Este trabalho articula três diferentes momentos de diversas pesquisas acadêmicas já realizadas, envolvendo três campos de discussão inicialmente distintos, a saber, o processo de modernização do comércio no Brasil, as poéticas barroca/neobarroca latino-americana na sua relação com o projeto modernizador e, finalmente, a expressão dessa fricção, seus conflitos e ajustes - sua mestiçagens - no fenômeno do comércio informal, ou na proliferação dos camelôs e suas bancas/tiendas no Brasil e na América Latina, do ponto de vista dos seus modos de expor.
Do bolicho ao supermercado
A dissertação de Mestrado em História de Vânia Nadaf (1) aborda o processo de modernização do comércio na cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso, entre os anos 1950 e 1960. Até então, proliferava na cidade um tipo de comércio conhecido pelo nome de “bolicho” que foi paulatinamente substituído por estabelecimentos conhecidos como mercadinho, mercado, supermercado, hipermercado, todos desdobramentos do modelo moderno da “loja de departamentos” que deu origem, finalmente, ao Shopping Center de nossos dias. Na época da referida pesquisa (2000-2002), alguns remanescentes desses antigos bolichos ainda existiam em Cuiabá, o que permitiu à autora, um valioso material de história oral narrando a passagem de um regime a outro, que foi cruzado com documentos de várias naturezas, desde jornais da época até caderno de registro dos estabelecimentos e “cadernetas” pessoais, para pagamento mensal, em que o comprador/freguês anotava o pedido e o dono do estabelecimento o preço e a data.
Conforme essa pesquisa, a designação “supermercado” apareceu, pela primeira vez, no censo de 1960 da cidade de Cuiabá, ainda que nenhum estabelecimento comercial dessa natureza tivesse sido registrado na cidade, nesse censo. Mas, não levou muito tempo para que Cuiabá tivesse seu primeiro supermercado. Mesmo que bastante diferentes dos de hoje – em tamanho, em variedade, em tecnologia −, esse tipo de espaço comercial já trazia, naquela época, a novidade do espaço definitivamente moderno: amplo, iluminado, organizado, sinalizado, higiênico.
As prateleiras de um supermercado, como todos sabemos, são dispostas com faixas de corredores entre si que permitem a circulação dos clientes. Também chamadas de gôndolas, elas são reunidas em seções que acolhem produtos segundo suas naturezas (alimentação, higiene, limpeza, veterinários, produtos que exigem refrigeração, etc.); no interior das seções, encontramos subclassificações como enlatados, cereais, biscoitos, verduras e legumes, carnes, etc.; e em cada subclassificação os produtos são dispostos segundo as marcas, lado a lado, individualizados e únicos em seus espaços.
No supermercado, assim como em outros estabelecimentos comerciais modernos, o cliente anônimo tem autonomia para circular entre as mercadorias, olhar os preços nas etiquetas ou nas máquinas de código de barras, recolher nos carrinhos os produtos que pretende levar e, ao final das compras, através do único “funcionário” com o qual terá necessariamente contato, poderá pagar suas compras em dinheiro, cheque ou cartão de crédito, inequivocamente, depois de serem por ele registradas e, emitido em papel, o preço final.
Dois tipos de funcionários “quase invisíveis”, uma vez que dificilmente interagem com os compradores, circulam entre as gôndolas: aquele que repõe, de tempos em tempos, os produtos retirados pelo consumidor – um supermercado não pode ter espaços vazios de mercadoria – e o remarcador de preço, que vai com sua “maquininha” de etiquetagem, mudando os preços dos produtos. Curioso lembrar que no período da chamada inflação galopante (anos 1980, principalmente) no Brasil, a etiquetadora virou signo da inflação e o funcionário que a carregava, o profissional mais indesejado da sociedade.
Antes da introdução do supermercado que chegou primando pelas características do “clean e amplo”, totalmente disciplinado, que supõe um cliente independente, sem vinculação afetiva com os trabalhadores do estabelecimento, todavia, o que tínhamos nas cidades era, basicamente, a pequena loja de secos e molhados que vendia “de tudo um pouco” – a varejo – e o atacadista, que vendia em grandes quantidades e era, em geral, o fornecedor da primeira.
Entre os diversos nomes usados para o comércio varejista em Cuiabá − casa, empório, venda, bolicho, armazém, armarinho −, o termo “bolicho” é o mais utilizado para designar esse tipo de comércio tradicional. Alguns poucos bolichos seguem existindo na cidade, por insistência de seus proprietários, todos de idade avançada ou que herdaram a loja de seus pais, que vendem a mesma variedade de produtos, mas que hoje se destacam pela singularidade do estabelecimento (quase um ponto turístico) e por serem os únicos a oferecem produtos de consumo local, artesanais ou industrializados por pequenas fábricas, também em extinção (filtros de barro, por exemplo), que dificilmente serão encontrados em um supermercado, como cestos, tipitis, espanadores, ralos para mandioca, bacias de alumínio, urinóis esmaltados, fumo de rolo, guaraná em bastão, rapaduras etc.
Nos bolichos, tudo difere dos espaços comerciais modernos: os produtos, as formas de relacionamento com o cliente, os modos de financiamento das compras (o uso da caderneta precursora da compra a crédito), a inserção no bairro e a vinculação com a vizinhança e, também, o modo de arranjar as mercadorias para exposição e venda que supõe uma lógica que é também uma poética. É nesse modo de arranjar os produtos ou “modos de expor” as mercadorias que identificamos aqui uma “razão barroca”, ou esse “gosto” barroco que valoriza certas morfologias e certas dinâmicas, conforme indica Calabrese (2).
A propósito do termo mercadoria, que marca “na carne” os objetos – quaisquer que sejam –, expostos num estabelecimento comercial – qualquer que seja –, quase como um estigma, com seu efeito moral, é oportuno lembrar o balanço dos usos do termo feito por Arjun Appadurai (3). O pensador indiano considera exagero e reificação o contraste radical que o pensamento ocidental tradicional estabeleceu entre dádiva e mercadoria, responsável por uma tendência analítica que romantiza as sociedades de pequena escala – porque viveriam sob o regime da dádiva – e demoniza as sociedades capitalistas – produtoras de mercadorias –, esquecendo-se que estas últimas também operam conforme designs culturais. Essa tendência seria o produto de uma visão simplificadora da oposição entre Mauss e Marx que passa por cima de importantes aspectos em comum no pensamento de ambos. Ao longo do texto de abertura do importante livro The social life of things. Commodities in cultural perspective, a mercadoria aparece não mais como uma marca definitiva, mas como um estado, uma fase pela qual pode passar os objetos. É isso que torna possível falar em uma vida social das coisas e de uma biografia dos objetos, em cuja trajetória várias fases podem ser identificadas, como virá a desenvolver Igor Kopytoff, em texto no mesmo livro (4). A tese de Kopytoff é de que as coisas podem se mover dentro e fora do estado-mercadoria, que tais movimentos podem ser lentos ou rápidos, reversíveis ou terminais, normativos ou desviantes. Isso permite entrever a riqueza e sofisticação das passagens de um estado ao outro como ocorre, por exemplo, quando um valor economicamente muito “fraco” – uma mercadoria de baixíssimo custo – transforma-se em valor afetivo “forte” ao ser (o objeto que portava esse valor) adquirido por alguém que lhe oferece outro status (retirando-o, portanto, do estado-mercadoria) no gesto simples de dispô-lo em algum lugar de sua casa, compondo um novo agenciamento territorial.
É nessa perspectiva que consideramos os objetos expostos para serem “consumidos” nos estabelecimentos comerciais sejam eles o bolicho, o shopping center ou a banca de camelô. A mercadoria marca apenas um tempo da história ignorada desses objetos e, ainda assim, temos uma levam suspeita de que não o são, nos mesmos termos da mercadoria moderna, pelo menos, quando fazem parte desse espaço barroco que identificamos no bolicho brasileiro.
Por falar em barroco
E aqui alcançamos o segundo campo de discussão apontado no início do texto: o do barroco ou neobarroco em plena era de modernização. Duas situações, no mínimo, estranhas, marcam essa discussão.
A primeira é falar de barroco hoje, quando do ponto de vista da História da Arte ele tem data e se encerrou lá em meados do XVIII. A licença é dada por diversos intelectuais, poetas e ensaístas que, na trilha de Alejo Carpentier e José Lezama Lima, tais como Severo Sarduy, Haroldo de Campos, Octavio Paz e Édouard Glissant, entre outros, julgaram encontrar no barroco que por aqui se realizou (e continua se realizando) um “fato americano” (Lezama Lima). Isso equivale a dizer que o barroco na América Latina se singulariza, adquire autonomia e desvencilha-se da história européia para constituir-se não como um estilo ou movimento que corresponderia exclusivamente aos contornos sócio-culturais de sua época, mas como paradigma contínuo da cultura e da arte desde sua origem no século 17 até nossos dias. O neobarroco, as re-apropriações, as reciclagens modernas e pós-modernas ou tão somente o barroco, continua entre nós.
A segunda estranheza, talvez maior que a primeira, está em trazer para a reflexão sobre o barroco hoje, não um evento estético, não uma obra literária, visual ou performática, ou, talvez, a poética de um artista significativo, mas algo que escapa ao sistema artístico, como arranjos sem finalidade estética, triviais, quais sejam as prateleiras de um estabelecimento comercial, a composição formal de uma banca de camelô. Mas, a ousadia (se me permitem tratar dessa forma) não é tanta ousadia assim. Se o barroco é, na América Latina, isso tudo que dizem dele, o “fato americano”, o resultado de “una arribada a una confluência” (a do Descobrimento da América) conforme afirma Lezama Lima, que continua a operar como substrato de uma psique desde então forjada ou como paradigma a partir do qual se pensa, vê e sente, isso significa que seus princípios podem ser encontrados em qualquer ponto desse tempo-espaço latino-americano desde a colonização. Na produção das classes artísticas e intelectuais, mas também dos circuitos populares. Nos eventos únicos da arte e do pensamento, mas também nos banais, ordinários e sem nenhuma relevância do ponto de vista da simbolização da cultura. Se o barroco é essa “forma das entranhas” (Lezama Lima) que se produz inicialmente como fenômeno da contra-conquista e se transforma numa espécie de “episteme” na América Latina, haverá de estar, de algum modo, em todos os sítios em que esteja em jogo modos de criar, modos de fazer, modos de construir, idéias e formas, em suma, poéticas. Para Lezama, essa estética da “curiosidade”, essa poiesis demoníaca que é o barroco, se manifesta tanto entre os literatos como nos artistas populares, índios e mestiços (5).
Com uma tese que em muito se aproxima da idéia de um barroco como forma mestiça e própria da América Latina, Omar Calabrese, seguindo a pista de Severo Sarduy, advoga a idéia de uma era neobarroca para todo o Ocidente como resposta ao projeto moderno. Ainda que isso possa criar “problemas” para a reivindicação de uma singularidade latino-americana, cujo debate passaremos ao largo, a tese de Calabrese, e o modo como a desenvolve e demonstra, reforça nossa disposição de encontrar nas práticas insignificantes de organização de mercadorias entre camelôs das cidades brasileiras, essa articulação e/ou competição entre duas racionalidades: a moderna e a barroca. Calabrese sugere que tomemos os objetos culturais enquanto fenômenos de comunicação, ou seja, como fenômenos dotados de uma forma ou de uma estrutura subjacente (6). A idéia, diz, é podermos encontrar certas “formas profundas” como caracteres comuns a objectos, ainda que díspares e sem aparente relação causal entre si (7). Sua busca é a de um “caráter de época”, substancialmente estético, não se limitando, todavia, a somente descrever as formas, mas a compreender os valores que a constituem ou com as quais são julgadas. Os objetos escolhidos vão de obras literárias, artísticas, a canções, televisão, quadrinhos. Os nossos vão do bolicho barroco às bancas de camelô.
Estabelecido então o a priori desta reflexão nessas três questões que exigem um posicionamento teórico – a perspectiva da mercadoria como um estado, o barroco latino-americano como paradigma contínuo e operante em nossa época, que ultrapassa a esfera do artístico e se instala na cultura, nas entranhas da percepção latino-americana −, posso então passar ao terceiro momento em que a discussão sobre as dinâmicas de transformação da cultura, aqui mais especificamente tratadas como casos de mestiçagem, ensejarão um estudo de caso: a análise do processo de mestiçagem de segunda geração, não mais a que teria engendrado o próprio barroco latino americano, mas a que engendra formas atuais em que contrastam a tradição barroca (latino-americana) e a razão moderna Ocidental, a esta altura, igualmente tradicional e disposta, por todos os meios, a manter-se hegemônica. Com esta operação, além da evidente produção de conhecimento sobre o objeto que aqui estou delimitando – os arranjos formais das bancas de camelôs – compreendidos como práticas que criam, apresentam, expressam certas formas das entranhas latino-americanas, espera-se romper a dicotomia usual que se estabeleceu entre as perspectivas que privilegiam a grande análise − que em geral parecem pairar acima da escala dos acontecimentos banais como se esses não lhe dissessem respeito −, e aquelas que exploram a microfísica do evento minúsculo, do qual parece impossível sair e encontrar articulações que o compreendam, que lhe dê sentido para além dos seus estreitos limites. Trata-se de um exercício que ambiciona articular o evento local, aparentemente insignificante, aos esquemas mais amplos, molares, de configuração da cultura.
Bolicho barroco
A foto do Armazém Abraão (Imagem 1) traz a fachada de um bolicho remanescente em Cuiabá totalmente tomada por mercadorias que são diariamente colocadas na calçada no início do dia e recolhidas ao final. Este é o nosso primeiro dado: os objetos, muito mais do que apenas “mercadorias”, explodem em suas formas e volumes do interior para o exterior. Rompem com os limites pré-estabelecidos do espaço comercial, avançam sobre a calçada e a rua, constroem uma zona de familiaridade e intimidade na calçada, reforçada pela presença da simpática vendedora, possivelmente proprietária, sentada na porta da loja, ela própria configurando-se como um dos elementos da composição.
Walter Moser, em artigo que analisa o filme de Peter Greenaway, Prospero’s Books (A última tempestade), diz que uma das particularidades do barroco está na sua forte interpelação estésica, “em virtude de uma intensificação, senão exacerbação dos materiais utilizados pelo artista, quaisquer que sejam, verbais, musicais ou ainda visuais” (8). Em sua operação de persuasão, na qual explora a capacidade de afetar o público, de transmitir e produzir um pathos, a abundância das composições barrocas é percebida como “excesso”.
Omar Calabrese, por sua vez, diz que limite e excesso devem ser compreendidos como dois tipos de ação cultural que podem ser encontrados diferentemente distribuídos na história. “Épocas ou zonas da cultura em que prevalece o gosto por estabelecer normas “perimétricas”, e outras em que, pelo contrário, o prazer ou a necessidade é ensaiar ou quebrar os existentes” (9). À idade neobarroca, Calabrese atribui este gosto de provar o excesso. A quebra de limites operada pelo bolicho que avança sobre a calçada coloca em questão as oposições entre interior e exterior, entre aberto e fechado, mas também entre público e privado, entre pessoal e coletivo. O excesso manifesta a ultrapassagem de limites. Do latim ex-cedere, “ir além de”, constitui-se como o caminho de saída de um sistema fechado. Atos dessa natureza, de ultrapassagem dos confins, afirma mais uma vez Calabrese, são atos que forçam o perímetro de um sistema, ou que o põem em crise.
Se agora analisarmos as composições em si mesmas, como a da fachada do Armazém Abraão, ou os diversos arranjos que encontramos no interior do estabelecimento, notaremos outros importantes princípios dessa organização barroca.
Ritmo e repetição são longamente analisados por Calabrese, na obra já citada. Dois tipos de repetição podem ser identificados: 1) a variação de um idêntico, que pode ser traduzida pela cestaria que parte de um protótipo cuja artesanalidade, todavia, torna impossível a reprodução exata e 2) a identidade dos mais diferentes, que permite a colocação lado a lado, nos arranjos, de objetos de natureza completamente distintos, mas que guardam semelhanças formais.
A imagem 3 sobrepõe “panela de alumínio sobre urinol esmaltado sobre cesto sobre cesto sobre cesto”.
A imagem 4 combina cestos de plástico e vasos de cerâmica uns sobre os outros, aproveitando-se dos volumes “troncos de cone” que possuem individualmente e que combinados, verticalmente, produzem curiosas colunas de sucessivos troncos de cone invertidos. Da repetição das formas e volumes, apreendemos um ritmo. O aperfeiçoamento da repetição, diz Calabrese, contra tudo o que se atribui de negativo ao ato de repetir sustentado pelo mito moderno do original, produz uma estética. Mais importante que descrever o que é que é repetido é perceber a ordem da repetição. É essa ordem que torna a repetição um princípio organizativo. O ritmo é “a freqüência de um fenômeno periódico de caráter ondulatório” ou “a forma temporal na qual os membros repetidos surgem diversificados num ou mais dos seus atributos” (10).
Há, por assim dizer, uma musicalidade (ritmo) que se destaca na seqüência de cestos quase iguais na calçada do bolicho (imagem 1): cesto cru, dois cestos crus com listas, dois cestos envernizados escuros, dois cestos envernizados claros. Ao fundo deles, as colunas compostas por vassouras de teto, tipitis, rodos, cestos sobre cestos encimados por chapéus de palha e assim por diante.
No bolicho, os produtos não são classificados nem por sua natureza (se alimentos, produtos de higiene, utensílios, etc.), nem por sua funcionalidade (produtos da cozinha, objetos de decoração, etc.). Radicalmente diferente do espaço moderno, os objetos, mais do que “produtos” ou “mercadorias”, no bolicho, ou na ordem barroca, são colocados próximos um do outro, ou articulados a outro, por sua semelhança formal, ou por funcionarem como um elemento contíguo na construção de uma dada composição. Assim, um cesto “pede” sobre si uma bacia que “pede” sobre si um urinol, que acolhe muito bem uma panela. O urinol e a panela (imagem 3), no sistema moderno, trariam entre si a maior distância possível. Seria, mesmo, uma heresia colocá-los lado a lado. No conjunto, esses arranjos formam colunas ao lado de outras compostas por uma seqüência de vassouras, rodos, tipitis... Na composição final, toda uma parede de colunas se constitui. Seus elementos são os mais variados possíveis e podem se repetir indefinidamente. Não há limites para esses arranjos.
Talvez, o arremate dessa organização barroca está nisso que foi tratado por Alejo Carpentier como “horror ao vazio”, à superfície nua, à reta. Aqui, o barroco é visto como o antípoda do clássico. Efetivamente, Carpentier vê a ambos, barroco e clássico, como tendências cíclicas na História da Arte. Enquanto o clássico − que se identifica claramente com a razão moderna − privilegia os espaços amplos, “cleans”, geometricamente distribuídos, não ornamentados como os do supermercado, o barroco inventa toda uma série de artifícios e técnica para preenchimento do vazio: repetição, proliferação, “espelhismo”, etc. Em se tratando do bolicho, é visível, em todas as imagens, a cuidadosa ocupação dos espaços, jamais descuidando dos critérios que regem a escolha de um lugar para cada objeto. Talvez tenhamos aí dois princípios: 1) se há um objeto sem lugar, será preciso sondar qual o espaço adequado para esse objeto, ou em qual composição ele poderá entrar como elemento; 2) se há um lugar sem objeto, será preciso encontrar o objeto adequado para esse lugar, ou qual a melhor composição final que definirá, por conseguinte, a forma do objeto a ser procurado para preencher esse espaço. Dois singelos exemplos podem ser dados aqui:
1) a imagem 5 mostra o arranjo de ratoeiras sobre as bordas da bacia de plástico; 2) a imagem 4, mais acima, traz garrafinhas de plástico amarelas nos vãos entre as colunas de troncos de cones. No último vão, na falta do mesmo elemento, outro objeto faz “as vezes” da garrafinha... Mantém-se o padrão da repetição e preenche-se o espaço.
Finalmente, o camelô mestiço: neobarroco?
O personagem urbano conhecido, no Brasil, como camelô, conforme sabemos, remete aos velhos mascates e outros vendedores ambulantes que circulavam de cidade em cidade comercializando coisas diversas, desde remédios milagrosos a tecidos importados. No século 20, no âmbito das transformações sociais, econômicas, culturais e urbanas, a figura do mascate foi paulatinamente escasseando e cedendo lugar à figura do camelô que, diferentemente do seu predecessor, ganha localização fixa em algum ponto da cidade com grande circulação de pedestres.
Nos anos 1990, ainda que o processo tenha se iniciado muito antes, o Brasil assistirá à explosão das chamadas práticas econômicas urbanas “informais” em que se constituem todos aqueles modos não regulamentados e controlados de produção econômica, a exemplo das empresas familiares de “fundo de quintal” e do comércio praticado pelos camelôs, entre outras tantas atividades.
Numa tentativa de disciplinar a atividade informal e em franca expansão, as prefeituras das cidades brasileiras construíram “camelódromos”, de modo a abrigarem o maior número possível de camelôs, liberando praças e ruas centrais da cidade. Efetivamente, a solução não pôs um fim à ocupação dos espaços livres, mas é um fato que o camelódromo, também chamado de “shopping popular”, consolidou-se como espaço de compra para as populações subalternas (mas não somente) das cidades no Brasil.
Daí advém nosso primeiro argumento para a hipótese deste texto, do camelô como uma forma mestiça que articula funcionalidades modernas e poéticas barrocas. Entre o bolicho barroco e a loja especializada e higienizada do shopping center, encontramos os camelódromos que pretendem, do ponto de vista do marketing, se comportarem como os espaços modernos e burgueses – o shopping center –, incluindo aí uma especialização das barracas (barracas de bebidas, de roupas, de brinquedos, de utensílios para caça pesca, de eletrônicos, etc.), mas que na produção individual – as barracas de camelô – divisamos a mesma razão/estética barroca consolidada pelos antigos bolichos. Talvez pudéssemos dizer que ela não se realiza plenamente, que, diferentemente do bolicho, onde tudo é perfeitamente traduzido como um modo barroco de arranjar objetos no espaço exíguo da loja, no camelô, experimentamos algo como uma nota dissonante, certo desconforto em alguns arranjos que pode, às vezes, ser compreendido como uma, ainda, “imaturidade” poética. Algo que ainda está por se consolidar.
Diferentemente do Armazém Abraão, cuja fachada parece perfeita, como tendo atingido a forma própria e acabada de si, na imagem acima (6) dos camelôs na cidade de Dourados, em Mato Grosso do Sul, identificamos a mesma prática da ultrapassagem dos confins, mas a impressão que se tem é que os objetos poderiam ser mais bem arranjados na sua explosão do interior
O sucesso do procedimento, no entanto, pode ser verificado na composição da imagem 7, em que nenhum milímetro de barraca é deixado à mostra, toda ela recoberta pelos objetos aproximados por natureza, alguns (as bonecas, os relógios, os carrinhos), mas, sobretudo, pelas semelhanças formais das embalagens (retangulares, redondas, quadradas, etc.) e pela proximidade/contigüidade de cores.
O mesmo efeito pode ser visto nas imagens 8 e 9, e quando nada parece reger a organização das roupas infantis, senão sua própria natureza (roupa infantil), encontramos na imagem 10, a delicadeza da variação na primeira faixa dos macaquinhos enquanto, na segunda, compõe-se uma faixa dos vestidos florais sem manga, protegidos por sacos plásticos. O saco plástico, no cuidado com a roupa, descuida a composição, manda às favas qualquer zelo excessivo. O barroco pode.
O camelódromo talvez seja, hoje, na cidade brasileira, o espaço mais rico em misturas, em combinações inusitadas de objetos e procedimentos poético-culturais. Provavelmente por uma única razão: por ser popular. No Brasil, e imagino que em toda a América Latina, os espaços, classes e gostos subalternos conseguiram escapar a certas injunções do projeto de modernização das cidades e das mentes. Sem conjurar definitivamente o moderno, o subalterno se apropria dele naquilo que lhe interessa, e naquilo que lhe é possível apropriar, certamente, e o dobra tantas vezes, quanto possível, mistura, recombina, produzindo seus monstros alegres, exuberantes, sem vergonha de serem o que são: populares, barrocos e mestiços.
notas
1
NADAF, Vânia Cristina. Mamãe mandou buscar. Práticas comerciais em Cuiabá 50 e 60. Dissertação de mestrado em história. Orientação Ludmila Brandão.Cuiabá, UFMT, 2002.
2
CALABRESE, Omar. A Idade neobarroca. Trad. Carmen de Carvalho e Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1999, p. 34.
3
APPADURAI, Arjun. Introduction: commodities and the politics of value. In: APPADURAI, Arjun (org.). The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. 3-63.
4
KOPYTOFF, Igor. The Cultural Biografy of Things: commodization as process. In: APPADURAI, Arjun (org.). Op. cit., p. 64-91.
5
CHIAMPI, Irlemar. Barroco e modernidade: ensaios sobre literatura latino-americana. São Paulo, Perspectiva/Fapesp, 1998, p. 8.
6
CALABRESE, Omar. Op. cit., p. 22.
7
Idem, ibidem.
8
MOSER, Walter. ‘Puissance Baroque’ dans les Nouveaux Médias. À propos de Prospero’s Books de Peter Greenaway. Cinémas vol. 10, 2-3, 2000, p. 41.
9
CALABRESE, Omar. Op. cit., p. 64.
10
CALABRESE, Omar. Op. cit., p. 46-47.
sobre a autora
Ludmila Brandão é arquiteta e historiadora, doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP), pós-doutorado em Crítica da Cultura (Université d’Ottawa). É Coordenadora de Ensino de Pós-Graduação da UFMT e do Núcleo de Estudos do Contemporâneo (UFMT/CNPq). Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT). Orientadora de mestrado e doutorado.