que aplicar um referencial arquitetônico a uma questão antropológica e vice-versa, deve-se pensar nas tangências entre esses campos na busca da síntese interventiva.
Apesar da perda da centralidade da matéria, ela ainda é um dos mais fortes elementos sob os quais incidem a atribuição de significados e valores, bem como configuram e materializaram os desejos, as necessidades, as práticas, enfim os lugares. E como nos coloca Aldo Rossi (15), é o fato urbano o objeto construído que materializa o habitat humano. Mesmo que o valor não seja a matéria em si é sobre ela que incide a possibilidade de determinadas valorações. Assim, falar da especificidade de certos conceitos não é tentar dar um sentido de prevalência ou totalidade, mas apontar seus cruciais contributos no mosaico dos problemas da preservação, e devem ser entendidos como tal – desenvolvidos tanto nas suas especificidades, como em suas interpolações com os demais. O “caminho do meio” (16) implica o reconhecimento de que a ação de preservação no patrimônio edificado não é somente restaurativa, nem necessariamente recriativa, e que dentre as várias possibilidades de intervenção na preexistência o restauro, como um tipo bastante específico, ainda é uma das opções. Também vale frisar que a restauração ou a recriação, bem como a consolidação, a estabilização, a conservação preventiva ou a anastilose são apenas partes das ações de preservação.
As diversas possibilidades de intervenção no patrimônio edificado
“en panorama actual no es posible reconocer verdaderas ‘escuelas’ compactas y homogéneas (Roma, Milán, Génova, Florencia o Nápoles), ni existe una teoría de la restauración articulada y completa que iguale la elaborada por Cesare Brandi, sino más bien maneras de pensar o de operar autónomas, dirigidas, en buena medida, a consolidar una praxis operativa.
[...] Puede ser útil aclarar, sin embargo, que las diversas posiciones del debate actual sobre la restauración, en especial en lo que concierne al aspecto eminentemente técnico y de grados de intervención […] si sitúan en puntos no definidos precisamente porque prefieren recorrer el camino de la ambigüedad, mutando de una esfera a otra sin complejos y sin asumir posiciones radicales o perfectamente delineadas” (17).
Sem dúvida, a constatação da complexidade e pluralidade do campo e a diversidade cultural e especificidade de cada monumento, que levam a situações paradoxais e ao questionamento das teorias do restauro – como nos coloca Lagunes – são inegáveis. Porém, a excessiva relativização e fragmentação dos pensares, bem como a locação das bases do restauro em experimentos de ordem apenas técnica, retirando da reflexão teórica sua contribuição central como principal guia e instrumento de decisão, é ainda mais perigoso que os “verdadeiros horrores respaldados pela teoria brandiana” (18), que Lagunes aponta. São posturas como essa que, pelo menos no Brasil, acabam por turvar um campo já bastante emaranhado. Isto porque ela enfatiza a primazia do fazer sobre o pensar, sugere a autonomia absoluta dos casos particulares de intervenção e não explicita com a devida clareza a diferença entre intervenção e restauração – termos usados quase sempre como sinônimos. Ressaltamos que se pode afirmar que todo restauro é uma intervenção na preexistência, porém a recíproca não é verdadeira – nem toda intervenção na preexistência é (e nem precisa ser) um restauro.
A questão dos limites de validade da teoria brandiana está na sua pertinência de aplicação naquilo que ela se propõe: o restauro das obras de arte. É óbvio que fica evidente seu esgotamento e incapacidade instrumental ao aplicá-la a um universo mais amplo e diverso ao qual ela nunca se propôs a resolver. Se o pensamento contemporâneo admite a ideia de que a junção de fragmentos diversos e plurais podem se unir para dar conta da complexidade dos problemas atuais, podemos então, no lugar de abandoná-la, recolocar a teoria brandiana dentro do universo da preservação: ela não é mais a única guia; é agora um dos componentes centrais na conjunção dos campos aplicados a uma intervenção em uma preexistência quando esta for excepcionalmente uma obra de arte – não aplicável a demais objetos de interesse de preservação.
A crítica que faz Lagunes de que a teoria de Cesare Brandi é voltada apenas para problemas pictóricos não nos parece pertinente. Mesmo que a teoria tenha se desenvolvido, em primeira instância, para a temática de restauro em pinturas, a primazia que Brandi dá a imagem, e não ao suporte, não se refere à bidimensionalidade espacial das pinturas, em detrimento da tridimensionalidade escultórico, arquitetônica ou urbana. Ela apenas desloca da materialidade para a imaterialidade a preocupação central do restauro das obras de arte – caso no qual nada é mais essencial do que a imagem da obra. Por outro lado, a primazia da imagem não exclui a possibilidade da atenção à história estrutural. Os absurdos que talvez incidam sobre a estrutura de um edifício restaurado na linha brandiana se dão pela incompreensão ou má interpretação da própria teoria vinculada à pouca sensibilidade dos autores da intervenção – e não pela ultrapassagem de seus conceitos fundamentais. Além do mais, não se pode confundir o discurso declarado pelos idealizadores da intervenção dita restaurativa com a pertinência, a coerência, a qualidade e o valor emanado pela proposta e pela sua realização – segundo a própria teoria brandiana. Falar que se filiou a Brandi em uma suposta operação de recuperação do patrimônio edificado é fácil – isso não quer dizer que o arquiteto tenha, de fato, compreendido e transferido para o seu projeto o cerne do pensamento do crítico italiano.
Outro ponto importante para o debate encontra-se na manutenção do antagonismo entre preservação e criação, que insiste em prevalecer em nossos dias. Com toda a ampliação e desenvolvimentos das discussões sobre a conservação – o translado da centralidade da questão do material para o imaterial (19), do campo da objetividade para o das subjetividades – as atitudes e ações de preservação-restauração e aquelas da criação-inovação permanecem em extrema oposição. Ainda parece pairar no horizonte do campo a ideia de que restaurar não é projetar e que projetar é necessariamente recriar. Nessa perspectiva os discursos e práticas contemporâneas parecem tender para a defesa dos enfrentamentos criativos-modificadores frente às preexistências, legitimados pela ideia de uma tradição que, de um lado se perpetua na sua renovação e não no seu congelamento, e de outro, na delegação aos sujeitos e subjetividades envolvidas, a legitimação de decisões sobre o tipo e a forma de intervir.
Para autores como Francisco de Gracia, em seu livro Construir en lo construído, de 1996, Antón Capitel, em Metamorfosis de monumentos y teorías de la restauración, de 1999, e María Margarita Segarita Lagunes, no texto La restauración después de Cesare Brandi, de 2011 (20), apenas a ação projetiva e criativa serve de caminho para o enfrentamento dos problemas da preservação. Apesar da pertinência das afirmações, em todos os discursos essa ação seria necessariamente positiva e transformadora, o que exclui ou desqualifica a restauração dita “clássica” como possibilidade de atuação pertinente à contemporaneidade.
Ultrapassado a deliberada, radical e incisiva ruptura modernista com o passado em seus vários e variados tempos e expressões, a cultura contemporânea já pode estabelecer vínculos suficientes com as obras do passado que permitam intervenções criativas de continuidade e interação com a preexistência, como aponta esses mesmos autores. Sendo assim, não há motivo para o descarte ou desqualificação do restauro como uma das soluções possíveis frente à preexistência.
O restauro é uma, e apenas uma específica possibilidade de intervenção na preexistência que privilegia, exclusivamente, a recuperação da imagem parcialmente fraturada de um determinado objeto de preservação de importância artística excepcional. Em todos os demais casos, com maior ou menor preocupação em privilegiar a imagem antiga, as intervenções são de recriação de preexistências (excluídas, evidentemente, as anastiloses, consolidações, estabilizações, conservações preventivas e afins). Se naquelas intervenções preservacionistas de caráter mais conservador as inserções da contemporaneidade são silenciosas e pouco perceptíveis, nas modernizadoras essas ações são mais potentes e transformam por completo a preexistência – redefinindo o caráter figurativo da obra; produzindo outro objeto artístico, fundado na apreciação de uma imagem inédita baseada na junção entre o novo e o antigo, frequentemente em benefício do contemporâneo e em prejuízo do preexistente. Contudo, entre esses extremos são muitas as possibilidades e graus de interação entre o antigo e o novo, incluindo um equilíbrio de forças no qual os distintos tempos da obra possam ter igual importância no conjunto.
Obviamente, entre as escolhas do tipo de intervenção – se restaurativa, inserção silenciosa, intervenção equilibrada, ou operação transformadora –, apesar de serem muitos os fatores que acabam por intervir no caminho seguido, alguns pontos devem ser rigorosamente respeitados: em primeiro lugar, um denso conhecimento do objeto, da sua historicidade e de seu contexto, seguido de uma generosa sensibilidade crítica e grande erudição; e, por fim, o domínio profundo do significado da opção feita e seus impactos sobre a preexistência.
A restauração é uma intervenção na preexistência que objetiva, unicamente, restabelecer a unidade artística plena da obra, não redefinido seu caráter figurativo, não interferindo na imagem que ainda é apreendida – apesar da deterioração do material componente da obra – e também não comprometendo a legitimidade artística e histórica do monumento: “O restauro deve dirigir-se ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem apagar nenhuma referência da passagem da obra de arte no tempo” (21).
Portanto a intervenção de restauro, mesmo se portando como uma ação criativa e atual – um ato projetual – não pode se colocar à frente da obra preexistente, modificando o seu caráter; não pode alterar a imagem que era fruída anteriormente, para a inclusão de um novo aspecto. Este processo não se revelaria, de forma alguma, como uma falsificação, seja estética ou histórica; entretanto não poderia ser entendido como uma atitude restaurativa, pois redefiniria figurativamente o objeto, criando uma nova obra de arte. Mas é importante frisar que esse tipo de intervenção se aplica a uma minoria ínfima do que é hoje o universo da preservação. Aquela parcela bastante enxuta dos objetos que se enquadram na categoria de obras de arte, cuja condição de excepcionalidade e singularidade emanadas de suas imagens ultrapassa e subjuga quaisquer outros valores delas emanados ou nelas reconhecidos.
Neste sentido, a intervenção no Parlamento Alemão, o Reichstag de Berlin, é também um interessante exemplo de restauração que apresenta um duplo sentido. A cúpula envidraçada de Sir Norman Foster and Partners (1993-1999) recupera tanto a configuração do edifício, como restabelece a magnitude do edifício para seu contexto urbano, agora também em certa medida renovado. A cúpula metálica do século XIX era, dentre as perdas provocadas pelos ataques antes e durante a Segunda Grande Guerra, a grande lacuna ainda persistente. Para além dessa dupla ação restauradora, por ser de vidro com uma rampa que se desenvolve dentro dela, a nova cúpula acaba por oferecer novos panoramas de Berlim e assim recriar a percepção que se tem da própria cidade.
A construção da Galeria Myslbek em Praga, por Ahk Architekti em 1996, é um bem sucedido exemplar de restauro urbano. A galeria levantada sobre a testada do lote e de mesmo gabarito das construções adjacentes dá continuidade à conformação e ocupação urbana antiga da Praça OvocnýTrh – mas também se abre, em outra face, para uma movimentada via de tráfego. Sua mais significativa solução está na divisão da generosa mole da edificação em partes com tratamentos diversos compatíveis com a dimensão, proporcionalidade e ritmo de abertura dos edifícios individuais demolidos no final dos anos 20, cuja perda provocava uma grande lacuna urbana.
A Casa do Arcebispo em Mariana, de Éolo Maia, Jô Vasconcellos e Sylvio de Podestá do início dos anos 80 é outro bom exemplo de intervenção urbana com respeito absoluto à preexistência. Apesar de, e/ou, devido à celeuma que envolveu todo o processo de sua projetação e construção, esta inserção é bastante silenciosa. No vértice da Praça Gomes Freire, na qual a casa foi implantada, não havia nenhuma construção provocando o fechamento da praça. O edifício pós-moderno, com uma mole generosa, e franca expressão contemporânea, dialoga por continuidade com a preexistência. Ele reconfigura a praça com tal sutileza que se tem a sensação que sempre esteve ali, reforçando o leve movimento dos telhados cerâmicos, as paredes brancas e suas molduras contrastantes de cores fechadas da antiga Vila do Carmo.
Outra intrigante e feliz intervenção em que há uma interação ímpar entre o antigo e o novo é a construção do Nationale-Nederlanden Building (1992-1996) em área central da cidade de Praga, nas margens do Rio Vltava, de autoria dos arquitetos Frank Gehry e Vlado Milunic. Também conhecido como Ginger e Fred, o edifício ocupou o local de uma antiga edificação também arrasada na Segunda Grande Guerra. Ele se conecta perfeitamente ao ritmo e morfologia urbana da cidade, ao manter o alinhamento geral, o mesmo espaçamento e proporção das janelas e o tratamento diferenciado nas esquinas dos edifícios antigos da área. Ao mesmo tempo, a expressão irreverente da obra não se submete à preexistência. Se o ritmo horizontal das aberturas se mantém, elas dançam na vertical, seguindo a textura ondulada da fachada. No tratamento singular da esquina, uma silhueta de vidro sensual, e “pernas dançantes” de fora, é contraposta a uma massa cilíndrica robusta e inclinada do volume que se projeta a partir da face mais comprida do edifício, subvertendo por completo a ordem preexistente e destacando surpreendentemente a obra na paisagem urbana. Para complementar a edificação é coroada com uma cúpula, também característica comum aos prédios de Praga, inusitadamente composta por retorcido emaranhado aramado. A obra, ao mesmo tempo em que restaura uma lacuna de quase quarenta anos na cidade, tem uma imagem tão potente que se torna o centro das atenções da área e a reinventa. Assim determina esse singular acontecimento tão incomum na modernidade, no qual efetivamente restauração e recriação estão literalmente no mesmo lugar, num mesmo gesto, “no mesmo lado do rio”. A nova edificação em um só tempo restaura e recria o conjunto urbano.
Entre continuidades e contrastes são muitas e variadas as possibilidades de interação entre o novo e o antigo. Dentre elas algumas conseguem tal equilíbrio de forças que não prevalece nem a preservação da imagem antiga, nem a criação plena de uma nova imagem. A obra ganha uma interessantíssima e particular configuração na qual as temporalidades se mostram claramente e, concomitantemente, se estranham e se complementam. Esse é o caso dos dois edifícios que compõem o conjunto do Palacete das Artes em Salvador, no qual o ornamentado edifício eclético, antiga Villa Comendador Bernardo Martins Catharino (1911-1912), agora predominantemente branco, tem importância tão forte no conjunto quanto o novo volume de linhas limpas e geometria rigorosa em concreto aparente de Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci (2003-2005). Nesse conjunto ao mesmo tempo em que o novo respeita e se afasta do antigo pelo respiro fundamental dado pelo generoso vazio entre os dois edifícios, inadvertidamente através de uma esguia passarela, o novo “morde” o antigo – e aí está o grande encanto da intervenção. Da rua não se vê o novo bloco de gabarito baixo, mas sua presença logo se faz forte e central no conjunto, logo que se atravessa o portal de entrada.
A intervenção para ampliação do Museu do Louvre do arquiteto Ieoh Ming Pei de 1989 é outro exemplo que gerou bastante polêmica no momento de sua construção, mas que hoje passados mais de vinte anos de sua conclusão pode ser listada no hall das intervenções, sem dúvida de recriação, mas que mantém fino equilíbrio entre o novo e o antigo. A imensa pirâmide envidraçada que marca a nova entrada tem presença marcante na gigantesca praça à frente da fachada leste do conjunto. Colocada no centro de um pátio em U, configurado pelas alas desse lado do antigo Palácio, sua presença forte não subjuga o antigo edifício como também não se dobra ao grandioso e poderoso conjunto monumental – formado também por um somatório de intervenções em tempos distintos, porém contínuos que dão coesão à apreensão da mole antiga do museu como algo unitário. Assim, sem que se toquem, os edifícios criam um tenso e requintado balanceamento no contraste entre a pureza geométrica do novo corpo e o rebuscamento ornamental das alas antigas. Outro embate entre as temporalidades está na inversão da predominância entre cheios e vazios: da massa ritmada da mole antiga para a pele de vidro do novo volume. Mais uma vez o vazio é crucial na equiparação da presença e imagens das temporalidades.
Mesmo que a escolha entre restaurar, privilegiar o antigo ou modernizar certa obra possa parecer uma opção arbitrária, não o é. Qualquer escolha parte inevitavelmente do próprio objeto da intervenção como elemento crucial e central na definição dos caminhos a serem seguidos. Do restauro à recriação, são muitas e legítimas as possibilidades de intervir. Muito poucos são os objetos que pedem e merecem um restauro, como por exemplo, o caso do claustro do Convento de São Francisco em Salvador ou a Igreja de São Francisco da Pampulha em Belo Horizonte. A esmagadora maioria das intervenções se dá no alargado hall das transformações. Porém também é preciso advertir que mesmo no campo das metamorfoses o próprio objeto deverá ser o principal norte nas decisões de preservação e/ou na maior ou menor liberdade de inovação da ação.
Mesmo no caso das ruínas, questão delicada e polêmica, são variados os graus de interação do novo com o antigo – como a valorização da leitura e da compreensão didáticas dos vestígios arqueológicos como artifício protagonista da obra. A exemplo, podemos citar a intervenção de João Luís Carrilho e João Gomes da Silva, no Castelo de São Jorge, em Lisboa, obra vencedora do Prêmio Piranesi Prix de Roma, versão 2010. As ruínas de três períodos históricos diferentes – dois palacetes islâmicos, um palácio bispal da Idade Média e um setor da Idade do Ferro – são integradas a inserções arquitetônicas contemporâneas construídas em aço corten, e a uma grande “caixa” horizontal encerrada por paredes brancas levantadas, sutilmente, acima das fundações dos palacetes islâmicos, mas sem tocar os seus alicerces – resgatando, pedagogicamente, as ambiências internas e externas dos edifícios ancestrais mouriscos. É obviamente uma proposta de recriação artística do sítio e não de restauração, na qual paisagem natural e edificada deslumbrante, a atmosfera cativante do castelo, a arquitetura nova de traço tipicamente português e as ruínas se complementam divinamente.
A intervenção dos arquitetos portugueses é uma ação sobre a preexistência totalmente coerente, pois, no caso das ruínas, a única ação inadmissível é o restauro: ser considerada ruína significa que a obra perdeu de tal modo suas características que não é possível mais reconhecê-la como a obra que foi um dia, e consequentemente recuperá-la como tal. Outra possibilidade de intervenção em ruínas é o enaltecimento de seu próprio aspecto de ruína, no qual as ínfimas, delicadas e silenciosas intervenções apenas facilitam os agenciamentos para uso e visitação de seus espaços, como nas últimas obras que possibilitaram a reabertura das Ruínas dos Mercados de Trajano em Roma, incluindo percurso museográfico e espaços de exposição.
Ressalta-se também que a reabilitação – processo de adequação de espaços antigos para novos usos – não necessariamente se dá via recriação; ela também é compatível com a restauração. A mudança de uso não implica em si uma nova imagem para a obra. É absolutamente possível dar novos usos a espaços preexistentes sem necessariamente alterá-los em seu aspecto. Ou seja, o restauro não é necessariamente um tipo de intervenção que limita as possibilidades de utilização das obras, bem como a recriação de preexistências pode perfeitamente manter os usos antigos.
Considerações finais
Nossas preocupações não se propõem nem mesmo a tangenciar o esgotamento das questões postas nesse artigo. O propósito é apenas fomentar reflexões que nos parecem centrais na preservação do patrimônio, especificamente o patrimônio edificado. Os exemplos citados são apenas ilustrativos das tantas possibilidades existentes e servem como pontos de inflexão e direcionamento do pensamento. A proposta é pontuar e contribuir para as discussões do campo e seus aprofundamentos sobre as condições e intenções que movem as intervenções em edifícios e conjuntos históricos. O que nos importa bem mais que a forma escolhida para a intervenção é a consciência das escolhas e das consequências dessas para a preservação do patrimônio cultural. Defendemos que somente uma crítica rigorosa e conhecimentos mais consistentes sobre as questões envolvidas na preservação podem nos dar instrumentos melhores para lidar com o patrimônio em suas diversificadas e múltiplas concretizações e particularidades, bem como nas suas diferenciadas importâncias para a sociedade contemporânea e seus muitos especialistas. Em tempos de horizontes tão alargados, referências tão pulverizadas nas práticas particulares, e elasticidades fragmentadas dos pensamentos contemporâneos, nos parece que debater e dar cada vez mais intensidade aos conceitos que tenham real poder instrumental como guia das intervenções é fundamental. A consciência de que são muitos os agentes, fatores, condicionamentos e interesses que interagem na preservação do patrimônio edificado é sem dúvida crucial para enfrentarmos a diversidade do campo hoje. É preciso, porém, ficar claro que o condensador de tão diversas naturezas sobre o mesmo objeto, no caso do patrimônio edificado, ainda é a sua materialidade e o que ela é capaz de emanar e aceitar entre signo e significados. Portanto, nesse caso específico, ressalta-se que o elemento agregador e sintético continua sendo a matéria e sua imagem, e seu lugar de importância deve ser devidamente compreendido, respeitado e valorado.
notas
1
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 2004.
2
GRACIA, Francisco de. Construir en lo construido. Madrid, Nerea, 1992, p. 20.
3
DOURADO, Odete. Contingência e transitoriedade das construções modernas. In: BIERRENBACH, Ana Carolina; GALVÃO, Anna Beatriz Ayroza; NERY, Juliana Cardoso (org). Cadernos PPGAU. Desafios da Preservação: referências da arquitetura e do urbanismo modernos no Norte e Nordeste. Salvador, número especial, PPG/FAUFBA, 2009, p. 136-152.
4
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Editora da Unesp, 2001.
5
BRANDI,Cesare. Teoria da restauração. Cotia, Artes e Ofícios, 2004.
6
PEREIRA, Honório Nicholls. Tendências contemporâneas na teoria da restauração. In: GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras; CORRÊA, Elyane Lins (org). Reconceituações contemporâneas do patrimônio. Salvador, EDUFBA, 2011, p. 105.
7
MUÑOZ VIÑAS, Salvador. Teoría contemporánea de la restauración. Madri, Síntesis, 2003.
8
Ver discussão sobre operadores de valor em PEREIRA, Honório Nicholls. Tendências contemporâneas na teoria da restauração. In: GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras; CORRÊA, Elyane Lins (org). Op. cit.
9
Artigo contido em BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Cidade, n. 23, Rio de Janeiro, Graphos, 1994.
10
WENDERS, Ernst Wilhelm Win. A paisagem urbana. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Cidade. Rio de Janeiro, Graphos, n. 23, 1994, p. 186.
11
GRACIA, Francisco de. Op. cit., p. 24.
12
LAGUNES, María Margarita Segarra. La restauración después de Cesare Brandi. In: GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras; CORRÊA, Elyane Lins (org). Reconceituações contemporâneas do patrimônio. Salvador, EDUFBA, 2011, p.38
13
JEUDY, Henri-Pierre. O destino dos patrimônios. In: COSTA, Francisco de Assis da (org). Cadernos PPGAU, ano X, n. 1, Salvador, PPGAU UFBA, 2012, p. 15-16.
14
JACQUES, Paola Berenstein. Espetacularização urbana contemporânea. In: FERNANDES, Ana; JACQUES, Paola Berenstein (org). Cadernos PPGAU. Territórios Urbanos e políticas culturais, número especial, Salvador, PPGAU UFBA, 2004, p. 23.
15
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
16
PEREIRA, Honório Nicholls. Op. cit., p. 113.
17
LAGUNES, María Margarita Segarra. Op. cit., p. 30-31.
18
Idem, ibidem, p. 29.
19
PEREIRA, Honório Nicholls. Op. cit.
20
CAPITEL, Antón. Construir en lo construido. In CAPITEL, Antón. Construir. Metamorfosis de monumentos y teorías de la restauración. Madrid, Alianza Forma, 1988; LAGUNES, María Margarita Segarra. Op. cit.
21
BRANDI,Cesare. Op. cit., p. 14.
sobre os autores
Juliana Cardoso Nery é doutora em arquitetura e urbanismo, professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA) e do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP-CECRE UFBA). Pesquisadora Associada do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFBA). Coordenadora Acadêmica da FAUFBA.
Rodrigo Espinha Baeta é doutor em arquitetura e urbanismo, Professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA), do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU UFBA) e do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP CECRE UFBA). Coordenador do MP-CECRE. Diretor da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo (ANPARQ).